domingo, 4 de agosto de 2019

As tarde de Agosto

Ontem as netas foram-se embora com os pais. Ao sair, a mais nova voltou-se e, misturando a ironia e o imperativo, disse: agora, os avós não vão chorar. Não sei o que admirei mais, se o atrevimento, se a capacidade para ficcionar, pois nunca os avós choraram quando elas se foram embora. Hoje, domingo, o almoço foi mais tardio. A verdade é que a casa ficou vazia, sem a agitação delas, os pequenos dramas das raparigas e a esperança toda que há dentro de crianças que caminham para adolescência. Também é verdade que deixei de ter bicicletas para levar a remendar furos, uma das minhas actividades nos últimos dias. Eu sei, eu sei, que sempre se podem reparar câmaras de ar em casa. Antigamente, não sei se hoje, havia os remendos Tip-Top, mas não sou dado ao exercício da bricolage e falece-me o talento para a mecânica. Arrumadas as bicicletas, o tempo cresce-me. Assim, posso banhar-me no silêncio e nadar em oceanos de palavras, lembrando-me dos Verões em que as tardes se dilatavam quase até ao infinito e eu lia o Ciclone e o Condor, o Falcão, onde o meu grande herói era o Major da RAF Jaime Eduardo de Cook e Alvega. Agora que o Major Alveja já não abate nenhum avião da Alemanha nazi, entretenho-me a ler as Memórias de um Morto. O tempo não está para gente tão viva quanto o piloto luso-britânico. Quando o meu neto crescer, hei-de falar-lhe do grande Major, o meu herói dos tempos da escola primária. Tenho que fazer os possíveis para não me esquecer.

sábado, 3 de agosto de 2019

Incongruências em Agosto

De que tecido serão feitos os sábados de Agosto? Não sei porquê, mas esta pergunta assaltou-me há pouco ao chegar a casa. Tenho dias assim, o meu cérebro, devido a algum desarranjo neuronal, dispara à queima-roupa perguntas incongruentes. A incongruência reconhecida da pergunta tranquilizou-me. Teria de lhe dar uma resposta sem sentido, como, por exemplo: os Sábados de Agosto são de popelina, enquanto os de Novembro são de repes. Assim estou dispensado. A rua de onde vim tinha um cheio a férias grandes, uma rua feita de sombras pesadas e ausências notadas quando chegam os dias oficiais para as pessoas se cansarem de tanto descanso. Estamos num tempo em que toda a gente acha que vai ler livros, dar grandes passeios, passar tardes admiráveis entre amigos. A realidade, porém, não há-de estar pelos ajustes. Eu recolho-me em mim e penso num eremitério onde me pudesse excluir da humanidade. Logo me vem à memória a frase o homem solitário ou é um besta ou é um deus. Nunca tendo dado pela existência em mim de um traço divino, inclino-me para a primeira possibilidade. É o que dá ser assaltado por perguntas incongruentes. Tanto quanto sei, mas sei poucas coisas, nunca Agosto fez bem a ninguém.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Chocolate negro

Hoje atravessei a cidade de lés-a-lés. Estava modorrenta, ainda com menos gente do que é habitual, o casario, aquele mais antigo, não tinha melhorado de aspecto desde a última vez que o vi. Deveria sentir-me deprimido. É a obrigação de qualquer um que um dia a tenha visto vibrante na sua pequenez, a fervilhar de negócios e de gente, mas não me senti. Pelo contrário, estava bem disposto e cheio de bonomia. Até o que está decrépito me pareceu novo. Tudo se deve, porém, ao chocolate negro que por vezes, furtivamente, me tenta. O chocolate negro, informa-me um estudo, pode aumentar o bom humor e aliviar os sintomas de depressão. Eu caio de joelhos agradecido. Só tenho medo que o hábito faça passar o efeito. Ainda hoje, em consulta com o cardiologista, lhe disse que a substância hipotensora, quando a comecei a tomar, tinha um óptimo efeito sobre os meus estados de alma. Tudo o que me aborrecia e irritava deixou de o fazer. Se queriam que o branco fosse preto, eu queria lá saber. Com os anos o efeito passou e quando trocam o preto pelo branco fico irritado. O meu problema é se o efeito do chocolate negro também passa. De que valerá comê-lo se a realidade depressiva me parecer depressiva? Não há coisa pior que a realidade. Seja como for, acho que, nesta terra, toda a gente deveria comer chocolate negro.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A libertação dos alienígenas presos

As notícias de Verão não deixam de ser espantosas e Agosto não começa nada mal. Leio que dois milhões de americanos acreditam que há extraterrestres presos numa base militar dos EUA e que um número não especificado quer invadir o lugar para libertá-los. São causas como esta que me fazem acreditar, e muito, na humanidade, no seu espírito generoso, embora as coisas possam não ser tão simples quanto isso. E se os extraterrestres forem inimigos, a sua libertação não configurará um acto de alta traição? Os americanos são assim. Um povo impulsivo. Propõem-se fazer coisas sem pensar nas consequências e não há quem os alerte. É evidente que eu também acho aborrecido que se prendam extraterrestres por dá cá aquela palha, mas como europeu pertenço a uma longa tradição marcada pela prudência, apesar das duas guerras mundiais, e faço parte daqueles que abominam a impulsividade. Se estão presos, os extraterrestre alguma fizeram. Esta é uma sabedoria lusa e, como toda a sabedoria lusa, é profunda. Ainda pensei sugerir aos libertadores tentarem a via judicial. Todo o preso terá direito a um advogado e a um julgamento justo e imparcial. Isto sou eu que o digo, uma pessoa crente no Estado de Direito, mesmo quando se trata de espécies alienígenas. Julgo, porém, que os libertadores se ririam na minha cara. O melhor é evitar humilhações, pois Agosto só agora começou.

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Bolas de Berlim

Num sítio que no Verão costumo frequentar havia umas bolas de Berlim que me habituei a comer sem que a consciência me acusasse de qualquer delito. Alguém mais maldoso sempre pode censurar-me de ter uma consciência frágil, mas havia, claro, atenuantes. Só comia bolas sem creme e estas, apesar de fritas, pareciam que quase não tinham passado pelo óleo. Não há nada como a nossa capacidade para fantasiar. Eram muito boas, em resumo. Constou-me que o estabelecimento fechou e ao cerrar portas levou com ele as bolas de Berlim. Tudo o que é perfeito neste mundo acaba, foi o que constatei ao ouvir a notícia e daí extraí a conclusão que o paraíso não pode ser na Terra. Acontecem muitas coisas péssimas neste mundo, eu sei, mas agora nem sei se hei-de voltar ao sítio. Gosto imenso de praia, desde que não haja muito sol, pessoas e areia. No entanto, ainda não compreendi o que iria fazer a uma praia se o sítio das bolas de Berlim se finou, levado pela voragem do tempo, deixando-me a rememorar a glória de antigas expedições para incrementar o colesterol. A saúde é uma dura penitência.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Lugares para medíocres

Estava a ler a apresentação de As Lojas de Canela, de Bruno Schulz, feita por Aníbal Fernandes, quando deparo com a resposta que terão dado ao escritor polaco perante a oferta que este fez dos seus préstimos literários à revista Novos Horizontes: “Não precisamos cá de Prousts”. O engenho da estupidez humana, apesar de tudo, nunca deixa de ser espantoso. Uma revista literária que não quer um Proust é como uma equipa de ciclismo que só aceite quem mal saiba andar de bicicleta. A analogia não é brilhante, eu sei. Que coisa essa de misturar as belas letras com um desporto popular. Foi, porém, o que me ocorreu. Se eu tivesse capacidade de fazer analogias soberbas seria um Proust. Com esta minha falta de talento, porém, talvez tivesse sido aceite na revista onde Schulz foi rejeitado. Não há lugar onde um medíocre não possa entrar.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Coisas de avô

Ao mexer no telemóvel deparei-me com uma fotografia minha com o meu neto ao colo. Eu olho para a câmara, um pouco formal; ele, para o lado, como se nos seus oito meses já soubesse demasiado do mundo e não estivesse para se submeter aos ditames do fotógrafo de ocasião. É a vantagem da inocência. Estar voltado para a frente ou para o lado é indiferente. O importante é que não o deixem cair e saibam que ele existe. Não sei se foi a visão da foto que desencadeou as saudades ou se foram estas que, sem eu dar por isso, me conduziram àquela. Ser avô é uma condição especial que, antes de se ser, é inimaginável. Mal se vêem, avô e neto estabelecem laços secretos de continuidade, que depois têm de ser cultivados com esmero e persistência, mas que são uma afirmação exuberante da vida. Aquela que começa a declinar sente-se redimida por aquela que acaba de chegar. Não se trata de uma espécie de justiça cósmica à maneira do célebre fragmento de Anaximandro, mas do estabelecimento de uma continuidade que rompe as densas paredes do futuro. Para o que me haveria de dar, por causa de uma fotografia? O melhor é fazer-me à vida. Enquanto os pássaros meus vizinhos continuam as suas cantatas nupciais, eu ponho o telemóvel no bolso, arrumo uns papéis e preparo-me para enfrentar o dia. Julho apresta-se para entregar a alma ao criador, não tarda receberá a extrema-unção e dará o último suspiro entregando-se nos braços descarnados e ressequidos de Agosto. Nesse momento, do herbário do tempo, cairá mais uma folha morta.

domingo, 28 de julho de 2019

Atrasos

Hoje acordei confuso. Havia uma ânsia em mim motivada, por certo, por um daqueles sonhos matinais que têm o condão de serem sonhados num estado em que vigília e sono se misturam, o que lhes dá uma mais forte aparência de realidade. Havia qualquer coisa para fazer, muito urgente, mas desconhecia o quê e o onde. Sabia apenas que deveria ser agora, mas agora estava na cama, despreparado para tarefa tão imperativa. Isso acrescentava desnorte à confusão. O barulho de uma sirene, porém, devolveu-me à realidade e pensei que era domingo. Suspirei e levantei-me. Tudo começou a entrar no grande castelo do esquecimento até que, ao chegar aqui, vejo uma velha fotografia de um jogo de futebol realizado muitos anos antes de eu nascer. Uma reminiscência, porém, começou a desenhar-se em mim e o sonho voltou-me à memória. A urgência de me levantar talvez estivesse ligada a esses tempos iniciais em que, ao domingo, tinha de ir à missa da catequese e, depois, a esta. O que tem isto a ver com a fotografia? Tudo. A partir de certa altura troquei as injunções à santidade do catequista pela visita ao campo que aparece na fotografia, onde rapazes um pouco mais velhos do que eu lutavam com denodo – e pouca santidade, diga-se – por uma bola de couro, que, por vezes, caía no rio. O que me entristece é não saber se, no sonho, estava atrasado para a missa ou para ir ver o jogo de futebol.

sábado, 27 de julho de 2019

Uivar à lua

Os dias de sábado nem sempre são dos mais promissores. A esplanada estava composta, na mesa ao lado uma família fazia-se ouvir. A rapariga não sem desenvoltura falava nos concertos a que queria ir. A maioria dos nomes eram-me desconhecidos, mas o que recebeu um maior ênfase foi o de Quim Barreiros. É universitária, pensei, não sem que uma sombra de tristeza me invadisse. Ao que se chegou, meditei, para que um universitário seja reconhecido por este tipo de gosto. Mais à frente, a conversa confirmou-me o prognóstico. Encolhi os ombros e abri o jornal. O mundo nunca nos desilude. É constante na sua venalidade. Houve um tempo em que se teve a ilusão de que uma maior educação tornaria as pessoas mais civilizadas, refinaria o gosto e, em momentos de maior fantasia, até se pensou que as tornarias melhores. A realidade, porém, resiste. A família continuava a declinar as suas preferências, com o orgulho de uma velha estirpe que rememora antepassados. Fechei o jornal, paguei e saí para o silêncio que há dentro de mim. Talvez tenham razão, porventura a realidade não será mais que umas brejeirices debitadas ao microfone. Um anjo passou. Dei por ele porque um cão começou a ladrar desaustinado. Também a mim me apetece ladrar ou uivar à lua.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

On s'habitue c'est tout

“On s’habitue c’est tout”, foi isto que pensei enquanto bebia um copo de sumo de toranja. Quando introduzi este ritual na minha pacata existência, o sabor agreste – para não dizer amargo – da toranja era ainda uma revelação que me dava um prazer especial. Os anos passaram, a cerimónia matinal consolidou-se e, hoje em dia, confesso que o sabor do sumo começa a parecer-me demasiado doce. Foi por causa disso que me lembrei do verso da canção de Brel. Uma pessoa habitua-se e é tudo. Como sou um tipo anacrónico, quando era novo, enquanto os outros rockavam por tudo e por nada, eu ouvia música francesa e, entre todos os grandes da canção francesa, o de que mais gostava era do Brel, que por acaso não era francês, mas belga. Ainda hoje gosto bastante, mas aquele pathos do “ne me quites pas” não me comove ou não cai bem com a minha disposição de ânimo. Tudo isto pertence a um tempo em que eu tinha tão pouca idade que pensava que era existencialista. Lia os romance do Sartre e do Camus, sonhava com a rive gauche e achava que não poderia haver melhor coisa no mundo do que estar condenado à liberdade. Isto alguma influência teve na minha vida, mas é melhor nem pensar nisso. Agora, bebo sumo de toranja pela manhã e lembro-me de restos de canções do Brel. “On s’habitue c’est tout”.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

A nova santidade

O tempo não deixa de ser um motivo inesgotável de conversa. Saber das suas metamorfoses talvez seja a mais alta sabedoria que se pode adquirir. Hoje, porém, não vou falar dele. Não é que tenha outro assunto, não tenho, mas não se deve dar demasiada atenção a S. Pedro. Parece estar a perder as suas qualidades como gestor meteorológico. Compreende-se. Não é só o peso da idade. São todas as outras actividades que são distribuídas aos santos. Tendo em conta o elevado número de pecadores e o diminuto número de santos, até almas pouco caridosas perceberão que eles, os santos, sempre dados ao sacrifício, estão à beira do burnout. Deixemo-los então em paz. Hoje de manhã pus-me a caminhar. Consta que faz bem, o cardiologista recomendou-me, embora eu não tenha percebido lá muito bem o sorriso escarninho que arvorou. Ajuda a controlar a tensão arterial, combate o colesterol, elimina os males provocados por uma vida sedentária, escutei. Incrédulo, diga-se. Animado pela bondade do exercício, mas sem amor por ele, lá pus os pés ao caminho. De vez em quando passavam por mim crentes da mesma religião, um sorriso seráfico e a esperança de chegar ao céu da boa saúde. Só espero que eu não ostente tal estado patético na cara. Já basta o que ela é, quanto mais ter nela estampada a beatitude dos altares. Enquanto caminhava, ia meditando sobre esta nova religião. O pior são os radicais, disse para mim mesmo. Esses não caminham. Correm, correm, de rosto contorcido, a língua de fora, um aparelho ligado ao braço, parece que vão explodir. Esperarão também eles setenta virgens quando chegarem ao paraíso? Sempre que via um desses candidatos a mártires, eu abrandava o passo. Há que ter cuidado, já não tenho idade para me radicalizar.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O pedalador

Que dia este de Julho, exclamei para mim mesmo. Almocei tarde e deixei-me ficar em frente da televisão a ver a etapa do Tour. Um ciclista fugia, fugia, embrenhava-se estrada fora. Ia sozinho, como se um monstro tortuoso o perseguisse. Talvez a ideia de ser devorado por um dragão lhe desse forças nas pernas e lá ia ele, a subir e a descer, curva e contracurva, indiferente à paisagem, surdo para os incentivos, os olhos no futuro e um medo terrível do passado. Se fosse S. Jorge, por certo, esperava o dragão e matava-o, mas hoje não abundam heróis como aqueles que havia noutros tempos. Os heróis de hoje pedalam, que ped’alma, como escrevia o O’Neil. E enquanto o semideus pedalava eu adormeci em frente ao televisor, adormeci com o meu “passado a tiracolo”. Eu dormia e o ciclista, um italiano, dava às pernas, abandonado, afogueado, “com o provir na pedaleira”. Parecia que lhe tinham chegado fogo ao rabo. Talvez fosse uma baforada do dragão, admito agora que penso no assunto, e o pobre, que não era S. Jorge, toca de se despachar, para chegar à meta que deve ser uma espécie de coito, onde, a quem nele se abriga, nada pode acontecer. Terei sonhado? Terei ressonado? Não ouvi protestos. Quando acordei, lá estava o italiano no coito, protegido contra dragões, à espera que chegasse o camisola amarela, que tinha perdido o comboio e se atrasara vinte minutos, pois também os camisolas amarelas chegam tarde quando os comboios cumprem horário. O melhor é não sair de casa. Pode ser que apareça por aí um dragão e não tenho santidade suficiente para o enfrentar nem força para dar ao pedal, que a pedaleira está enferrujada e o passado a tiracolo pesa-me mais que o futuro.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Generalizações precipitadas

A dado passo da entrevista, um historiador e agora romancista, diz que o D. Carlos era um esbórnia. Faria mais sentido dizer que andava na esbórnia, mas sejamos sensíveis às liberdades poéticas. Dado ou não à pândega, teve um destino cruel que sempre julguei imerecido. Quem parece que ficava muito bem no lugar de rei era o último incumbente. As raparigas estavam todas apaixonadas por D. Manuel, o que não deixaria de ser um sinal da sua capacidade política, embora seja possível pensar que há nesta frase uma generalização precipitada. Imaginemos as pobres camponesas do interior, aquelas que nunca puseram os olhos numa folha de jornal, como poderiam imaginar o jovem rei em uniforme militar para que o seu coração se enternecesse e, por causa de sua alteza, se entregasse, tremente, ao sonho melancólico de um amor impossível? A verdade é que todos nós gostamos de fazer generalizações. Pessoalmente, esse prazer nasce-me da inclinação para a hipérbole. Talvez o meu gosto em exagerar a realidade se deva a algum defeito de visão em que nunca tenha reparado. Nem sei por que motivo me pus a escrever sobre os últimos Braganças que ocuparam o trono deste país. Julho nunca é um mês fácil. Também ele é dado a hipérboles e o exagero será a sua razão de existir. Como eu, Julho também terá um secreto defeito na visão.

domingo, 21 de julho de 2019

Sonâmbulos

Os longos domingos de Verão. Os almoços tardios prolongavam-se pela tarde, o calor zunia e as pessoas enfrentavam com estoicismo os desmandos do lugar e do clima. Nesses estios inacabáveis tudo parecia mais perfeito. A inocência do olhar transformava as coisas mais simples em acontecimentos memoráveis. Depois, enquanto o olhar perdia a inocência, a realidade desfazia-se da perfeição, como se, para nos experimentar, um deus nos obrigasse a essa dupla perda. Será isso a que se dá o nome de queda. Olho para as minhas netas e ainda vejo nos seus olhos, tão ávidos de realidade, essa doce ilusão, aquela que faz de um simples nada um grande acontecimento. Também o almoço de hoje será tardio e elas hão-de lembrar-se dos domingos de Verão, dos seus almoços, dos pequenos nadas, das corridas de bicicleta, como eu me lembro de uma entoação de uma tia-avó, de uma sombra que a certa altura se desenhava no quintal da casa onde nasci ou do vento a soprar as folhas das roseiras que ali havia. Na infância, somos sonâmbulos, doença que a adolescência nos há-de curar. Depois, quando a vida começa a declinar tornamo-nos de novo sonâmbulos, evitando, sempre que for possível, que a realidade nos incomode em demasia.

sábado, 20 de julho de 2019

Trabalhos manuais

Peguei num romance que começa com uma descrição de soldados de papel. Os primeiros são os couraceiros cabeças-redondas de Cromwell, os quais acabaram por ajudar ao funesto desenlace que levou Carlos I ao cadafalso. Talvez a decapitação faça parte das prerrogativas reais, pensei. A história está cheia de regicídios, mas hoje é sábado e o melhor é não pensar em coisas dessas. Voltando aos soldados de papel, lembrei-me que havia quem coleccionasse soldadinhos de chumbo. Talvez existisse gente que coleccionava soldadinhos de papel ou, melhor, de cartão. Por falar nisto, lembrei-me de um fatídico acontecimento da minha existência. No meu tampo, havia, para além do exame de admissão, um exame da quarta classe. O mais difícil para mim era, de longe, a prova de trabalhos manuais. Tínhamos de apresentar uma obra construída pelas nossas próprias mãos. Havia quem fizesse navios em madeira e outras coisas que eu nem imaginava serem possíveis. Eu, pobre de mim, não sabia o que as minhas mãos poderiam fazer. Não sei como nem porquê, calhou-me construir um moinho de cartão. Tinha de recortar as figuras e montá-las, fazendo dobragens e colando. Uma tortura. O pior foi que não conseguia colar aquela geringonça. A professora ao aperceber-se da minha inépcia, perguntou-me que cola estava a usar. Ao constatar que o problema não era da cola, deu-me três estalos na cara. Nesse momento devo ter tido pena que ela não fosse Carlos I de Inglaterra e eu, no abandono dos meus nove anos, um Cromwell justiceiro. Não sabia, porém, história de Inglaterra e limitei-me a ficar calado. A verdade, porém, é que a senhora não perdeu a cabeça no cadafalso e eu lá consegui colar o moinho. Nunca deixei de odiar os trabalhos manuais.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Ó sôtoura

Ó sôtoura, como está? E a família? Silêncio. Tudo bem, tudo bem. Ah sim, sim. Silêncio. Tem razão, tem razão. Silêncio. Também sou da sua opinião. Avançamos assim. Silêncio. Claro, claro. Acho que é o melhor, sôtoura. Nada a perder. Silêncio. A minha mulher é da mesma opinião. Silêncio, a mulher ao lado faz um esgar de concordância. Avançamos, avançamos. São indecentes. Silêncio. Pois, pois, logo se vê. Silêncio. Se achar melhor, passo por aí um dia destes. Silêncio. A sôtoura é que sabe. Silêncio. Cumprimentos lá em casa. Prazer em ouvi-la. Silêncio. Nada melhor que estar numa sala de espera de uma daquelas clínicas onde vão pessoas que só se dão com sôtouras e sôtoures e têm negócio entre mãos ou sabe-se lá entre quê, pensei enquanto deixava correr o tempo até que me libertasse da missão que ali me prendia. Nunca deixa de me espantar um certa casta de pessoas que insiste em partilhar com os outros a sua vida, talvez porque julguem que os outros não existem, ou por considerem a sua vida tão gloriosa que nos oferecem o relato para que, nós pobres mortais, sejamos iluminados e participemos, ainda que só por ouvir dizer, daquela glória mundana. Estas pessoas estão sempre a avançar, com tanta edificação, enquanto eu não avanço nem recuo. Mantenho-me parado, tão parado que, ao pé desta gente que avança sem parar, sou uma autêntica e genuína estátua. Ó sôtoura, também eu posso avançar?

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Do estado de ânimo

Os ânimos andam agastados por esse mundo fora. Talvez as pessoas não saibam o que hão-de fazer com a vida que receberam e então, para passar o tempo e enquanto a morte não chega, agastam-se umas com as outras, com a pátria e o mundo. Entregam-se a vitupérios e exprobrações, parecem prontas para lançar frondas por tudo e por nada. Nunca na vida imaginei, é curta a minha imaginação, que houvesse tantos cavaleiros andantes. Cavaleiros e amazonas, diga-se, pois também há por aí umas senhoras exaltadas, de prosápia em riste, que, como os justiceiros masculinos, estão dispostas, se crermos no que dizem, não só a tornar patente a estupidez dos outros como a ocupar o lugar da padeira de Aljubarrota, mas agora montadas a cavalo e brandindo a espada da sua inexcedível superioridade. Pensava sobre tudo isto enquanto caminhava pelas ruas aqui perto. Esperava-me uma daquelas tarefas a que não nos podemos eximir ou que decidimos que não nos podemos eximir porque a queremos executar. Contrariamente ao estado do mundo, as pessoas por aqui andam de ânimo calmo, não se lhes nota outras motivações senão aquelas que decorrem das necessidades que a vida impõe. Vão às compras, falam de futilidades, adornam-se conforme podem e caminham devagar sob a luz solar. Daqui, parece-me certo, não partirão exércitos para pôr o mundo nos eixos nem gente para endireitar o que está torto, e isso, confesso, deixa-me feliz e tranquilo. É melhor deixar passar o tempo com bonomia do que entregar-se à exaltação que sempre anima os cavaleiros andantes e as padeiras de Aljubarrota que pululam nesse estranho espaço virtual a que se deu o desditoso nome de redes sociais.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Vida civilizada

Se as pessoas não fossem tão susceptíveis, diria que hoje está um dia glorioso. Uma luz suave, um céu densamente nublado e, acima de tudo, sem o calor sufocante de Julho. Sento-me à secretária e faço o que tenho de fazer. Num dia como o de hoje é um exercício menos penoso, quase sou levado a crer que o que faço merece ser feito. Sei que não, mas a capacidade que o tempo me deu para me iludir parece ser um recurso inesgotável. Se não me iludisse, penso de imediato, a vida seria insuportável. A realidade é um monstro malcheiroso e a verdade tem um peso para o qual os ombros humanos não foram feitos. Isto lembrou-me aquelas pessoas que dizem sou muito frontal, digo a verdade na cara de toda a gente. Eu sou um caso perdido. Dispenso frontalidades e evito dizer a verdade sempre que posso. Não é por mal, nem por cobardia, mas por delicadeza. Por que razão hei-de submeter os outros à minha sanha de dizer verdades? A vida civilizada não é mais que um exercício prolongado de esquecimento da verdade. Será que estou a dizer a verdade ou estou, civilizadamente, a mentir? Ainda bem que as nuvens continuam firmes no seu lugar.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Esperança

Fui à caixa do correio e não havia nada. Espera-se sempre alguma coisa, mas a esperança, o mais das vezes, é infundada. Um dia não haverá caixas de correio, nem correio, nem gente que faça esse trabalho de trazer aquilo que a esperança espera. O futuro é uma incógnita, digo-me para me consolar. Olho para a rua e o céu está cinzento e sinto a opressão da atmosfera. Também aqui o corpo reclama, com esperança, uma tempestade. Não daquelas que chega e, num ápice, destrói meio mundo. Queremos sempre coisas à medida, nunca nos contentamos com aquilo que há. Uma tempestade ligeira, com chuva, relâmpagos e trovões, e a opressão desapareceria. Seria libertadora. Tenho de me despachar. Alguém está à minha espera daqui a pouco. Eu não sou mensageiro de boas notícias, constato. Que mania de dividir as coisas em boas e más. A vida passa indiferente às minhas pobres avaliações. É apenas um pulsar cego, sem causas nem desolações. Não espera nada e ri-se de quem, perante o seu império, fala de esperança.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Questões de igualdade

Os irmãos têm uma propensão inextinguível para a igualdade ou, talvez seja mais acertado, um sentido fino e doloroso para as desigualdades que sofrem. Ontem, depois de se combinar com a neta mais velha o almoço de hoje, a irmã, excluída por razões espácio-temporais, reivindicou de imediato o direito de ir almoçar sozinha com os avós. Exclusão com exclusão se paga, pensei. Ficou prometido. Não há nada que requeira mais cuidado e sensibilidade que a gestão das diferenças entre irmãos. Hoje, quando saí para o almoço combinado, o sol caía sobre a pele como uma lâmina afiada, abrindo sulcos por onde o calor penetrava no corpo, para explodir por dentro, liquefazendo o sangue e inundando a pele com um suor insuportável. Não nasci para este tipo de temperaturas, pensava, enquanto a neta exultava com as actividades da manhã, bendizia o facto de estar a jogar à neta única e, para meu pesar, cantava loas ao Verão. Agora que ela voltou para onde estava, tenho de lhe ir comprar um livro, mas já não me lembro do título. As pessoas arrastam-se, procuram as sombras e, apesar da inclinação estival que trazem no coração, talvez tenham uma leve nostalgia dos dias em que o inferno não fazia propaganda na Terra.