sábado, 4 de janeiro de 2025

Tempo de farsa

Em 1881, Nietzsche publicou um livro com o título Morgenröte (Aurora, em tradução portuguesa). Considera, a certa altura, que, nesses dias, o poder dos costumes foi surpreendentemente enfraquecido. Mais à frente, esclarece o que pretende dizer: onde não há tradição a comandar, não há moralidade; e, quanto menos a vida é regida pela tradição, menor é o alcance da moralidade. A moralidade e os respectivos princípios não seriam outra coisa do que um longo hábito. A tradição seria a colecção desses hábitos que domam as existências individuais para as submeter ao grupo. E isso, por influência da ciência moderna, está posto em causa. Neste momento, um pouco por todo o Ocidente – pois isto é um negócio ocidental –, deparamo-nos com um espectáculo curioso e, na verdade, risível. As pessoas gemem pelos costumes, votam em defesa dos costumes mortos, dos bons velhos costumes, elegem os trapaceiros que lhes prometem trazer de volta a moralidade dissolvida pela morte dos antigos costumes. Ao mesmo tempo, não estão dispostas a dispensar os benefícios da ciência e, ainda menos, os da indústria. Ora, aquilo que mata as tradições, os velhos costumes, os hábitos instalados, é a ciência e a indústria, o casamento entre o conhecimento e a economia de mercado. Todas as revoluções industriais destruíram hábitos enraizados. Como essas revoluções se sucedem cada vez mais rapidamente, os hábitos destruídos estão cada vez menos enraizados. O sentimento de perda será cada vez menor, mas isso torna a vida mais inquietante, pois o próprio passado perde força. A reacção contra a primeira revolução industrial foi muito mais violenta do que contra a revolução trazida pela informática. Isso significa que o passado era um consolo ainda potente para acalmar os espíritos perdidos, expulsos do paraíso pré-industrial. O romantismo não foi outra coisa senão uma revolta e uma modalidade de consolação. A revolução em curso, a da Inteligência Artificial, não vai gerar nenhum romantismo, mas apenas farsas sem fim, onde se grita pelos velhos costumes enquanto se abraça aquilo que os destrói. Este é o nosso tempo: o da farsa.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Para uma sociologia da imaginação

Como tantas vezes me acontece, um acaso levou-me a um romance – o único do autor – de Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva. Estava numa estante e nunca pensei em lê-lo. Contudo, peguei nele e duas circunstâncias levaram-me a mudar de opinião. Uma absolutamente lateral. A capa da minha edição é do pai de um amigo meu, um dos mais importantes designers gráficos portugueses do século XX. A segunda, imagino que a mais decisiva, foi a longínqua memória de ter lido a novela O Barão, a obra-prima do escritor. Quando a li, há décadas, fiquei impressionado, mas não voltei a ela, nem a qualquer outra obra do autor. Entrei, então, pela Porta de Minerva e deparo-me com uma Coimbra talvez dos finais da República. No terço que li, tudo gira em torno dos estudantes, dessa incompreensível, para quem não estudou em Coimbra, praxe, da terrível divisão entre caloiros e doutores, das tradições académicas. O romance não tem o poder magnético de O Barão. Não deixa, no entanto, de ser um interessante documento sociológico sobre uma realidade social que teve no país um peso desmedido e que o conformou naquilo que ainda é hoje, apesar de, imagino eu, esse peso ter sido reduzido drasticamente. Penso, não poucas vezes, que nos falta uma sociologia da imaginação nacional. O objecto de investigação seriam as obras de arte, o trabalho dos grandes artistas, mas também dos medianos e dos menores. O que estaria em jogo não seria a qualidade estética das obras, mas como a imaginação desses artistas nos imagina na narrativa, no teatro, na pintura, na escultura, na poesia, no cinema, na música. Uma coisa é a realidade objectiva que a história e a sociologia pretendem captar, a vida crua com os seus eventos. Outra bem diferente é aquela para que aponta a flecha do desejo, desejo esse que alimenta a faculdade de imaginar. Deste ponto de vista, uma obra menor de um autor esquecido pode ser tão importante, ou mais, do que uma obra do cânone, pois esta será sempre uma excepção. E os nossos desejos raramente são excepcionais.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A vida prosaica das ideias magníficas

Já vamos no segundo dia do novo ano e ainda não vi nada de substancialmente diferente daquele que acabou. Quase me apetece perguntar por que espúrias razões acabaram com o ano, se o novo é igual. É provável que, com o desenrolar dos meses, o novo se diferencie do velho, mas sempre se podia ficar mais um tempo em 2024, desacelerando o tempo, dando mais e maiores horas a cada dia, alterando mesmo o calendário para 14 ou 15 meses. Todas estas ideias magníficas que me nascem na mente encontram a barreira inultrapassável que o homem comum ergue contra o génio, pois só um génio poderia ter ideias tão desaparafusadas. Este génio dedicou o dia de hoje ao trabalho, embora – pois sempre é um génio envelhecido – tivesse de passar pela dentista, uma rapariga novinha e doce que dificilmente se imagina, mesmo que se seja genial, de broca em punho ou de alicate a puxar um dente tomado por uma qualquer moléstia (o que não era o meu caso), a superintender a boca dos pacientes. Não contente com isso, ainda fez uma visita à farmácia, onde, além de comprar medicamentos, trocou umas palavras com o farmacêutico de serviço sobre certos efeitos secundários que um medicamento não se cansa de produzir. No fundo, a vida é isso: uma salsada de consequências benéficas misturadas com efeitos secundários. Chegará o momento em que os efeitos secundários suplantarão as consequências benéficas, mas as coisas são o que são e também o que não são. O não-ser ainda fará, de algum modo, parte do ser, mas hoje não estou inclinado para a ontologia. Não choveu neste segundo dia do ano. Não me parece que isso seja um bom presságio. Não tarda e teremos as barragens a reclamar pela falta de água. Um péssimo acontecimento.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Primeiro dia

Chegou o crepúsculo do primeiro dia do ano. Recolhi-me, como se este fosse um dia de meditação, mas não meditei sobre nada. Talvez tenha meditado, mas essas meditações foram tão secretas que nem o próprio meditador deu por elas. Na rua, havia uma luz solar límpida, mas a preguiça evitou que me expusesse a ela e ao frio que a acompanha. O sol de Inverno, como todos sabem, é uma armadilha para incautos. Disfarça-se de promessa calorosa para atrair os ingénuos ao frio que faz reinar. As festividades estão consumadas. Amanhã, a realidade volta com toda a sua colecção de imperativos. Obedecerei, pelo menos a alguns; a outros deixá-los-ei flutuar até que se dissolvam por si mesmos. Fui fechar uma persiana. Olhei para a rua e não havia ninguém, nem os constantes passeadores de cães, nem os extraviados da família, nem os loucos que aproveitam estes dias para exibir gratuitamente a sua loucura. Uma quietude como a que carcomia as cidades naqueles dias em que uma pandemia tomou de assalto a casa do homem. Podia ter evitado esta metáfora, tão cansada está que não passa de uma catacrese; mas também eu estou cansado e não me apetece inventar metáforas no primeiro dia do ano. Não me ficava bem. Seria um exercício exibicionista, apesar do anonimato que cobre autor e narrador destes textos. Deveria escrever anonimatos, pois ambos são anónimos, mas com uma diferença substancial. No caso do autor, foi-lhe dado um nome no registo civil e no baptismo. Já o narrador não foi registado, nem baptizado, tão pouco crismado. O autor negou-lhe o direito mais básico que é ter um nome como chave de uma identidade. Não me vou revoltar com isso, pois o primeiro dia do ano é o menos indicado para revoltas, sublevações e insurreições. Cumpro ordens. Foi para isso que o autor me criou, para narrar o que lha passa pela mente, embora eu não tenha a certeza se a sua mente existe de facto, mas se fui criado por ela, pelo menos terá existido.