Uma quinta-feira cheia de tarefas, ainda por cima começada, ainda não eram oito e meia, com a visita dos funcionários de uma empresa que montou, há umas semanas, uma nova caldeira aqui em casa. É uma caldeira cheia de sensores e, por isso, muito sensível. A sensibilidade é tão apurada que decidiu dar erro e não trabalhar, o que me fez passar em branco o duche matinal de ontem e me deixou uma sensação de impureza durante todo o dia. A vinda dos técnicos foi uma boa notícia, a que se adicionou o restabelecimento do dispositivo na sua função. Quando se foram embora, coisa que não foi fácil, respirei aliviado e dirigi-me para o duche matinal, embora a manhã já fosse a meio. Depois, como um mortal entre mortais, tive de providenciar a maneira de pagar as contas e fiz-me à vida, pois múltiplas empresas me esperavam. Fi-las com a sensação de pureza que um bom duche proporciona, como se tivesse acabado de ser baptizado no Rio Jordão. Chegado a casa, saí de imediato para me consolar no café aqui ao lado, pertença agora de um casal de brasileiros, em que ela tem um enorme talento para fazer bolos, múltiplos bolos, combinações requintadas de sabores, todos de uma grande leveza e sem excesso, mas também sem defeito, de açúcar, tudo na justa medida aristotélica, nesse meio-termo virtuoso que torna as coisas valiosas. Raramente, mas muito raramente, me entrego a este despropósito à tarde, mas o dia de hoje obrigou-me a um exercício de consolação. Teria aventuras para contar, as quais engrandeceriam a minha gesta, mais heróica que a do Cid e mais alucinada que a do Quixote, mas guardo isso para quando escrever as minhas memórias, caso não as perca pelo caminho. Por hoje, registo apenas o dragão em forma de bolo que espetei com um garfo e devorei com os dentes com que fui dotado e aqueles que fui adquirindo.
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