terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Uma tarde gasosa

A tarde evaporou-se; nem sei como, nem porquê. O uso da ideia de evaporação pode parecer bizarro, mas é congruente com os tempos que vivemos. Segundo um conhecido sociólogo polaco, Zygmunt Bauman, vivemos na modernidade líquida. Se ele tem razão, faz sentido pensar que as tardes, bem como as manhãs e as noites, sejam também líquidas, pois pertencem a um mundo líquido. Como é que  uma substância em estado líquido se transforma em vapor? Em termos genéricos, isso acontece por absorção de energia térmica. Foi o que aconteceu à minha tarde de hoje. Ela, devido às transformações ocorridas na modernidade, como ensinou Bauman, passou do estado sólido para o líquido, ainda antes de nascer. E assim continuaria se fosse uma tarde normal. Seria um rio a deslizar com a suavidade para a foz, onde entraria, pelo delta do crepúsculo, no oceano da noite. Contudo, de uma maneira inexplicável, começou a absorver energia térmica, até que passou para o estado gasoso. Nessa altura, sentei-me aqui e disse: a tarde evaporou-se. Fosse eu sociólogo, radicalizaria a visão do mundo moderna recebida de Bauman. Vivemos na modernidade gasosa. Esta transformação na configuração do sistema-mundo foi prenunciada – se não mesmo anunciada – em Portugal, na indústria e comércio de refrigerantes. Quando era criança e adolescente, não havia coca-cola, bebida proibida de entrar no país, mas havia laranjadas e gasosas, que tinham mais gás que uma botija de 13 kg. Foram estas que anunciaram a nova fase da modernidade que acabei de cunhar. Há um momento de pré-anúncio, mas de que não me lembro. Trata-se do pirolito, uma bebida gaseificada, cuja garrafa tinha um engenhoso método de fechamento. Uma bola de vidro, pressionada pelo gás da bebida – imagino que uma mistela – fechava a garrafa. Contudo, nunca entrei em contacto com pirolitos. Também as gasosas não eram coisa com que me desse. Se queremos perceber como tardes, noites e manhãs se evaporam, há que estudar a indústria refrigerante e o antigo mercado de pirolitos e gasosas. Uma arqueologia do estado gasoso do mundo.

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