São dias como o de hoje que anunciam os tormentos que a
estiagem, lá mais para a frente, há-de fazer cair sobre nós, mortais volúveis
que tão depressa lançamos anátemas ao frio como pedimos clemência aos céus, se
o calor vem em borbotões desabar por estas ruas. Os estados de espírito dos
homens são o verdadeiro objecto das ciências ocultas. São mistérios
indecifráveis e se usamos palavras como inconstância, volubilidade ou instabilidade
para os caracterizar, isso é mais uma manobra com que cobrimos a nossa
ignorância do que um acto de saber. A verdade, porém, é que o dia nasceu fadado
a ser soalheiro e as pessoas agitam-se na rua com ademanes primaveris. Uma ou
outra mulher passa mais leve na roupagem e um gato deita-se na relva a apanhar
banhos de sol. E eu vejo tudo isso como se fosse cego e nessa minha cegueira me
protegesse dos dias que hão-de vir ou mesmo daqueles que já se foram. Penso
nestas coisas sem sentido, enquanto abro a caixa do correio e encontro uma
carta que me há-de anunciar alguma conta a pagar. Tudo tem um preço nesta vida.