sábado, 24 de agosto de 2019

Pescadores de paciência

Passei uns dias num sítio – em Portugal, note-se – onde a temperatura recusa afrontar-me. Pelo contrário, sempre foi cordata e raramente me desmentiu a sensação de estar num daqueles países do norte, de onde imagino que há muitos séculos um desconhecido antepassado teria saído e aportado por aqui, para distribuir uns genes que, apesar de trambolhões e naufrágios, chegaram a mim, fazendo-me sonhar com paisagens frias sob a névoa, bosques e frutos silvestres, que só naquelas paragens haveria. Isto, porém, não merece confiança, pois sou dado a imaginar coisas e à prática da hipérbole. Nesses dias, de manhã, dava longos passeios perto do mar. Fazia parte da digressão entrar por um molhe e ir até ao farol. No molhe, encontrava invariavelmente uns quantos pescadores à linha, com as suas cadeiras, as canas, os anzóis, sacos e cabazes misteriosos. Quase sempre solitários. Por vezes, levantavam-se, recolhiam a linha manejando o carreto, que grasnava não sem gravidade. Depois, executavam um movimento de corpo, um balanceamento de trás para a frente, quase um passo de dança que lhes permitia lançar mais longe o anzol e logo se sentavam, a olhar hipnotizados as águas ou a fumar distraídos um cigarro. Nunca vi um peixe que fosse. Talvez eles se dediquem à pesca apenas como exercício de paciência ou para pagar alguma promessa, pensei numa altura. Agora que falo disto, lembrei-me de mim. Também eu sou um lançador de anzóis a que nenhum peixe morde o isco. Deveria ir pescar para outro lado, mas é tarde e o crepúsculo não deixa de ter o seu encanto.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Questões de pombos

Há pouco, na esplanada onde fui tomar café, entraram dois ou três pombos, que se saracotearam, de peito feito e cauda trémula, por ali, entre o prazer de uns e o nojo de outros. Em quase tudo, a humanidade reparte-se e, se o assunto toma dimensão, logo se formam partidos, onde gente açulada por algum chefe se prepara para degolar os oponentes. No caso dos pombos, eu era neutro, verdadeiramente apolítico. Nem prazer, nem desprazer. Achei-os, como sempre que os vejo andar, completamente ridículos e um pouco raquíticos. Mais o branco que os cinzentos, pois o peito era menos exuberante e a penugem parecia amarfanhada. Como é de desconfiar, não sei nada de pombos, a columbofilia nunca tocou sequer o círculo mais longínquo dos meus interesses. Falo agora deles porque, apesar de tudo, não é tão desolador quanto falar da espécie humana. Eles, honra lhes seja feita, não ostentam a designação de animal racional, que nós humanos tão orgulhosamente exibimos, embora isso pouco corresponda à realidade. E não se pense que estou a colocar-me fora da humanidade, num lugar sobranceiro para alardear a minha suposta mas nunca provada racionalidade. Pelo contrário. Que racionalidade haverá em escrever sobre pombos que entram numa esplanada? Nenhuma, dirá o leitor, e eu concordo de imediato. Eles lá se foram embora, num passo hesitante, depois levantaram voo e eu fiquei sem assunto. Também é verdade que podia falar sobre a mistela que uma mulher já entrada na casa dos trinta ia levando à boca. Agora, porém, seria eu que ficaria enojado e pronto para tomar partido a favor de alguma forma de abolicionismo. Tenho de me precaver destes impulsos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Desastres manuais

É um trauma antigo. Tenho uma relação difícil com os tubos de cola. Fundamentalmente, com aqueles minúsculos de onde sai uma substância translúcida que consegue até grudar o céu ao inferno, imagino eu. Exigem uma perícia no manuseamento que a natureza ou Deus decidiram não me conceder ou, para persistir no registo religioso, o diabo me roubou. O certo é que, sempre que me aventuro em unir aquilo que o tempo ou o descuido desuniu, fico com os dedos lambuzados com a maldita mistela, a qual, sem me dar tempo para reagir, seca e forma uma película sobre a pele. Irrita-me a insensibilidade digital a que fico sujeito. Não una o homem aquilo que foi desunido, parece-me uma injunção a não desprezar. Suspeito que haverá um produto que dissolva a mixórdia que me envolve os dedos, mas nunca me lembro de o comprar, caso exista. Fico assim cativo da minha inabilidade estrutural. Quando isto acontece, como há pouco, olho para as minhas mãos, como se contemplasse a mola propulsora de um desastre. Depois, rio-me. Nem disso, por pequeno que fosse, seriam capazes. Os trabalhos manuais sempre foram uma penitência excessiva e se oiço a palavra bricolage afasto-me de imediato, num exercício de verdadeira prudência.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Do falhanço como obra de arte

Falhar a vida é uma tarefa meticulosa, um exercício contínuo que exige uma persistência sem limites. Apesar da péssima fama com que a turba, acicatada pelos funâmbulos do mérito, acolhe o falhado, este pode ser altamente criativo. Não é descabido pensar a falência existencial como obra de arte. O candidato a falhado pega na matéria da vida e trabalha com ardor sobre ela. Estica-a, encolhe-a, testa-lhe a plasticidade. Um golpe aqui, uma pressão acolá, um corte mais além. Sempre que suspeita um plágio, uma citação ou até uma mera referência, ele retorce a sua vida, até que a torna incompreensível. Nessa altura, quando a obra se torna inédita, de uma originalidade irrecusável, começam a sussurrar nas costas do artista do falhanço. Crescem os dedos acusadores. De tanto se alongarem, alguns destes dedos transformam-se em verdadeiros estiletes. Os sussurros são já a vozearia que a alcateia não consegue calar, mas como há quem se faça eunuco por amor do reino dos céus, também o falhado se faz surdo por amor da sua falência. Com o meu falhanço às costas, deixo que Setembro se aproxime e com ele me seja atirado à cara o daguerreótipo da minha vida. Há sonhos que se deveriam apagar mal acordamos, penso enquanto me preparo para ir ver como está o mundo lá fora.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

A vida quotidiana

Um brilho áspero desce dos céus e poisa impenitente sobre os ombros dos transeuntes. Estes caminham ajoujados ao peso dos raios solares, suspiram e limpam o suor a lenços sujos e já gastos. Em sentido contrário vem uma mulher coberta de folhos, saracoteando-se no pequeno palco que a rua lhe oferece. Alguns olhos, tomados por uma febre raquítica, prendem-se aos requebros e imaginam desfolhadas. É difícil perder o atavismo rústico, pensei. Por fim, fez-se silêncio lá dentro. As vozes incomodavam-me a visão. Abro a janela e deixo entrar o ar vindo da rua. Com ele chegam as imagens do que se passa lá fora. O escritório torna-se um hall onde se encontram as mais inusitadas pessoas. Olham-se desconfiadas, garras afiadas, aturdidas por se encontrarem ali. Um homem baixo, olhar velhaco, tira uma navalha do bolso, enquanto a mulher dos folhos pára os bamboleios. Prepara-se para gritar. Um pombo aproxima-se da janela, mas afasta-se de imediato assustado. Também ele viu aquilo que só eu vejo. Bato as palmas, aquela gente sai pela janela, que fecho de imediato. Lá em baixo, o homem de olhar velhaco esconde a navalha, enquanto as ancas da mulher dos folhos retomam o seu ondular campestre. Então, enlouqueço lentamente. O melhor será cobrir os móveis com gualdrapas, digo, mas ninguém quer saber daquilo que eu digo.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Um cavalo desenfreado

Olho para o relógio e sinto na face um ricto de desagrado. A tarde correu mais depressa do que tinha pensado. O almoço prolongou-se, sem que uma fronteira definida o colocasse perante um fim imperativo. Nestes dias em que os grilhões do dever se abrem para criar uma ilusão de liberdade, relógios e calendários são tomados por uma imprecisão nefasta, banhando-se no negro oceano da vagabundagem. O tempo, assim liberto da vigilância apertada, é tomado por um galope desenfreado, como se fugisse de uma maldição ou perseguisse uma recompensa rara e irrecusável. São estes pensamentos que me atormentam em Agosto, o mais difícil dos meses. Viajo sempre com grande dificuldade na paisagem que este mês oferece, vítima de um dilema que ainda não estou em condições de resolver ou sequer de partilhar. Abro um livro e leio: «As raparigas mantinham-se fascinadas, com o olhar vidrado». A ideia de um olhar proveniente de olhos de vidro cativa-me de imediato. Só esse olhar poderia deter o tempo, aprisioná-lo, suspender-lhe o vício de se mover sempre para a frente. Depois, penso na infelicidade das raparigas com olhos de vidro. Comovo-me e devolvo-lhes o olhar animal que era o delas. O tempo desata logo num galope desenfreado, até que as raparigas, arrastadas pela fúria do cavalo, morrem de velhice. Lá fora, os carros passam indiferentes ao meu luto, à dor de tão rapidamente o tempo ter levado com ele as promessas do meu amor.

domingo, 18 de agosto de 2019

Pensamentos lúgubres

Há palavras que detesto, mais por uma questão estética do que ética, e outras de que gosto, porventura pelas mesmas razões, mas não estou certo. Gosto da palavra deriva quando usada na expressão à deriva. Há em mim uma inclinação para simpatizar com todos os que andam ao sabor das ondas ou da corrente, daqueles a quem a vida não concedeu poder para governarem o precário bote da existência. Sinto com eles uma espécie de irmandade, um vínculo indissolúvel. Estar à deriva é a autêntica condição humana, digo para mim mesmo. Estes, porém, são pensamentos lúgubres para um domingo de Agosto. Há dias que imagino como seria bom ser um profeta do Antigo Testamento e fazer sair da minha boca a cólera que habita no coração divino, mas temo que, caso alguém me escutasse, acabaria por rir-se de mim. O tempo dos profetas coléricos acabou e os que restam andam ao sabor da corrente. Como não sabem nadar, acabam por se afogar. Estes, todavia, continuam a ser pensamentos sombrios. Ao passar diante de um espelho, este devolveu-me a imagem de um profeta rubicundo e irado. Antes mesmo de começar a distribuir anátemas sobre o mundo, ri-me de mim mesmo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O canto do galo

Nestes dias tenho ouvido um galo cantar por volta das seis da manhã. Para honrar um modo de vida que está a ser rapidamente rasurado, levanto-me e vejo o alvorecer do dia. É uma hora assombrosa. A realidade parece ter saído há momentos dos dedos do criador e, mesmo a mim, um pessimista velho e contumaz, tudo parece ainda possível. A aurora traz consigo um excesso de promessas que o corpo e a vontade são incapazes de cumprir. Muitas vezes, os homens tomaram a aurora como símbolo de um mundo novo a vir, esquecendo que ela não era mais que o resultado de uma prestidigitação astral, da ilusão do sol orbitar o lugar que nos foi dado para viver, ou do mais prosaico rodopiar da terra em torno do seu eixo. Naqueles instantes, porém, não quero saber nada disto. Aspiro o ar fresco da madrugada, embebedo-me de promessas e quase elevo aos céus uma oração, para que os poderes do alto suspendam o tempo. Não sou convincente, os deuses não me escutam, e não me resta senão ir de novo para a cama, para acordar numa hora menos dada a ilusões e promessas que não se hão-de cumprir.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Aves e anjos

Nos fios do telefone conto seis andorinhas. Há alguns dias que as vejo naquele lugar. Estão ali suspensas sobre a terra. Parecem descansar ou, então, têm uma missão que não consigo vislumbrar. Não há por aqui ninhos que justifiquem a sua presença, mas o meu conhecimento de ornitologia, como praticamente de tudo, é nulo, o que me impede de compreender os seus hábitos, movimentos e modos de vida. Na minha mesa tenho um livro sobre metafísica e lógica modal. Encolho os ombros e penso que melhor fora ter um tratado de angelologia. Apesar de ninguém se interessar pelo assunto, não há saber mais profícuo que aquele que nos informa sobre a natureza, o papel e as divisões taxionómicas desses intermediários entre os homens e Deus. Se percebesse os anjos, ocorreu-me, talvez fosse capaz de captar o sentido das andorinhas insistirem em ficar paradas nos fios de telefone. E, não há como evitar a hipótese, num qualquer mundo possível, as andorinhas serão mesmo anjos disfarçados que, necessariamente, vigiam os nossos actos. Podia bater as palmas e elas voavam, pensei, mas não tenho direito de distrair os anjos quando estão em missão.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Questões de espírito

Há pessoas pacientes e dadas à extrema minúcia que registam tudo o que julgam digno de nota. A mim sempre me faltou a inclinação para a minúcia e, se pensar bem, o dom da paciência. Por norma, não registo seja o que for. Nunca deixei de admirar aqueles que mantêm longos ficheiros de citações e notas, que elaboram com diligência e espírito de futuro. Na verdade, sempre fui dado a uma anarquia contida, a uma desordem que encontrava a sua raiz numa certa ordem que reside na memória e que me foi dada por herança genética. Era e é neste suporte, na memória, que confiava os meus registos. Se mantivesse um registo de citações não deixaria de lá inscrever a resposta que Madame de Montsousonge deu ao pobre Jan, que, acossado pelo despeito ou pelo ciúme, pôs em causa a sua virtude: «A minha virtude é o meu único luxo». A ambiguidade da última palavra é o segredo da sublimidade da resposta. Será a virtude um objecto de preço elevado? Será ela uma coisa dispensável? Será o sinal de excelência? Será uma mera extravagância? Que pena eu não usar a prática do registo de frases memoráveis, agora que a confiança na memória se desvanece. Em breve esquecerei a frase, depois Madame de Montsousonge. Por fim, o livro onde li tudo isso. É uma pena, pois sempre podia utilizar a frase para parecer espirituoso, eu a quem sempre faltou espírito.

domingo, 11 de agosto de 2019

Adormecer

Há um barulho por aqui que me incomoda o repouso. Parece alguém a bater com um maço numa estaca, mas, tendo em conta que o ruído se prolonga há muito, não é provável que haja um braço tão obstinado. Penso, então, numa conspiração da natureza para me atormentar nestas horas em que deveria entregar-me ao mais escandaloso dos ócios. Se fechar a janela tudo cairá no silêncio, mas não me apetece sair daqui. Tenho dois livros entre mãos. Hesito sobre qual deverei usar como soporífero. Não que sejam desinteressantes e enfadonhos. Não são. Durante muito tempo, se acordava por volta das cinco da madrugada, era tomado por uma insónia que me impedia de dormir as horas que faltavam, o que provocava em mim um pequeno tormento, que só tinha fim quando o despertador dava sinal para sair da cama. Descobri que o melhor remédio é ler. Pego num livro, leio até que o sono chega e eu deixo-o cair. É isso que vou fazer agora. Uma pessoa nunca pensa que chega a este grau de decadência, mas a realidade é o que é.

sábado, 10 de agosto de 2019

Conversas de esplanada

Espreguiço-me devagar por dentro do sábado. A trama inesgotável do mundo cansa-me e há muito que desisti de esperar que alguma sensatez desça sobre a turbamulta. Esta gosta de ulular, o que, não fora o ruído, parece-me muito adequado. Na esplanada, duas mulheres em modo balzaquiano tagarelam de mesa para mesa, sem que cuidem de moderar o débito sonoro. A inevitável excelência das respectivas filhas não me espantou. Raras são as mulheres que, ao falar da prole, resistem à tentação da hipérbole. Se falam dos maridos são mais comedidas, quando não francamente omissas. Nessas alturas a retórica escasseia e a imaginação não encontra combustível com que se ateie. Isto é o meu cinismo a pensar alto sobre a comédia humana. Tento ler uma crónica do Expresso, mas bocejo. Salva-me a ideia de que no Douro alguém envelhece chá chinês em pipa de Vinho do Porto para o vender na China. O mundo é um lugar muito mais perfeito do que aquilo que estou disposto a admitir. O tempo escoa-se entre os dedos. Levanto-me, e as mulheres em modo balzaquiano ainda competem no encómio filial.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Sextas-feiras de Agosto

São elusivas as sextas-feiras de Agosto. Acordam devagar, bocejam, espreguiçam-se e levantam-se como se fossem qualquer outro dia. Não vale a pena sentir-se afrontado com o desplante. Rapidamente, Agosto entregará a alma ao criador e as esquivas sextas-feiras logo perderão o traço fugidio com que agora se disfarçam. Hoje pude consultar a data em que, a partir dela, todas elas serão como as de Agosto. Faltam três anos e nove meses. Encolhi os ombros e fui tomar café a uma esplanada. Há que beber o cálice até ao fim, pensei. Colónias de turistas enchiam o ar com linguajares diversos. Fiquei por ali a ouvir aquela babel, enquanto olhava o horizonte em busca de sinais de chuva. As línguas diferem mais pelo ritmo do que pelas palavras, constatei mais uma vez. Uma tatuagem descia do ombro para o braço, e toda a harmonia e beleza que havia na jovem mulher tatuada se dissolvia ali, na pele maculada por cores soturnas e imagens gastas. Ao pensar nisso ri-me do meu gosto desajustado e conservador. Abri o livro, mas a prosa resistiu às minhas incursões. O concerto das nações impedia-me a leitura. Levantei-me, antes que o dragão da tatuagem se soltasse da mulher e lançasse sobre mim o fogo do seu desprezo.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Da origem da homossexualidade

Estar de férias é uma possibilidade única para aumentar a cultura científica. Faço os possíveis para não dissipar uma oportunidade. Até ontem, infelizmente, nunca tinha ouvido falar do bispo cipriota Neophytus da Igreja Ortodoxa Grega. Não fora o ócio, teria perdido o seu contributo decisivo para a ciência. Confrontado com a vexata quaestio da existência de gays, acabou por dar uma das explicações científicas mais notáveis sobre o fenómeno (ver aqui). Com modéstia, sua Excelência Reverendíssima explicou que a causa reside nos pais. Se o pai, num momento desavisado de luxúria, se enganar no caminho natural e sodomizar a mãe, o rapaz nasce gay. É o que acontece com pais que sabem pouca Gramática e nunca ouviram falar de homonímia. Confundem recto caminho com caminhar pelo recto (o sr. bispo perdoar-me-á a brejeirice e o leitor, o fácil trocadilho). Seja como for, a sabedoria do alto dignitário da Igreja Ortodoxa é um autêntico ovo de Colombo, uma evidência mais evidente que a do cogito cartesiano, uma inspiração para todos. Assim, nem preciso que sua Excelência Reverendíssima venha explicar por que existem lésbicas. É óbvio, a partir da sua sábia lição, que se o pai, ignorante em Geografia, perder o norte e confundir a boca da mãe com a vulva e se se entregar, confuso e desorientado, à prática da cunilíngua, a rapariga a nascer só pode ser lésbica. As lições práticas de tal conhecimento científico são fáceis de extrair. Há que estudar Gramática e Geografia para evitar a homossexualidade. O bispo pode ser Neophytus de nome, mas não é neófito nenhum na via da ciência.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A virtude da preguiça

Quanto mais depressa se aproxima a catástrofe mais rapidamente corremos para ela. Fiquei espantado com a minha sabedoria. É o que dá ler os jornais, essa oração da manhã do homem moderno. O que vale são as férias. Quer lá uma pessoa saber o que pode acontecer amanhã se agora se pode entregar ao exercício virtuoso da preguiça. A Igreja Católica, é certo, decidiu condená-la, mas é uma condenação espúria, para não dizer imoral. Que a Igreja tenha condenado a acídia, compreende-se. Só um espírito maligno pode ficar melancólico por receber bens espirituais, mas traduzir isso por preguiça e meter esta nobre virtude no rol daquilo que há-de perder eternamente uma pessoa é inaceitável. Há quem tenha feito um elogio da preguiça, mas tendo em conta o sogro do autor, o panegírico foi desprezado. A estultícia dos homens nunca acaba. Se estes fossem mais preguiçosos talvez as catástrofes fossem coisas mais longínquas, pensei. Não sei se foi da chuva da manhã, mas hoje só me ocorrem pensamentos sombrios e ideias sem sentido. Talvez não tenha nada para dizer, como é habitual, e o melhor é calar-me.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Fine-tuning

Pouco depois do almoço, antes de adormecer no primeiro sítio em que me hei-de sentar, dei uma vista de olhos pelas vendas de livros que há na Internet. Numa propunha-se A Noiva Despida, de autor anónimo, noutra A Viúva Grávida, de Martin Amis. Não comprei nenhum, mas pude entregar-me a uma benfazeja meditação. A ordem do mundo é uma das coisas que nunca deixa de me surpreender e de me maravilhar. Pessoas influenciadas pelo indeterminismo poderão dizer que tudo se deve ao acaso. Eu, pelo contrário, vejo nisto um exemplo de fine-tuning, essa sintonia precisa que nos mostra não apenas a harmonia que reina sobre o caos como a exactidão com que tudo é disposto neste mundo, para que o desarranjo não leve a melhor sobre a arrumação. É claro que num universo bem ordenado como o nosso, primeiro despe-se a noiva e só depois se morre deixando-a grávida. Não faria sentido morrer deixando uma viúva e só depois desse infausto acontecimento despir a noiva para a engravidar. Ela poderia ficar perturbada e não conseguir conceber ou, então, o noivo já morto ser vítima de um despropositado ataque de impotência. Evitemos o absurdo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Despoletar

Estava eu no café, tranquilo, a ler o jornal, quando oiço alguém a despoletar. Eu sei que o prefixo des- tem propriedades que o tornam errático nas bocas mais insuspeitas. É um prefixo volúvel, inconstante, instável. Em suma, um cabeça no ar. Aquela mulher, talvez por causa dos anéis que lhe cobrem os dedos ou das pulseiras que chocalham ao vento, despoletou, tal como há quem destroque notas. De todas as leviandades do prefixo, a que me causa mais engulhos é mesmo a do despoletar. Uma mania como qualquer outra, a que se deve dar o devido desconto. Olhei para o telemóvel e a aplicação que me controla o fitness – meu Deus, a que graus de infâmia uma pessoa chega – pergunta-me se eu quero aumentar de nível. Olho-a com desprezo. Ela insiste e propõe-me mais dez minutos por dia de movimento. Em movimento? Levanto-me irritado com a sem-vergonha da aplicação. Quem lhe terá dado confiança para fazer sugestões? Vou ao balcão, peço para me destrocarem uma nota e despoleto o movimento que me há-de levar dali para fora. Hoje é o quinto dia de Agosto e lembro-me de um verso de Eugénio de Andrade: Ao inverno chega-se pela ausência de gaivotas.

domingo, 4 de agosto de 2019

As tarde de Agosto

Ontem as netas foram-se embora com os pais. Ao sair, a mais nova voltou-se e, misturando a ironia e o imperativo, disse: agora, os avós não vão chorar. Não sei o que admirei mais, se o atrevimento, se a capacidade para ficcionar, pois nunca os avós choraram quando elas se foram embora. Hoje, domingo, o almoço foi mais tardio. A verdade é que a casa ficou vazia, sem a agitação delas, os pequenos dramas das raparigas e a esperança toda que há dentro de crianças que caminham para adolescência. Também é verdade que deixei de ter bicicletas para levar a remendar furos, uma das minhas actividades nos últimos dias. Eu sei, eu sei, que sempre se podem reparar câmaras de ar em casa. Antigamente, não sei se hoje, havia os remendos Tip-Top, mas não sou dado ao exercício da bricolage e falece-me o talento para a mecânica. Arrumadas as bicicletas, o tempo cresce-me. Assim, posso banhar-me no silêncio e nadar em oceanos de palavras, lembrando-me dos Verões em que as tardes se dilatavam quase até ao infinito e eu lia o Ciclone e o Condor, o Falcão, onde o meu grande herói era o Major da RAF Jaime Eduardo de Cook e Alvega. Agora que o Major Alveja já não abate nenhum avião da Alemanha nazi, entretenho-me a ler as Memórias de um Morto. O tempo não está para gente tão viva quanto o piloto luso-britânico. Quando o meu neto crescer, hei-de falar-lhe do grande Major, o meu herói dos tempos da escola primária. Tenho que fazer os possíveis para não me esquecer.

sábado, 3 de agosto de 2019

Incongruências em Agosto

De que tecido serão feitos os sábados de Agosto? Não sei porquê, mas esta pergunta assaltou-me há pouco ao chegar a casa. Tenho dias assim, o meu cérebro, devido a algum desarranjo neuronal, dispara à queima-roupa perguntas incongruentes. A incongruência reconhecida da pergunta tranquilizou-me. Teria de lhe dar uma resposta sem sentido, como, por exemplo: os Sábados de Agosto são de popelina, enquanto os de Novembro são de repes. Assim estou dispensado. A rua de onde vim tinha um cheio a férias grandes, uma rua feita de sombras pesadas e ausências notadas quando chegam os dias oficiais para as pessoas se cansarem de tanto descanso. Estamos num tempo em que toda a gente acha que vai ler livros, dar grandes passeios, passar tardes admiráveis entre amigos. A realidade, porém, não há-de estar pelos ajustes. Eu recolho-me em mim e penso num eremitério onde me pudesse excluir da humanidade. Logo me vem à memória a frase o homem solitário ou é um besta ou é um deus. Nunca tendo dado pela existência em mim de um traço divino, inclino-me para a primeira possibilidade. É o que dá ser assaltado por perguntas incongruentes. Tanto quanto sei, mas sei poucas coisas, nunca Agosto fez bem a ninguém.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Chocolate negro

Hoje atravessei a cidade de lés-a-lés. Estava modorrenta, ainda com menos gente do que é habitual, o casario, aquele mais antigo, não tinha melhorado de aspecto desde a última vez que o vi. Deveria sentir-me deprimido. É a obrigação de qualquer um que um dia a tenha visto vibrante na sua pequenez, a fervilhar de negócios e de gente, mas não me senti. Pelo contrário, estava bem disposto e cheio de bonomia. Até o que está decrépito me pareceu novo. Tudo se deve, porém, ao chocolate negro que por vezes, furtivamente, me tenta. O chocolate negro, informa-me um estudo, pode aumentar o bom humor e aliviar os sintomas de depressão. Eu caio de joelhos agradecido. Só tenho medo que o hábito faça passar o efeito. Ainda hoje, em consulta com o cardiologista, lhe disse que a substância hipotensora, quando a comecei a tomar, tinha um óptimo efeito sobre os meus estados de alma. Tudo o que me aborrecia e irritava deixou de o fazer. Se queriam que o branco fosse preto, eu queria lá saber. Com os anos o efeito passou e quando trocam o preto pelo branco fico irritado. O meu problema é se o efeito do chocolate negro também passa. De que valerá comê-lo se a realidade depressiva me parecer depressiva? Não há coisa pior que a realidade. Seja como for, acho que, nesta terra, toda a gente deveria comer chocolate negro.