quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Cicatrizes

Uma das árvores perto de casa tem uma longa cicatriz. Imagino a fenda que lhe deu origem, a seiva a deslizar vagarosa, quase hesitante, pelo tronco, para se ocultar no interior húmido da terra. Depois, o trabalho da natureza para cerzir o rasgão e a marca da imperfeição que ali está, eterna e transitória, perante os meus olhos. Como as árvores, também os homens, pensei então, têm as suas cicatrizes. Umas nasceram de feridas que sangraram, outras nem tanto. Pergunto-me se terá cicatrizes a mulher que mora no prédio da frente e que todos os dias vejo, solitária e inquieta, a correr para o carro. Pior são as cicatrizes invisíveis, aquelas que costuram o lençol rasgado da alma. Se tivessem sangrado não passariam agora de um leve risco incerto na superfície da pele. As pessoas sentam-se na esplanada e cultuam o sol desmaiado do início da tarde. Talvez não tenham cicatrizes ou tenham perdido a alma nalguma das rotundas que florescem por aí.

2 comentários:

  1. "Pior são as cicatrizes invisíveis, aquelas que costuram o lençol rasgado da alma."
    Sim, essas são as piores, ninguém sabe que as temos, ninguém nos pode ajudar a suportá-las. Às vezes, um bocadinho de sol, ainda que pálido, pode dar um certo conforto...

    Maria

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    1. Talvez possa. Diz-se que o sol pode ter propriedades curativas. Quem sabe?

      HV

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