Chegou o crepúsculo do primeiro dia do ano. Recolhi-me, como se este fosse um dia de meditação, mas não meditei sobre nada. Talvez tenha meditado, mas essas meditações foram tão secretas que nem o próprio meditador deu por elas. Na rua, havia uma luz solar límpida, mas a preguiça evitou que me expusesse a ela e ao frio que a acompanha. O sol de Inverno, como todos sabem, é uma armadilha para incautos. Disfarça-se de promessa calorosa para atrair os ingénuos ao frio que faz reinar. As festividades estão consumadas. Amanhã, a realidade volta com toda a sua colecção de imperativos. Obedecerei, pelo menos a alguns; a outros deixá-los-ei flutuar até que se dissolvam por si mesmos. Fui fechar uma persiana. Olhei para a rua e não havia ninguém, nem os constantes passeadores de cães, nem os extraviados da família, nem os loucos que aproveitam estes dias para exibir gratuitamente a sua loucura. Uma quietude como a que carcomia as cidades naqueles dias em que uma pandemia tomou de assalto a casa do homem. Podia ter evitado esta metáfora, tão cansada está que não passa de uma catacrese; mas também eu estou cansado e não me apetece inventar metáforas no primeiro dia do ano. Não me ficava bem. Seria um exercício exibicionista, apesar do anonimato que cobre autor e narrador destes textos. Deveria escrever anonimatos, pois ambos são anónimos, mas com uma diferença substancial. No caso do autor, foi-lhe dado um nome no registo civil e no baptismo. Já o narrador não foi registado, nem baptizado, tão pouco crismado. O autor negou-lhe o direito mais básico que é ter um nome como chave de uma identidade. Não me vou revoltar com isso, pois o primeiro dia do ano é o menos indicado para revoltas, sublevações e insurreições. Cumpro ordens. Foi para isso que o autor me criou, para narrar o que lha passa pela mente, embora eu não tenha a certeza se a sua mente existe de facto, mas se fui criado por ela, pelo menos terá existido.
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