segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Videovigilância

Hoje pareço um bombista suicida com um aparelho preso ao pescoço. A finalidade é espiar-me o coração para detectar anomalias. Por vezes, ele decide dançar fora do ritmo programado. Não que entre em grandes delírios, mas o médico acha por bem submeter-me a este tipo de big brother. Aliás, a coisa começou hoje com um ecocardiograma, onde um operador de uma máquina anda com uma espécie de câmara e, enquanto observa, o filme no monitor, faz cortes e medições. Isto entrou-me pela manhã dentro e, de alguma forma, interferiu na trivialidade do meu dia. Apesar de já se notar o crescimento das horas de luz, chegámos ao momento do crepúsculo. Uma luz de cinza cai sobre a cidade. Anuncia a noite. São ainda muitas as coisas que me esperam. Talvez fiquem registadas no aparelho de videovigilância cardíaca. Nunca se sabe.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Escuridões

Tem estado um dia tão cinzento e chuvoso que ainda não pus um pé fora de casa. Os domingos invernosos são um convite à introspecção, ao exame da vida. Consta que o velho Sócrates – ou Platão por ele – terá dito que só a vida examinada vale a pena ser vivida. Resta saber qual a intencionalidade desta máxima. A mais óbvia é a que nos diz que a vida só ganha valor ao ser examinada. Podemos, porém, pensar que só no exame descobrimos o valor da vida, o que implicaria que esta, por si, seria sempre um valor, mas que só se tinha consciência dele caso ela fosse submetida a avaliação. Um animal não-humano limita-se a viver, mas as pessoas precisam de submeter a sua existência a um escrutínio minucioso. Talvez seja por causa disto que existem domingos de Inverno como o de hoje, para que possamos, no recôndito do lar, projectar o crivo da razão sobre a nossa existência. Não foi o meu caso, pois tinha mais que fazer do que olhar para o fundo negro da existência, pois qualquer existência, quando se torna pretérita, não é outra coisa senão um poço escuro. E para escuridão basta o do dia. Tenho de ir arrumar umas coisas, antes que chegue a noite.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Propriedade

As festividades renderam-me um acréscimo de novecentos gramas, segundo informação fidedigna da balança, que só a deu depois de pisada. Não sei por que se submete ela a tal humilhação. Imagino que a balança seja já um dispositivo obsoleto ou a caminho da obsolescência. Deveria bastar uma câmara para calcular o peso. Passava-se sob ela e num monitor aparecia à informação. Recordo-me bem dos tempos que não havia balanças em casa. As pesagens eram feitas na farmácia. Depois, as balanças democratizaram-se para desassossego dos pesados, pois neste tema vale mais ser ligeiro do que pesado. Tem estado um verdadeiro dia de Inverno. Chuva, frio, embora não haja vento. Nas ruas, as pessoas caminham com caras invernais, onde resplandece o incómodo climático. Não me queixo, pois antes assim do que a ominosa canícula que, por aqui, vai, muitas vezes, de Maio a Outubro. Ao arrumar uns livros, encontrei um de Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado. Tem a uma assinatura de posse, a minha, o local de compra e a data, precisamente 2 de Fevereiro de 1987. Em tempos, fazia este tipo de declaração de posse, mas passou-me. Talvez tenha compreendido que, na verdade, nada possuímos. Somos apenas fiéis depositários de certos bens, que depois irão encontrar, caso encontrem, outros fiéis depositários. A ideia de propriedade contém em si uma certa hübrys. Como é que seres transitórios se arrogam a dizer que algo lhes é próprio, se nem a sua vida é propriedade sua. Isto não significa que os bens devem ser comunais. Significa apenas que aquilo que designamos como nosso é apenas uma coisa que está sob o nosso cuidado e, como compensação, podemos usufruí-la. Por exemplo, as balanças que teimamos em pisar para que elas nos insultem com o peso que devolvem.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Considerações intempestivas

Dia de Reis e ainda não comi uma fatia do bolo inventado em honra dos Magos. Confesso que, por aqui, foi substituído pelo bolo-rainha, mas não consta que existissem rainhas-magas. Seria, por certo, uma época em que a magia estaria nas mãos dos machos da espécie, o que pode explicar o carácter ilusória da coisa. Os homens são dados a ilusões, inclinados à idealização, enquanto as mulheres estarão, desde há muito, mais próximas da terra e mais inclinadas a dar atenção à realidade. É provável que estas considerações vão contra o espírito da nossa época, no qual todas as palavras têm de ser não só medidas, como ainda pesadas. Isto assemelha os vocábulos aos recém-nascidos. Nasceu, às quinze horas e três minutos, um menino com quatro quilos e cinquenta centímetros de altura. A linguagem, numa língua com centenas de anos, encontra-se em regressão, aproximando-se da sua existência intra-uterina, que é aquela que antecede o momento em algo vem à luz, para ser medido e pesado. O dia já teve melhor aspecto. Já teve sol. Agora, porém, acinzentou-se e exibe um rosto soturno, uma cara de poucos amigos. Espera-me uma visita, sempre dolorosa. Há que pôr os pés ao caminho, isto é, fazer deslizar as rodas no alcatrão.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Um dia que se ensarilhou

Há dias em que tudo se ensarilha. Foi o caso de hoje. Os meus planos, meus pobres enganos, para citar um certa canção brasileira, perderam o norte e cheguei a esta hora adiantada da noite sem vir aqui registar mais um dia. Talvez estes textos sejam um calendário que se vai construindo. Tem duas características dignas de nota. Por um lado, tem buracos, como se o tempo tivesse hiatos, se suspendesse, para voltar a correr. Por outro, é um calendário que não traz os dias futuros. Só os presentes e os passados. Será um calendário bem mais adequado do que os normais. Imagine-se que se comprou em Janeiro um calendário de 2023. Está ali, naquela construção dividida em meses e semanas, a ideia de que existe um futuro, que ele é uma realidade. Ora, isso é manifestamente falso. Não existe, neste momento, nenhum dia 14 de Maio de 2023. Caso estes textos sejam um calendário, eles são bem mais fiéis à natureza do tempo. Não há textos futuros, mas apenas o texto presente e os pretéritos. O futuro nunca existe, pois, cada momento vivido é sempre presente, e o próprio passado só existe nos textos, como memória. Não sei bem o que Agostinho de Hipona veio fazer para esta conversa, mas que lá veio, ele veio. Talvez seja o cansaço. Ora, o tempo não é uma coisa que neste momento me ocupe. Tenho estado mais interessado no que um certo poeta e teórico literário português escreveu sobre a arte, a arte moderna, no caso a arte literária. A arte seria uma forma de expressão do artista, como modo de se libertar do peso da comunidade, manifestar a sua individualidade, salvando-a da pressão do grupo.  Assenta  a sua posição na dicotomia arte como expressão (a arte estética) e a arte como comunicação (a arte didáctico-recreativa). A primeira não considera o público e centra-se na expressão da singularidade do artista. A segunda visa contentar o público ou, de algum modo, educá-lo. É possível que esta descrição se aplique, de modo muito ajustado, ao século XX e, mesmo, ao XXI. Contudo, se a arte não se deve sujeitar à pressão do rebanho, com as suas normas, incluindo as estético-artísticas, terá de ficar cativa das idiossincrasias do artista? Este dilema tem toda a aparência de ser falso. É plausível que se possa pensar e praticar a arte, sem que esteja sujeita à relatividade do grupo ou à subjectividade do artista. Isto, porém, seria conversa para outra hora, que não esta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O estado a que se chega

Cheguei há pouco a casa, comi meia dúzia de líchias, sentei-me na secretária e adormeci. Isto diz tudo do estado a que uma pessoa chega. Se sonhei, não faço ideia, pois raramente tenho consciência de sonhar e consta que sonhamos todas as noites. Seria um caso espinhoso para qualquer discípulo do velho Sigmund. Como poderia haver sessões de interpretação dos sonhos? Talvez exista uma interpretação psicanalítica para o facto de não ter consciência de sonhar. Aquilo que se oculta no meu inconsciente está de tal modo recalcado que nem no sono se revela, ainda que de forma simbólica. Por motivos que não vêm ao caso, passou-me sob os olhos uma citação do Abade de Sieyès. Talvez o mundo fosse um lugar melhor se esta personagem não tivesse existido, mas não há garantia. É possível que aquilo que ele escreveu andasse no ar do seu tempo e que um outro o tivesse escrito. Nunca sabemos se é o espírito do tempo que conduz a que se digam certas coisas ou se é o facto de certas coisas serem ditas que configura o espírito do tempo. Seja como for, não me é permitido, pelo autor destas linhas, escrever sobre o que escreveu o tal abade. Nestes textos, a política está rigorosamente banida e, como narrador, tenho de conformar-me às volições do autor, apesar de discordar dele em quase tudo. Isto não significa que exista um código narrativo que regula, com a força da lei, as actividades deste narrador. Não se chegou a tanto, mas há uma etiqueta, como um conjunto de regras de boa educação, que orienta o que se pode ou não narrar. Ainda a semana vai a meio e já estou com falta de assunto. Pela janela chega-me a luz crepuscular que há-de conduzir o dia ao sepulcro onde se unirá, em amoroso amplexo, à noite. Um verdeiro noivado do sepulcro. Se não arrepio caminho, ainda dou em ultra-romântico.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Aliteração

Comecemos imersos na aliteração. O retorno à realidade revela-se repetitivo, que raio. As festividades que vão do Natal ao Ano Novo são uma suspensão da realidade, uma visita a um outro mundo que logo se dissolverá. Vivemos numa sociedade que ainda valoriza o trabalho, esquecendo dois dados fundamentais da nossa cultura. Em primeiro lugar, a palavra trabalho tem origem no vocábulo latino tripalĭu, que designa um instrumento de tortura composto por três paus. O trabalho é uma tortura. Do mito judaico da expulsão de Adão e Eva do paraíso faz parte do castigo infligido à espécie humana o trabalho. A linguagem e os mitos têm um fundo poder descritivo da realidade. Basta prestar-lhes um pouco de atenção para compreendermos muito do que se passa. Em certo momento do século XX, a escuta da linguagem e dos mitos era uma metodologia pertinente para interrogar e tentar compreender aquilo que nos envolve e quem somos. Seria uma espécie de arqueologia dos sentidos que o tempo foi depositando em diversas camadas. Talvez tenha caído em desuso porque, na verdade, estava assente na ideia de que aquilo que é mais antigo estará mais próximo da verdade. Isto desmentiria uma concepção da história humana como aproximação progressiva à verdade, fazendo dela um processo de afastamento desse momento auroral em que a verdade se revelou aos homens, para que estes a fossem esquecendo, num processo involutivo que contraria a crença no progresso e na evolução da humanidade. O entardecer está belíssimo, uma luz solar ainda viva a reverberar na copa das árvores que o Inverno não despiu. Na rua, as pessoas, contaminadas pelos raios luminosos, parecem felizes e de ânimo elevado, resistindo, apesar de reféns, ao repetitivo retorno à realidade.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Hidrotecnia

O ano começou sem poesia, mas com fogo-de-artifício, que é uma espécie de poesia para quem não gosta de poesia. Isto não significa que gostar daquilo que os poetas – ou alguns poetas em alguns poemas – escrevem e gostar de fogo-de-artifício sejam incompatíveis. Não são, mas quem espera algum contentamento encontrá-lo-á mais facilmente na pirotecnia no que na arte. Como se vê, começo mal o ano com uma meditação que não lembraria ao diabo, a quem, como se sabe, lembra muita coisa. Ainda não fui à rua este ano. Está um dia sombrio, o vento abana os ramos do arvoredo. Começou agora a chover. Uma chuva forte, enviesada pela ventania, como se trouxesse um desejo de fustigar os incautos que se passeiam na avenida, arrastados por cães minúsculos, a cumprir a sua função de dedicados cuidadores dos bichos que adoptaram. Como é domingo, ainda por cima primeiro dia do ano, o almoço será tarde. Um poema, Fragilidade, de Jorge Gomes Miranda começa assim: Aceito a fragilidade da noite, / o corpo que se vai dissolvendo / no tempo, / mas à mente destroçada / digo não. Parece-me uma presunção destituída de sentido esse digo não. Também eu gostaria de dizer não, mas a mente, como o corpo, está envolta numa fragilidade que não controlo. Poderá o meu corpo ceder antes da mente virar um destroço, mas caso isso não aconteça, é possível que o naufrágio mental se dê sem que eu disso tenha consciência. A chuva intensificou-se, e como sobre meu corpo e a minha mente, também sobre ela não tenho qualquer poder. É uma espécie de água-de-artifício, uma pirotecnia – deveria escrever hidrotecnia – que lava as ruas e as mentes, os corpos se alguém se esquece do seu à beira da estrada.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Rituais

Isto parece estar mau para os profetas. As profecias meteorológicas anunciavam quase um dilúvio, mas as nuvens têm-se mostrado renitentes em conceder a sua graça a quem se entrega a este tipo de augúrios. Pelo menos, por aqui. Pude ir à rua sem guarda-chuva. Constatei que o mundo mudou. Durante muito tempo vi fecharem as padarias, as velhas padarias que alimentaram a população durante décadas. Ora, hoje fui a uma padaria nova com o nome de uma encarnação da divindade hindu. Gente na casa dos quarenta anos, talvez um casal, que nunca vira por aqui, abriu um negócio, como aqueles que existem nas grandes cidades, trazendo uma nova forma de conceber o pão e de o vender. Depois, desta visita à inovação, fui a uma mais antiga pastelaria comprar um bolo-rainha. Encontrei pessoas conhecidas, algumas que envelheceram de forma desmedida. Há muito que não as via. Tomei café com um casal amigo e, no fim, desejámo-nos, mutuamente, um bom ano de 2023, embora toda a gente, conhecida ou não, o faça, se, por algum motivo, entra em contacto com qualquer outra pessoa. Estes rituais, muito deles meramente linguísticos, são importantes, pois é o ritual que salva a existência da usura do quotidiano. As sociedades modernas são máquinas de destruição de mitos e ritos, mas estes lá vão resistindo, reinventando-se para balizar a vida de cada um. Amanhã será dia de Ano Novo e este terá também os seus rituais e a sua própria mitologia.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Melancolia e inutilidades

As pequenas cidades de província são um poço de melancolia, mais ainda se se junta a pequenez e a interioridade. E para se estar no interior bastam uns meros vinte ou trinta quilómetros de afastamento do litoral, senão menos. Um inexorável despovoamento, aliado ao défice demográfico e à morte dos centros antigos, conduz a essa sensação de que algo se retirou e não mais voltará. Onde existe atracção turística, as coisas ainda são disfarçadas pela presença de mirones à procura de coisas nunca vistas, mas nos lugares que não atraem esses viajantes sem destino nem causa não se pode evitar a constatação de que a morte urbana progride silenciosa. Foi tudo isto que experimentei ao passar pelo centro da cidade onde me acolho, cidade bem mais desconsolada do que a antiga vila, plena de vida. Também é possível que esteja completamente errado e que sejam os meus olhos que, motivados pela idade e cansados do que já viram, vêem as coisas desta maneira. Não seria a melancolia da cidade que se desdobra diante de mim, mas a minha melancolia que ali se projecta. Ora, determinar o que numa certa imagem ou percepção das coisas pertence ao percebido e o que pertence ao sujeito que percebe dava uma bela, apesar de inútil, discussão. Não é que as coisas inúteis não exerçam grande fascínio sobre mim. Exercem, e toda a minha vida me interessei mais por aquilo que é inútil do que por aquilo que pertence à utilidade. Contudo, não me apetece chegar à hora do crepúsculo preso às cadeias da inutilidade. Amanhã será o último dia do ano. Eis uma informação que pode ter mil préstimos.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Tristezas

O poema Neve, do livro Ararate, de Louise Glück começa assim: Final de dezembro: eu e o meu pai / vamos a Nova Iorque, ao circo. Ao ler estes versos, tive uma reminiscência de uma ida ao circo com o meu. Não era Dezembro, nem foi em Nova Iorque, nem nevava, mas em Lisboa, no Coliseu, e estava calor, pois lembro-me de comer um gelado e de sujar o casaco da senhora que estava à frente. Isso foi há mais de sessenta anos. Não sei que impressão me ficou dessa experiência, mas o circo sempre foi um espectáculo que me deprimiu. Basta pensar nele para sentir tristeza, mesmo naqueles circos ricos que apareciam na televisão no dia de Ano Novo, ou talvez num outro dia qualquer, que me aparece na memória como sendo o primeiro do ano que começava. Trapezistas, palhaços, ricos ou pobres, equilibristas, engolidores de espadas e de fogo, domadores de feras, por todos eles sinto uma estranha compaixão, como se as suas profissões fossem piores do que todas as outras que por aí há. A origem dos nossos sentimentos é obscura e, por certo, desprovida de racionalidade, pois não há quem pondere aquilo que há-de sentir. Talvez todas as profissões sejam fonte de tristeza, mesmo para aqueles que dizem trabalhar por prazer. Uma outra hipótese é ter compreendido, de forma subliminar, que o circo é uma representação do mundo e que a tristeza que perante ele sinto se refira a uma desolação com o próprio mundo. Isto, porém, infringe a alegria que me assalta perante múltiplos acontecimentos que esse mundo transporta consigo. Acabei de ler um romance de Maria Isabel Barreno, autora de que nunca tinha lido nada. Também o mundo que ela narra me deixou um vestígio de tristeza, daquela tristeza que nos toca perante a consciência de que as nossas ilusões não passam disso mesmo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Complacência

O ano está a chegar ao fim. Não faltarão retrospectivas do que passou e profecias para o que há-de vir. Há muito que imagino ser mais acertado fazer profecias sobre o que se passou e retrospectivas do que ainda não aconteceu. É possível que o resultado fosse o mesmo. A Terra prossegue a sua vida, rodando sobre si e girando em torno do Sol, com olímpica indiferença. Que os homens montem, a partir da sua actividade, calendários, será um problema que não a afecta. Durante algum tempo tirei fotografias. Evitava nelas a presença humana. Talvez fossem, penso-o agora, uma forma de reverência ao planeta que nos acolhe e dá vida. Se alguém achar que isso se deve à misantropia terei de considerar o assunto. Duvido, contudo, que a espécie humana gere em mim um sentimento tão forte. Complacência, sim, mas não ódio. A complacência começa comigo e estende-se ao próximo, mesmo que este esteja muito afastado. Na literatura, a complacência tem má fama. A condescendência é vista como uma falta de carácter, tornando o herói vicioso. Ora, no acto de ser complacente existe benevolência e esta, caso fosse universal, não tornaria a vida pior. Ontem levei as minhas netas ao mosteiro de Alcobaça. Enquanto deambulava por ali, ia pensando que o mosteiro está morto. Existe conservação e restauro, mas aquilo para o qual foi erguido desapareceu. Tornou-se um cadáver que não se corrompe, mas não deixa de ser um cadáver, como o são os corpos de Pedro e Inês, ali sepultados. A ânsia que sentimos de preservação do passado em forma de património é uma negação da realidade, uma recusa em perceber que é o espírito que vivifica e, quando este se retira, o monumento, por belo que seja, é apenas um despojo sem vida preso à terra.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Ser risível

A páginas 54 e 55 da tradução portuguesa de A Loucura de Hölderlin, do filósofo italiano Giorgio Agamben, o autor faz notar, quase em modo de lamentação, a ausência de menção no poeta à comédia, enquanto reflecte, por diversas vezes, nos géneros épico, lírico e trágico. Ora, segundo Emil Staiger, em Grundbegriffe der Poetik, referido por Agamben, os géneros poéticos nomeiam também “possibilidades fundamentais da existência humana”. Podemos sem dificuldade pensar em existências trágicas, épicas e líricas, todas elas marcadas pelo respectivo arquétipo literário. Se pensarmos, porém, em existências cómicas, fundadas no arquétipo da comédia, sentimos uma qualquer falsificação da realidade. A pista que se poderá seguir é dada por Aristóteles. Sendo toda a arte imitação, a tragédia imita os homens nobres e superiores, enquanto a comédia imita os homens inferiores naquilo que eles têm de ridiculamente torpe. Ora, a torpeza ridícula é uma possibilidade da existência humana, mas não fundamental. Os homens que vivem vidas ingénua ou vilmente torpes sofrem de uma amputação da sua natureza, um eclipse da sua essência e ficam presos nas possibilidades de superfície. É plausível pensamos duas coisas. Em primeiro lugar, nenhum ser humano foge da risibilidade e, de algum modo, todos somos personagens cómicas. Em segundo lugar, as possibilidades fundamentais dadas na literatura – a épica, a trágica e a lírica – não são mais do que modelos, ou arquétipos, que possibilitam a cada ser humano a elevação da sua condição risível a uma condição superior. Essa elevação, note-se, não é um exercício exterior, mas uma experiência interior, que vai da superfície ao fundo de si, mesmo que isso tenha repercussões na sua persona pública. Estes pensamentos desencadeados pelo livro de Agamben vieram recordar-me longas conversas com Eduína, o que abriu em mim uma ferida que nunca estará verdadeiramente sarada. O seu desaparecimento precoce do meu mundo – mais precoce do que a sua morte – pôs um fim a longas conversas em que sensibilidades distintas e antagónicas encontravam estranhos caminhos de pensamento. Esses eram caminhos feitos de indagações, mas o modo como uma mulher indaga é bem diferente daquele que o homem escolhe, embora entre ela e eu houvesse uma partilha fundamental, a da plena consciência de se ser risível.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Uma questão de vogais

Está quase consumada a quadra natalícia. S. Pedro continua muito activo, ele que nos últimos anos se tinha entregado a grandes períodos de greve. Os profetas do tempo indicam, porém, que daqui a pouco ele irá descansar e que a chuva cessará. Como todos os profetas, também os meteorológicos são esquivos e falam numa linguagem ambígua. A equivocidade simbólica dos profetas religiosos foi substituída pela probabilidade. É provável que chova, mas também há uma certa probabilidade que isso não aconteça. As netas afadigam-se, fazem as malas para irem passar uns dias com os avós. Cuidam das toilettes que usarão caso façam isto ou aquilo. Falei no plural, mas parece que é apenas uma que se entrega a estes trabalhos, a outra está presa a uma rede social que os adolescentes usam, no modo que hoje têm de ser adolescentes, pelo menos no Ocidente. Talvez não devesse falar no Ocidente. Tem péssima imprensa. No século XIX, todavia, Cesário Verde pôde escrever um longo poema com o título Sentimento dum Ocidental. Nesses dias, era claro o que significava ser ocidental, hoje talvez não passemos de acidentais. A insignificante troca da vogal inicial traz-nos lições de sociologia que não se poderia suspeitar. Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Isto, porém, era no século XIX, quando ainda éramos ocidentais. Hoje, quando o desejo absurdo de sofrer nos toca, vamos ao psiquiatra, ao psicanalista, quem pode, ao psicólogo, quem não tem dinheiro para, durante anos, se deitar no divã e entregar-se à hermenêutica dos sonhos, à exegese dos actos falhados e ao jogo das associações livres. Também no campo da patologia mental funciona um mercado livre, onde há produtos para todos os gostos e todas as bolsas.

domingo, 25 de dezembro de 2022

Combater gigantes

As festividades continuam. Este é um tempo que exige uma apurada capacidade de gestão. Um jantar aqui, um almoço acolá, outro jantar noutro lado, ainda o dia 26 com a visita a… É o que dá a multiplicação da espécie, que, com casamentos, divórcios, nascimentos, recasamentos e sei eu lá mais o quê, torna tudo um estranho exercício de cálculo. O Natal é, deste modo, uma espécie de Quaresma, mas no lugar do jejum – quem jejua na Quaresma? – tem por penitência o seu contrário, a possibilidade de engordar com rapidez. Ontem, mantive-me frugal e espero fazer o mesmo nos desafios que ainda tenho de enfrentar. Não é tarefa fácil, os moinhos são mesmo gigantes, mas tenho-me treinado na escola de D. Quixote, embora não passe de um pobre Sancho Pança. Espanta-me sempre como é que a frugalidade do presépio deu origem a estes exercícios pantagruélicos, mas talvez nunca tenhamos deixado de ser pagãos, descendentes dos que se banqueteavam em Atenas ou em Roma. Agora, vou preparar-me para enfrentar os gigantes.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Fidelidades

Mais um Natal quase passado. Foi o que me disse hoje de manhã o padre Lodo, durante o longo telefonema. Desde que nos conhecemos, nunca deixou de ligar na véspera de Natal. Fui acompanhando no decursos dos anos – ou das décadas, para ser mais fiel à realidade – o estado de espírito natalício deste meu amigo. Foi-se transformando, mas, no essencial, manteve-se idêntico. Fiz-lho notar e ele respondeu-me que o Lampedusa tinha razão, que é preciso que alguma coisa mude para que tudo permaneça. A formulação não é bem essa, acrescentou, mas a que fiz serve para descrever a realidade. Mantive-me fiel, continuou, ao que era no início, mas desconfio que nisso não tenho qualquer mérito. Todos são fiéis a si próprios, mesmo que não dêem por isso. Aquele que trai aquilo em que acreditou não deixou de ser fiel a si, pois nele haveria já um não crer. Parece-me, disse-lhe, um discurso herético. Há um determinismo incompatível com o livre-arbítrio, o que contraria a doutrina da Igreja. Talvez, talvez, respondeu, mas é plausível que a omnisciência divina ou a legislação da natureza ainda sejam compatíveis com essa estranha ideia de que possuímos liberdade de escolha. A metafísica, porém, cansou-me há muito. Não era, aliás, nem o meu forte, nem o meu interesse, fazia parte da paisagem onde um jesuíta tinha de viver. A paisagem, porém, transbordava de assuntos, muitos dos quais me interessavam mais do que esse. Depois, mudou de conversa e informou-me que Castorp viria a Lisboa com a mulher e que esperava que nos encontrássemos todos. Sem dúvida, respondi. Antes de desligar, perguntou-me se já tinha comprado os presentes todos ou se tinha guardado algum para a última hora. Respondi-lhe que a vida me tornara previdente. Desejei-lhe um feliz Natal e ele respondeu-me com um santo Natal. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Encontros inesperados

Não só o Outono o foi, como o próprio Inverno chegou invernoso e, segundo vi, promete continuar. Num dos livros que tenho na secretária, encontrei um cartão de um restaurante lisboeta na moda, perto, muito perto, do S. Carlos, e um talão de um depósito em caixa multibanco. Curioso, fui ver a data, 11 de Março de 2002. Um documento histórico. Terei achado que servia para marcar a página de um ensaio sobre espinhosas questões da mais espinhosa de todas as disciplinas que o espírito do homem criou. Do autor, tão espinhoso ele é, omito o nome, pois são lendárias as legiões de seguidores e de detractores. Talvez a personagem não merecesse nem tantos sequazes nem tantos depreciadores, mas como em tudo, também nesse território minado a que alguém um dia terá chamado a rainha das ciências, os seres humanos gostam de se alinhar e, depois de postos na linha, logo começam a marchar. De resto, não faço ideia por que motivo, num mesmo livro, se encontra um cartão recente e um talão antigo, de uma outra encarnação. A vida, porém, é feita destes mistérios. Antes que acabe de escrever, vou arrumar ambos no sítio onde estavam, para que alguém daqui a décadas os encontre. O talão encaixa na perfeição em La question sur l’essence de l’être e o cartão do belo restaurante vai dormir em Sur la grammaire et l’étymologie du mot «être». Que tenham bons sonhos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Movimentos pendulares

Distraído e alienado de tudo o que é essencial, não dei pelo solstício de Inverno. Foi ontem, pelas 21horas e 48 minutos. Estamos na estação mais fria e não me despedi do Outono. Estas coisas são imperdoáveis. Bem faziam os povos antigos que não se esqueciam de assinalar estas efemérides, não fosse o diabo tecê-las. Agora, os dias começam a crescer e as noites a diminuir, pois o ano é regulado por um movimento pendular. Este movimento traz com ele uma mensagem. Por mais que as coisas mudem elas hão-de voltar ao seu lugar. E que lugar é este? Cada um dos pontos que o pêndulo no seu ir e vir vai ocupando. Isso é uma visão muito conservadora, diz um dos homúnculos que habita na caverna da minha consciência, pois não nos podemos banhar duas vezes na mesma água do mesmo rio, acrescentou, alardeando erudição e uma despropositada tendência heraclitiana. Poderia ter-lhe respondido que o fluxo contínuo e a mudança incansável de tudo o que existe não passam de uma ilusão sensorial e de um enviesamento do espírito seduzido pelos dados sensoriais. Evitei, porém, entrar em discussão e mandei-o regressar ao lugar de onde saíra. Não temos um dia luminoso de Inverno, mas uma tristeza sombria a pairar sobre a pequena cidade onde arrasto o peso da existência. O Natal aproxima-se, já que os dias, as horas e até os instantes não sabem fazer outra coisa senão passar, presos a uma ânsia de voltar ao lugar de onde partiram.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Vanitas vanitatum

Chegou a noite com o seu silêncio. A praceta está vazia, o café fechado, os alunos do Centro de Línguas foram para casa. Agora, é o tempo das sombras, a hora dos murmúrios, o instante em que a realidade toma outra direcção, mais secreta, grávida de enigmas. Mais logo terei de sair, para um daqueles jantares que a época natalícia arrasta, como se as pessoas que durante um ano inteiro praticamente se ignoram fossem uma grande família, partilhassem entre si alguma coisa de essencial. Durante muito tempo resisti a este tipo de festividades, mas com o passar dos anos fui cedendo ao espírito da época ou ao amolecimento dos instintos. Bem gostaria de ter aventuras para contar, mas nada me sucedeu digno de nota, a não ser ter caído ao subir umas escadas. Tropecei num degrau e lá fui com joelhos e mãos ao chão. Descobri que ainda dou demasiada importância à minha pessoa, pois antes de me preocupar se me doía alguma coisa, fui ver se ninguém tinha assistido a esta cena humilhante. Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Tranquilizado, dei atenção aos joelhos, doíam, mas pouco, coisa que logo passou. Tenho de começar a subir escadas amparado ao corrimão. Estes dias, diga-se, têm sido dados a moléstias. Consegui combinar uma faringite com uma conjuntivite. Tive de fazer a via sacra dos consultórios. Um para mostrar os olhos, outro para deixar que me espreitassem a garganta. Agora que penso nisso, as duas médicas que me viram ainda são menos novas do que eu. Uma delas pouco usa o computador e prefere escrever com uma caneta de tinta permanente, uma Montblanc. Passa uma receita ou faz uma requisição de análises ou exames manualmente. Depois, usa uma folha branca como mata-borrão, já que os autênticos mata-borrões desapareceram. Devem ter sido descontinuados. Eu que comecei a escrever no tempo dos mata-borrões também tenho uma Montblanc, mas não sei para que me serve. Escrevo em teclados, reais ou virtuais, e quando tenho de escrever manualmente, coisa rara, uso o que estiver à mão. Não tenho nostalgia do arranhar, mesmo que suave e delicado, de um aparo sobre o papel.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Fidelidades

Hoje, o padre Lodovico, no seu habitual telefonema de domingo, estava inclinado para a vexata quaestio de quem será o campeão do mundo de futebol. Não sei, confessou-me, se como europeu devo apoiar a França, se devo ser solidário com o Papa e torcer pela Argentina. Recordei-lhe que o futebol não era uma coisa pela qual tivesse interesse. Eu seu, eu sei, mas eu, com a idade, fiquei pior, tenho uma alma de tifoso, que tenho dominado a custo e com algumas penitências, acredite. O meu problema, continuou, é que as selecções de que seria apoiante natural tiveram o destino que tiveram. Isso parece-me uma tautologia, disse-lhe. Tautologia ou não, a verdade é que a Itália nem entrou em combate e Portugal teve um novo Alcácer Quibir. Sim, respondi, este último caso é preocupante, não venham de novo os Filipes e, agora, um Filipe está no trono de Espanha. Não brinque, disse em tom de admoestação. O problema não será assim tão difícil, sugeri. Depende do grau de fidelidade. Se a maior fidelidade, como membro da Companhia, for ao Papa, deverá apoiar a Argentina. Se o ser europeu se sobrepõe a ser papista, então deverá apoiar a França. Não gosto desse termo papista, mas esse é o meu problema. Sou fiel às duas coisas. Nesse caso, alvitrei, deve acompanhar o jogo dilacerado. Será uma forma de expiação.