domingo, 10 de setembro de 2023

Contra a querela

A certa altura, no século XVII, desencadeia-se em França uma querela que ficou famosa, a denominada Querela dos Antigos e dos Modernos. Que tipo de arte é superior, aquela que imita os clássicos greco-latinos ou a que pretenda inovar? Como acontece nestes conflitos de ideias, as posições extremam-se e acabam por parecer incompatíveis ou mesmo incomensuráveis, como se a arte clássica e as suas imitações pertencessem a um universo e a arte moderna pertencesse a outro, e entre eles não houvesse possibilidade de estabelecer mediação. Muito curiosamente a Querela estava fundada numa exclusão, a da arte medieval, de acordo com a ideia de que a Idade Média tinha sido uma era de trevas. Havia no espírito do tempo uma propensão para a exclusão. O que fará sentido, porém, é a atitude contrária, perceber que a arte de uma certa época terá de carregar com o peso do passado, terá de apropriar-se das tradições e reinventar-se nesse solo mil vezes adubado e por isso fecundo. A que propósito vem isto? Ocorreu-me e não encontro razões conscientes para falar deste assunto, mas é plausível pensar que haverá razões inconscientes que, através dos artifícios que só o inconsciente conhece, tivessem desencadeado em mim a vontade de escrever sobre ele. Talvez, ao contrário ao dos modernos, o meu inconsciente não esteja inclinado a matar o pai, dando-lhe um lugar e fazer da arte um lugar onde o novo, o inédito, se insere num culto dos antepassados, como acontece em certas tribos arcaicas.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Uma inclinação nacional

Hoje, pisei a areia pela primeira vez este ano. Quase ninguém no areal, o mar enrolado em algas, um céu cinzento. Eis, para mim, um dia perfeito de praia. Passeei com o meu neto e tive de esforçar-me para correr atrás dele. Valeu a pena depois de uma manhã inteira entregue ao ócio da realidade. É provável que sofra de um défice cognitivo não diagnosticado, mas ainda não consegui perceber a capacidade que as pessoas têm para inventar coisas cuja utilidade é zero, ou, para ser mais rigoroso, negativa. Imagine-se uma qualquer instituição, pública ou privada. Imagine-se ainda que se acha que ela tem de ser melhorada. O que acontece muitas vezes é que as acções tomadas para a melhorar a tornam pior, acelerando a sua decadência. Creio na existência de um gene português que nos inclina para a irrelevância e perdição. Agora, vou ao parque infantil, embora não me seja permitido andar de baloiço e deslizar no escorrega.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Essa é uma questão filosófica

Mas essa é uma questão filosófica, e, após a sentença, continuou a derramar sobre o assunto, para logo de seguida acrescentar, para vincar a certeza, mas essa é uma questão filosófica, o que não foi suficiente para acalmar o derramamento, pois este prolongou-se até chegar novamente ao estribilho, o motivo real do escrito, mas essa é uma questão filosófica. O assunto não vem ao caso, a escrita aconteceu numa caixa de comentários de um blogue, cujo nome e autor omito. Fiquei a meditar no sentido da frase, enquanto olhava o céu. Uma parede de nuvens apresentava, por vezes, abertas por onde passavam quentes e ameaçadores raios solares. A expressão é usada, amiúdo, num sentido pejorativo. Quer dizer: essa é uma questão obscura que não interessa a ninguém. Outra possibilidade é que sobre essa questão cada um diz o que lhe der na veneta, como se sobre o assunto pudesse exsudar os sentimentos que lhe atormentam a alma. O estranho é que as questões filosóficas são, em geral, claras e pouco consentâneas com a democratização opinativa corrente, porque a generalidade das pessoas não tem capacidade para as pensar – mais por falta de disciplina, do que de inteligência – e aquilo que as pessoas chamam pensar não passa de uma amálgama de desejos, sentimentos, emoções, interesses pessoais, tudo articulado por uma sintaxe generosa que permite confundir expressão com pensamento. Quando se ouve, e tantas vezes se ouve, mas essa é uma questão filosófico, o melhor é pensar que é um ouriço-caixeiro ou uma zebra pintada de azul a sair do autocarro que vai para o Cais do Sodré, pois, por certo, não será uma questão filosófica. O mais provável é ser um eflúvio que se desprendeu de uma mente sobressaltada com qualquer emanação vinda de um órgão do corpo em funcionamento deficiente. Também é verdade que se o meu corpo fosse completamente são, não teria escrito este texto, mas a manhã vai avançada, tenho coisas para fazer e espero, depois de almoço, o meu neto.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Experiências matinais

Hoje fui a uma agência bancária, sítio onde não ia há muito. Fiquei espantado. Quase não havia funcionários, também eram poucas as pessoas que solicitavam os serviços desses funcionários. O lugar para o público combinava o aspecto de uma sala de espera de um consultório médico com o de um café. Tudo se resolveu com rapidez, no meio de um silêncio reverente, o que me fez suspeitar que aquilo seria também uma espécie de igreja, com bar e lugar para os crentes prepararem as suas confissões. Um exemplo de metamorfose moderna, que ainda não descobriu o seu Ovídio para a cantar. Ao sair, encontrei o mundo profano que deixara ao entrar. Respirei fundo e caminhei descansado para o carro. Chegado a casa, depois desta vibrante aventura, dei uma vista de olhos pela imprensa online. Parece que as máscaras estão a começar a voltar aos hospitais, ainda por causa da COVID-19. Temo que esse retorno se propague. O que me chocou, porém, foi saber que a nossa espécie esteve quase para não chegar à existência. Um tenebroso colapso populacional, ocorrido há 900 mil anos, reduziu os nossos antepassados, em idade reprodutiva, para cerca de 1280. Note-se a precisão do número aproximado, passe a incongruência. Não foram cerca de 1300 ou de 1200, mas cerca de 1280. Foi uma sorte esses 1280 não terem entrado todos num convento e feito votos de castidade ou terem trocado os encontros presenciais por contactos virtuais, ou mesmo terem achado o sexo uma prática repugnante e desistido dela. Não, fiéis ao compromisso que tinham para assegurar que nós haveríamos de existir, decidiram nada de entradas em conventos, nada de uso de telemóveis, nada de repugnâncias com a troca de fluidos. Sacrificaram-se, usando os sexos, para que nós tivéssemos a possibilidade de vir à existência. Devemos admirar e honrar o seu altruísmo.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Assim seja

Hoje tomei um banho não no mar, mas na realidade, e esta é opressivamente maçadora, mata o espírito de uma pessoa pelo tédio. Não passa de uma água chilra, onde se adiciona uma quantidade significativa de soporíferos, ao mesmo tempo que se mistura doses significativas de fantasias adequadas à primeira infância. Nunca fui adepto das desconstruções, mas posso converter-me às desrealizações, uma tarefa hercúlea para tornar manifesto quanto a realidade é perversa. Quase podia fazer minhas as palavras do primeiro verso do “Recanto 11”, de Luiza Neto Jorge, O verão deu-nos uma volta aos olhos. Só não faço, porque não é necessário o Verão para nos dar a volta aos olhos, basta a realidade, basta a existência de realistas, simulacros de seres humanos que dizem amar a realidade e que com eles não há cá fantasias. Esta gente dá-me volta aos olhos, põe-me estrábico, como se os olhares que me saem de ambos os olhos fossem cordéis a que deram nós cegos. Estou com pouca paciência e tenho uma caminhada pela frente, de onde posso varrer, caso tenha cuidado com a circulação, a realidade realista. É uma forma de me lavar do contacto com o real. Assim seja.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Notas biográficas

A minha vontade, alimentada por uma inclinação natural, era de falar sobre o tempo, não a duração, mas o clima. Contenho-me, pois não tenho habilitação meteorológica, e o que é demais, é demais. Já para falar da duração, teria habilitação, desde que não falasse mais de três minutos, o que é obviamente pouco. Talvez pudesse discorrer acerca do conflito entre guelfos e gibelinos, mas isso foi há tantos séculos que, apesar de ter participado nessas lutas, já não me recordo do resultado, nem do lado a que ofereci os meus primeiros serviços, embora, como se sabe, tenha combatido ora de um lado, ora de outro. Se foi essa a verdade, pois tudo em mim está difuso, não se pense que eu chefiava uma comandita que usava mercenários para combater pelo lado que melhor pagasse. Nesse tempo, o meu espírito ainda não se tinha rendido à economia de mercado. O que me movia nesses séculos finais do medievo, se bem me recordo, era um espírito de equanimidade, no sentido de advogar a igualdade e a imparcialidade, oferecendo os meus serviços a quem estivesse em pior posição, de modo a repor a igualdade entre os contendores. A minha alma não se movia nem pelo papado nem pelo império, mas pela ideia de equilíbrio. Consta que esta posição foi, desde muito cedo, atacada, pois ela significava um prolongar infinito da guerra. Para que haja paz, é necessário que uma das partes fique mais fragilizada e se submeta, o que acabaria por promover a felicidade do maior número de intervenientes no conflito, argumentou-se. Ora, posso jurá-lo, nunca o utilitarismo me moveu, o que me terá levado a rejeitar com acinte as críticas, continuando apostado na promoção de equilíbrios, sempre que um desequilíbrio surgia. Tudo isso se passou há muito, bem antes de ter partido nas naus portuguesas e, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, ter aportado a terras de Vera Cruz, e ter acompanhado a redacção da carta de Pêro Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel, o primeiro dessa denominação no rol dos reis pátrios. Cansado de tantas peripécias, sento-me agora à janela e vejo a chuva cair, para adormecer de seguida, acordando se algum trovão ribomba, sentindo um leve ânimo se o horizonte se abre num clarão ou um raio fende a atmosfera cinzenta e entra pela terra.

domingo, 3 de setembro de 2023

Pobres planos

Chove e troveja, venta, parece um pequeno temporal, com um céu de cinza e chumbo. Lamento os meus planos, pobres enganos. A caminhada da tarde, com os respectivos pontos cardio, está comprometida. Resta-me esperar que S. Pedro, o meteorologista-mor em exercício, se apiede de mim e mande suspender o temporal. Os santos, todavia, regem-se por uma lógica que os pobres pecadores não compreendem. Não sei se isso será da santidade ou da falta cultura filosófica. Talvez São Tomás de Aquino seja mais lógico, mas não lhe foi dada a incumbência de reger o clima. Pior do que isso acontecia, segundo o poeta Rilke, ao Rei de Münster: Já não se sentia legitimado: / o senhor nele era moderado / e o coito era falhado. Talvez a pobre majestade tivesse medo da trovoada, o desejo sucumbisse ao ruído dos trovões e o sentimento real se apagasse à luz dos relâmpagos. É possível que impérios tenham caído por coisas de menos importância. Portanto, podemos pensar que o brevíssimo reino de Münster tenha sucumbido por motivos tão triviais como esse. Convém, no entanto, não confundir os reinos de Munster e de Münster, o primeiro, na ilha da Irlanda, foi duradouro, o segundo, na Vestefália, resistiu um ano. Foi governado por Jan Leiden, um alfaiate holandês, de orientação religiosa anabaptista, e proporcionou não pouca diversão. Para além de tornar obrigatório o rebaptismo, pôs em comum os bens e decretou a poligamia. Imagino que as competências do alfaiate não estivessem ao nível do que era proposto, o que permitiu que os inimigos da experiência sitiassem a cidade, se apoderassem da corte tresloucada e executassem os seus membros. Se me perguntarem qual a opinião de S. Pedro e de S. Tomás, confessarei que não faço a mínima ideia. Talvez, no momento da conquista da cidade, S. Pedro tenha mandado uma tempestade, e S. Tomás, escrito, no paraíso celeste, mais umas páginas da Summa Theologica. Isto, porém, são especulações intempestivas de alguém que é, por natureza, anacrónico. Os trovões calaram-se, mas continua a chover. Münster será reconquistada.

sábado, 2 de setembro de 2023

Curva de Gauss

É no início do décimo primeiro capítulo do romance A Rebelião que Joseph Roth escreve: O dia em que Andreas devia comparecer no tribunal despontou como um dia inteiramente normal, como todos os dias que o tinham precedido. Imagino que seja este paradoxo que torna a vida possível. Qualquer acontecimento anormal – uma ida a tribunal, um casamento, uma declaração de amor, a morte – tem o seu lugar na existência no quadro de um dia normal. Isto significa que tudo o que é excepcional, tem por pano de fundo a trivialidade, e esta acaba por colonizar o extraordinário, contaminando-o com a sua vulgaridade. Os antigos gregos – por exemplo, o velho Aristóteles – viam no espanto o início do filosofar. Ora, este não é mais do que a redução desse assombro, desse espasmo perante o anormal, à normalidade da investigação. Os seres humanos, por muito que pensem o contrário, não foram feitos, nem lhes foi dado por destino, o viverem na assombração. Por isso, os dias, com a sua variabilidade sem fim, nunca deixam de ser normais, para que nós possamos adoptar a nossa anormalidade a essa norma e evitar um destino funesto, como sermos fulminados por um raio ou transformados em estátuas de sal. Por muito que protestemos, as nossas vidinhas, mesmo quando matamos dragões e combatemos gigantes, cabem todas dentro da curva de Gauss.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O encoberto

Hoje foi o dia em que estive mais perto da areia. Passei pela travessia que divide duas praias com o mesmo nome, mas que se distinguem por que uma é do Norte e a outra do Sul. O caminho aliás é duplo, um para carros, em alcatrão, e outro para peões, em cimento. Passei por ali como peão e fui sentar-me numa esplanada voltada para a praia do Norte, onde, outrora, passeava e mergulhava nas águas frias do Atlântico. Estava um dia espantoso, com um enorme nevoeiro que mal se via o mar. Havia pessoas deitadas na areia a apanhar banhos de névoa. Esta, com o passar dos minutos, ia ficando mais densa. Do mar veio o barulho de uma sirene ou qualquer coisa do género. Pensei que seria o barco que traria D. Sebastião. Se ele vinha, não desembarcou. Penso, porém, que qualquer rei encoberto, mesmo quando chega a algum sítio, nunca perde essa característica e, por mais que se manifeste, nunca deixa de estar oculto. Este texto, em particular este último período, é a minha contribuição teórica para o desenvolvimento do sebastianismo em Portugal, talvez a mais importante de Fernando Pessoa para cá, ou mesmo desde antes dele. É plausível, penso agora, que o nevoeiro seja uma forma de me contrariar, quando penso que o Verão se vai prolongar por dentro do Outono. Será, antes, o contrário, uma invasão outonal na terra do Estio. O jovem Werther reforça esta intuição, pois de uma intuição se trata. Diz ele, a 4 de Setembro, apesar de estarmos a um: Tal como a natureza se encaminha para o Outono, também dentro de mim e em meu redor faz-se Outono. As minhas folhas amareleceram e as folhas das árvores vizinhas já caíram. Ele, tão jovem, parece-me muito impressionável, mas, é preciso não o esquecer, está apaixonado e sofre, uma coisa que, em naturezas delicadas e submissas às impressões, pode acabar em suicídio, embora eu não seja psicólogo para o asseverar. Quanto à areia, consegui não lhe tocar. Na esplanada, estava um casal alemão, mas não me constou que fosse Werther, agora menos jovem, e a sua amada Lotte. Ele talvez fosse o encoberto, quem sabe?

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Requiem

Está nas últimas, este Agosto, mas mesmo nas vascas da morte há-de prolongar o seu espírito pérfido até bem dentro de Outubro, baforando calores e, como um dragão desatinado, lançando sobre a terra o fogo aceso com o fósforo dos infernos. Perante mim, repousam dois romances portugueses, um do ano de 1955 e outro de 1964. Em comum têm as folhas por cortar, o que me vai obrigar a um prolongado exercício, pois em conjunto somam quase 900 páginas. Um, o de 1964, ainda contém uma assinatura ilegível e a indicação de Lisboa /Dezembro /1967, assim como se fosse a estrofe de um poema experimental, onde nem faltou o aspecto gráfico de um traço sob o ano. O outro não tem vestígios do seu passado. O autor escreveu algumas obras catalogadas por ele, presumo, como sátiras sociais. Também escreveu um estudo patológico, imagino que seja um romance naturalista, onde ficcionará um qualquer carácter mórbido, neste caso de uma mulher, pois a obra tem nome de mulher. Consta que tinha inclinações políticas doentias, não muito diferentes das do grande Knut Hamsun, mas, por certo, faltar-lhe-á o génio deste. Não se pode ter tudo, apesar de ter um título, daqueles que Almeida Garrett dizia: Foge, cão, que te fazem barão. Ao que o pobre animal respondia: Para onde, se me fazem Visconde? Não quer este narrador fazer espúrias comparações, pois é distante o talento de um e outro, mas está ele, o narrador, quase como Vitorino Nemésio no programa televisivo Se bem me lembro. Começava a falar em alhos e acabava em bugalhos, num exercício estilístico onde imperava a corrente de consciência, coisa que parece ter tido a sua origem literária no Hamsun, já aqui aludido, e teve em Joyce um dos grandes cultores. Eu também me entrego à corrente de consciência, não porque queira ficcionar o que se passa na minha mente, mas porque tenho uma percepção deslassada do mundo. Não se pense que uma coisa deslassada não tem importância. Ainda ontem, por aqui, um bolo deslassou, o que foi acolhido com grande consternação e não menos pesar. Descobriu-se, depois, que houvera uma troca de um dos produtos, efeito de uma confusão no momento da compra. Aventou-se que seria uma estratégia comercial para escoar certas mercadorias, mas concluiu-se, de modo prosaico, que fora apenas a falta de óculos. Este é o meu requiem pelo mês de Agosto.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A morgada e o castelhano

A sonoridade do castelhano é muito desagradável, comentei. Na esplanada, um casal espanhol conversava. A certa altura dei por mim a escutar não o que diziam, mas a música utilizada para dizerem o que diziam. Ela era, apesar da idade, uma mulher muito elegante, o mesmo, quanto à elegância, não se podia dizer dele. Pensei que ela devia usar outra língua, o italiano, talvez o francês. Ficar-lhe-ia tão bem quanto aquilo que levava vestido. Ele podia – melhor, devia – continuar a usar a algaraviada dos nossos vizinhos, que, por vezes, parece uma selecção de grunhidos emitidos por alguém indisposto. Estou a ser injusto. É possível que o português, aquele que usamos na Europa, também não seja muito agradável para ouvidos alheios, embora a variante do Brasil, com a sua musicalidade, diz-se que perto daquela que era usada por cá no tempo de Camões, possa aproximar-se do agrado que italiano e francês proporcionam ao ouvido incauto. Não era disto que queria escrever, mas da morgada de Romariz, que conheci há pouco. Antes de se perguntar quem era a morgada, mais vale saber como era ela. Era uma senhora de espavento, avermelhada, com as frescuras untuosas e joviais dos quarenta anos sadios, seios altos e aflantes, pulsos roliços e averdugados pela compressão das pulseiras cravejadas de esmeraldas e rubis. Podemos assim imaginá-la, talvez com uma certa inclinação lúbrica, na sua frescura untuosa, na jovialidade que lhe cabia aos quarenta anos, mas quem era ela? A mulher do comendador Francisco José Alvarães e, mais que qualquer outra coisa, personagem criada por Camilo Castelo Branco. Imaginemo-la no teatro, ao lado do marido, assistindo à representação de Santo António, o taumaturgo. O que podemos ver? Ora, a morgada de Romariz, lagrimando com inteligência na prosa da oratória, assim que algum personagem pegava de rimar, ria-se. Persuadira-se de que a missão dos versos era como a das cócegas. E talvez a morgada tivesse razão. Era uma morgada a que não faltava filosofia, mas essa é uma história que não me cabe contar. Imagino que, apesar dos seios altos e aflantes, não seria injusto que falasse castelhano, ao contrário da castelhana da esplanada. Este mundo é pouco inclinado à perfeição.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

O melhor do mundo

Nova viagem de ida e volta ao sítio de há uma semana. Contudo, a distância foi significativamente menor, apenas oito graus Celsius. Para lá do me levou ao lugar onde passo o ano quase inteiro, tive a oportunidade de almoçar com o meu neto. A princípio o diálogo foi evasivo, mas a partir do momento em que entrou em cena uma pistola, tudo mudou de figura. Não se pense, todavia, que é uma daquelas pistolas que eu tive em criança para imitar os filmes de cowboys, as que tinham rolos de fulminantes e eram usadas em épicas perseguições e combates de bons e maus, de índios e os ditos vaqueiros do Arizona ou do Texas, ou sei eu lá de onde. A tia que lhe ofereceu a arma jamais pensaria numa coisa dessas. É uma pistola transparente com um mecanismo interno que rodopia, ao ser accionado pelo gatilho, e produz vento, acendendo ao mesmo tempo uma luz. A finalidade não é participar numa batalha decisiva entre o bem e o mal, mas mergulhar a ponta numa espécie de godé com um líquido que, depois de empurrado pelo vento produzido pelo tiro, se transforma em inúmeras bolas de sabão. Seja como for, serviu para fazermos experiências, calcular a pressão a exercer pelo dedo de modo a regular o tamanho das quimeras que, depois de voltear por uns instantes, logo se desfazem. Constatei, mais uma vez, que Grande é a poesia, a bondade e as danças… / Mas o melhor do mundo são as crianças. Tenho de comprar uma para mim, para me entreter nas horas vagas, e, caso haja à venda, outra com fulminantes, para lhe oferecer.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Pecado de Onan

Fim de festa, por aqui. Pouca gente nas praias, pouca gente nas esplanadas, pouco trânsito. Tem sido um bom ano de praia. Ainda não pus os pés na areia, mas tenho sérias e fundadas dúvidas que consiga levar a proeza até ao fim, e este ainda vem relativamente longe. Um poema de Fernando Guimarães tem por título o nome de uma poetisa, Anna Akhmatova. Penso que os poemas não deveriam ter título, mas suspeito estar enganado. Os títulos estão para os poemas como os nomes para as pessoas, alguém, na minha mente, argumenta. O problema será esse, respondo também dentro da minha mente. É um diálogo mental. Problema? Sim, pois ninguém é o seu nome. Um nome, continuo, é uma etiqueta e, mais do que isso, uma forma de obstar a que cada um se confronte com a questão quem sou eu? O nome oblitera a indagação, pois apresenta uma solução juridicamente suportada. Não rasura apenas essa questão, mas também a que viria a seguir, o que sou eu? Ora, se um nome tem este efeito de obscurecimento para uma pessoa, também um título oculta, nessa enunciação breve, o mundo que se apresenta no poema. Depois, ainda na minha mente, eu digo que talvez não existam poetas e poetisas, nem poemas, nem títulos, a não ser em mim, uma das muitas ilusões que o génio maligno encontrado por Descartes lá põe para eu imaginar que existe um mundo onde há praias com areia, esplanadas, poemas e outras coisas insensatas que estou sempre a imaginar que existem. Pergunto-me, por vezes, sobre as razões que levaram esse génio maligno todo-poderoso a criar só a mim, isto é, só a minha mente, que ele se entretém, eternidade atrás de eternidade, a enganar, criando nela quimeras. O mais terrível pensamento que me ocorre é que o génio maligno sou eu, isto é, a minha mente que se autocriou para derrotar o nada e se entreter a si mesma num onanismo cognitivo produtor de fantasias. Estas são causa, como se sabe, de não poucos exercícios onanistas, caso estes existam, coisa pouco provável, pois exigem um corpo, daqueles corpos que andam pelas areias da praia, mergulham nos oceanos e, o pior de tudo, falam. As mentes – e há só uma – não se podem entregar ao pecado de Onan, embora não exista consenso sobre o que foi realmente compreendido como pecado no comportamento do neto de Jacob.

domingo, 27 de agosto de 2023

Um simulacro

Leio um poema de Rainer Maria Rilke. Corrijo, leio uma tradução de um poema de Rainer Maria Rilke. Desconfio de algumas palavras usadas pela tradutora. Procuro o original e encontro-o online. O alemão é-me incompreensível, mas recorro a traduções automáticas e confirmo que há palavras acrescentadas. Servem para compor a rima e, o pior de tudo, dar uma pretensa tonalidade poética à linguagem da tradução. É esta tentativa de simular uma poeticidade que constitui o núcleo central da traição que existe em toda a tradução de poesia. Poder-se-á pensar que só poetas deveriam traduzir poetas, mas mesmo isso é incapaz de assegurar a transposição de um poema de uma língua para outra. Um poema é um acontecimento irrepetível, um caso em que um certo som se combina com um certo sentido. Enquanto num texto em prosa é possível que a sonoridade não seja essencial, num poema ela é uma condição necessária. Ler um poema só é possível na língua original. Quando se lê uma tradução – e faço-o com frequência, pois são poucas as línguas em que posso ler o original – já se lê outra coisa, eventualmente, um poema, mas já não o mesmo, mas um sucedâneo ou, melhor, um simulacro do original.

sábado, 26 de agosto de 2023

Versatilidade

Acabo de bocejar, isto é, abri a boca com sono. Podia ser um sinal de aborrecimento, mas nada nem ninguém nesta hora me aborrece. O facto de não estar a fazer nada poderia aborrecer-me, mas não é o caso. Por outro lado, estando sentado à secretária sem vivalma por perto, também não posso imputar a outrem um aborrecimento. Resta-me o sono. Há razões para crer nessa solução. Um almoço tardio e generoso, um consumo no limite da moderação de um tinto, uma pequena sombra de calor, tudo isto torna verosímil o facto de ter aberto a boca involuntariamente com sono. O mais sensato seria dormir em vez de estar a escrever isto. Contudo, tenho de o confessar, estar a escrever tem, neste caso, uma função instrumental. Faz parte da luta contra a preguiça e a sonolência que, mancomunadas, me invadem o corpo. Parte desse combate está também na leitura de Chesterton. Diz ele que Carlyle terá afirmado que os homens eram maioritariamente idiotas. Isso faria parte de uma argumentação a favor da aristocracia. Contudo, o criador das aventuras do Padre Brown discorda. Na sua perspectiva, derivada do Cristianismo, todos os homens são idiotas. Parece-me uma correcção razoável e, tanto quanto se refere a este narrador, plenamente corroborada pelos factos, pelos actos, pelos escritos e pelos ditos. Não esquecer as omissões, pois também se peca por estas. Uma coisa que me espanta – para ser franco, que me assunta – é a minha versatilidade. Começo o texto pela fisiologia do bocejo e arriscava-me a acabá-lo numa meditação teológica, não fora terem-se intrometido considerações de ordem psicológica. Tudo matérias que, versatilmente, ignoro.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Meditações linguísticas

O Word tornou-se um processador de texto com ambições de grande educador dos desqualificados que utilizam a língua nacional. Não se contenta já com sublinhar a vermelho – ou será a encarnado? – os erros ortográficos, nem o descansa o tracejar a azul as frases onde desconfia uma infidelidade gramatical. Está, agora, na fase professoral de chamar à atenção dos indígenas para o uso de chavões e plebeísmos. Parece incompatibilizado com a linguagem ao gosto popular. Perante plebeísmos e frases feitas, põe-lhes por baixo uma espécie de pesponto – seja lá isso o que for – também a azul, como quem usa um sarcasmo perante uma inabilidade social. Este amor à correcção, todavia, é um inimigo encarniçado da língua, pois mata a possibilidade de evolução, que se faz, sob a designação da lei do menor esforço, por sucessivas infidelidades e traições. Não vou aqui discutir se o uso de infidelidades e traições é uma redundância, embora o Word também se agaste com ela, a pobre redundância. Aliás, este é um lugar onde a discussão foi banida, pois as opiniões expressas são tidas como dogmas inabaláveis, mesmo que no dia seguinte ou até na frase seguinte se diga o contrário ou, para ser logicamente mais rigoroso, se formule uma proposição contraditória. Note-se, contudo, que a palavra dogma é muito mais complexa do que se pensa. Aparentemente, um dogma é uma opinião imposta pela autoridade e aceite sem exame crítico, mas isso é uma aparência. Na origem da palavra dogma está o vocábulo grego dógma, que significa decisão, decreto. Como qualquer um sabe, toda a decisão pode ser anulada e todo o decreto, revogado. Na origem de qualquer dogma está a possibilidade da sua anulação e revogação. Se ele se mantém é porque resistiu às tentativas críticas de o pôr de lado, às tentativas de falsificação, para usar um chavão popperiano. O mais sensato é parar o escrito por aqui, antes que seja pronunciado por heresia lexical.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A tragédia da escolha

Decidi-me pela leitura de Mistérios, de Knut Hamsun. O escritor norueguês é um caso curioso. A sua biografia tem aspectos, no campo político, nada recomendáveis, pelos quais pagou, embora um preço muito mais baixo do que o pago pelo escritor francês Robert Brasillach. Do ponto de vista literário é um dos precursores – senão mesmo dos cultores – do modernismo, ao mesmo tempo que, enquanto pessoa, era um anti-moderno, embora afirmando, de forma hiperbólica, uma das características da modernidade, o individualismo. É possível que seja desta amálgama ideológica que nasça o poder de atracção que têm as suas narrativas. Pode-se pensar que escolher entre duas obras qual ler em primeiro lugar é uma aventura irrelevante. Sê-lo-á apenas na aparência. Nunca se tem em contra nem o drama da deliberação, com o seu pesar dos prós e contras, nem a tragédia da decisão, que implica sempre eliminar todas as alternativas menos uma. Em toda a escolha há um elemento trágico, uma negatividade que se consuma. E tudo isso traz consigo um enorme cansaço e uma indisposição para partilhar os pensamentos íntimos e as feridas a sangrar no recôndito da alma, caso este tenha veias e artérias.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Despovoamento

Até aqui, onde o Inverno começa a 1 de Agosto, está calor. Exultam os viciados em areia, raios solares e água do mar. Caem em bando pelas praias em vez de procurarem uma clínica para tratamento da adicção. Fui a uma esplanada, apenas com o nobre intuito de classificar o pastel de nata que por lá se vende, mas não me demorei, pois, mesmo sob uma sombra protectora, estava calor. O pastel de nata era bom, mas não me parece, contra outras opiniões, que mereça estar no top five ou top ten dos pastéis de nata. Contudo, não sou especialista no assunto. Recebo um email e penso que a paisagem se está a despovoar. Sou informado que morreu alguém que conheço há décadas. Não era pessoa com quem tivesse grande proximidade, mas tínhamos uma relação cordial de conhecidos de há muito. A última vez que falámos foi num serviço de lavagem de automóveis, quando esperávamos que os nossos carros ficassem com um aspecto civilizado. Não tornaremos a falar. É isso que a morte tem de tenebroso. Impede as pessoas de continuarem a falar ou de se ver. Introduz o martelo da certeza num ambiente feito de acasos e incertezas, esmagando todas as possibilidades que poderiam existir. Numa estante ao lado da secretária, está Mistérios, um romance do norueguês Knut Hamsun, a única obra traduzida do autor que ainda não li. O livro tem a capa e a contracapa pretas, mas a lombada é azul. Foi isso que me perturbou. Uma lombada azul num livro de capas pretas. Ao considerar aquele azul, designei-o como azul-cobalto. Fiz uma pesquisa para avaliar a minha designação e descubro, consternado, que são legião os azuis designados desse modo. Entre tantos, também se encontrava o da lombada, o que me pacificou. Enquanto não acabo a leitura do primeiro volume de Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, tenho de decidir se o próximo livro a ler será o de Hamsun ou o de Gyula Krúdy, As aventuras de Sindbad. Antes disso, porém, terei de almoçar.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Tal como eu

Hoje já fiz uma viagem de ida e volta de doze graus Celsius, mais doze para lá, menos doze para cá. Mesmo cá, porém, há graus a mais. Isto impede-me de caminhar, de fazer quilómetros e pontos cardio, coisa que o meu coração, suponho, agradeceria, embora eu só vejo a minha cara, e quem vê caras não vê corações, segundo a sabedoria popular. Resta-me beber água, para me hidratar. Até comprei uma garrafa daquelas que os bebedores inveterados de água usam. Como tenho sempre uma certa inclinação para o cepticismo, não sei se quem transporta esse tipo de garrafas, em vez de água, tem lá xarope de limão ou groselha, talvez aguardente. Por exemplo, as garrafas que têm pretensão a serem garrafas-termo podem conter um belo Alvarinho fresco e a pessoa vai-se hidratando sem descurar o prazer. Este é o problema da hidratação. A água é, lamentavelmente, incolor, inodora e insípida, ao contrário do Alvarinho, que tem cor, odor e sabor. No términus da viagem, decidi ir almoçar a um lugar na moda por aqui. Não bebi um Alvarinho, mas um rosé da Bairrada, que fez muito bem o seu papel. Não apenas tinha odor e sabor, mas uma cor belíssima, discreta. O sítio tem uma garrafeira, ao lado do restaurante, de boa qualidade. Tinha à venda umas garrafas de vinho clarete, coisa que, depois de décadas de abandono, parece estar em recuperação. Custavam 41 euros e eu pensei que tinham endoidecido. Dei uma volta pelo mercado online e descobri que há garrafeiras a pedir quase 50 euros por uma dessas garrafas. Tentei perceber as razões e lá descobri que o vinho foi produzido num processo relativamente complexo e que merece ser guardado, pois promete muito com o envelhecimento. Não me deixo tentar, pois olhando para a minha experiência, o envelhecimento não me tornou melhor em nada. O mais avisado é ficar por alguma coisa que seja incolor, inodora e insípida, tal como eu.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Consultório matrimonial

Descubro que as redes sociais – pelo menos aquela que, por desfastio, visito, mas imagino que as outras também – estão ao rubro por causa de um beijo público, e logo nos lábios, entre uma jogadora de futebol e um presidente da federação daquele desporto. Sobre o assunto, não tenho qualquer opinião, pois não conheço as circunstâncias, e como ensinou Ortega y Gasset, já que o caso se passa entre espanhóis, o homem é o homem e a sua circunstância, o que também se aplicará à mulher. Depois do post de ontem, onde abordo a difícil temática da dissolução do matrimónio, também posso, no de hoje, dar conselhos para o caso daquele beijo acabar em casamento. Consta – ou constou-me em tempos através de fonte bem informada – que, antigamente, quando não havia astrólogos intelectuais cheios de cursos e pós-graduções, as previsões astrológicas dos jornais, incluindo os de referência, eram entregues aos jornalistas estagiários. Faz aí os horóscopos, diziam-lhe, para acalmar a ansiedade dos caranguejos, dos touros, dos leões e, acima de todos, dos virgens. Assegura-lhes que é agora que... e acabavam a frase sempre nas reticências, o que causou engulhos em alguns candidatos, pouco dados à hermenêutica astral. Já não tenho idade para estagiário seja do que for, mas posso exercitar-me como conselheiro matrimonial, com o mesmo grau de competência que os jornalistas estagiários tinham em astrologia. Para começar, não me parece boa ideia um casamento entre uma jogadora de futebol e o presidente da respectiva federação. O motivo é kantiano. A relação hierárquica existente destrói a reciprocidade que, segundo Kant, deve existir em qualquer casamento. Daí, ele ser contra os casamentos de pessoas de classes sociais diferentes. Não por preconceito, mas por defesa da igualdade daqueles que dão esse terrível passo – o matrimónio – para poderem desfrutar do sexo do outro. Mantenho-me na linguagem de Kant, note-se. É verdade que este em matéria de casamentos tinha tanta competência quanto os tais jornalistas estagiários em astrologia, se é que neste campo pode existir qualquer competência. Provavelmente será mentira  mais um dos mitos que se criou à volta do professor Kant  mas quando, em velho, lhe perguntaram por que motivo não se tinha casado, terá respondido: quando precisava de uma mulher, não tinha dinheiro para ela; agora que tenho dinheiro, não preciso dela. Juro que me contaram isto. Munido destas informações, talvez abra aqui um consultório matrimonial, a que por certo não faltará sucesso. Tenho uma alma de empreendedor.