terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Calendários

Ao barbear-me, cortei-me no pescoço. Uma pequena mancha de sangue alastrou na pele, mas logo suspendeu a viagem, como se lhe faltasse energia e desistisse sem razão aparente do progresso. Vejo-a no espelho, contemplo-a por instantes, depois limpo os vestígios do crime e entro pelo dia. É uma entrada tardia na última etapa do ano. Este é um rally, um estranho rally com 365 etapas, mas em que todos os que chegam ao fim fazem-no ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que se sentem obrigados a mostrarem-se alegres, numa insuspeitada celebração da mais pura igualdade. Se pudesse introduziria um princípio de diferenciação no calendário. Para uns o ano seria mais rápido, para outros, mais lento. Enquanto uns comemoravam a chegada de 2025, outros arrastavam os pés pelo ano de 2012, para não falar naqueles que ainda dormitavam pelo século passado. A cada um seria permitido escolher o seu ritmo ou, caso duvidemos do livre-arbítrio, cada um teria o ritmo que os seus genes determinariam. Desconfio que o calendário foi uma invenção de alguma seita proto comunista com a inconfessável finalidade de humilhar os mais rápidos e favorecer aqueles que se arrastam ano adentro sem vontade que o tempo passe. Não sei se é porque o ano está prestes a deixar-nos, mas o sol está lacrimoso, enviando-nos uma luz turva, anémica, impotente para alegrar corações. Só espero que logo se esqueçam do ritual das passas, que não suporto a função. Agora vou fazer a pequena lista das pessoas a quem tenho de ligar passada a fronteira do ano. Só para não haver esquecimentos.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Desinteresses

Moribundo, o ano está a dar um ar da sua graça. Magníficos dias de Inverno, onde o sol e o frio se conjugam para alegrarem os pobres mortais. Durante algumas horas, a luz radiosa mostra-se exuberante, tornando manifesto aquilo que os dias sombrios esconderiam. À minha frente tenho o longo ensaio de Elias Canetti, Massa e Poder. Percorro-lhe o índice. Há nele muitas referências à Antropologia. Pergunto-me se valerá a pena, se poderá ajudar a interpretar o nebuloso tempo em que vivemos. Oiço os Gurre-Lieder, de Arnold Schoenberg, dirigidas por Zubin Mehta. É uma das obras a que volto com regularidade. Esqueço-me do ensaio de Canetti. O espírito humano é muito volúvel, pensei. Tão depressa se interessa por uma coisa, como, sem razão aparente, a deixa de lado. Tornei-me especialista em deixar coisas de lado, em retirar delas o meu interesse e deixá-las em paz. Imagino que o livro de Canetti me agradeça o desinteresse. Um dia também a vida me deixará de lado, desinteressada do meu desinteresse, cansada de mim. O sol começa a empalidecer, carros desfilam pela avenida Andrade Corvo, enquanto o tenor dá voz à desdita de Waldemar. “Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido.” É promissor o início da obra de Canetti. Depois dos Gurre-Lieder irei ouvir o Pierrot Lunaire.

domingo, 29 de dezembro de 2019

O rally dos idiotas

Um carro ronca furioso numa das avenidas aqui perto, os travões guincham, suspendem por instantes o gorgolejar do motor, mas logo este retoma o matraquear com que responde ao acelerador, pisado sem piedade. O condutor deve imaginar-se piloto de rallies em plena competição e sentirá toda a realidade da sua existência no ruído com que esfaqueia o silêncio dominical da província. O que não falta por aí são campeões destes, pequenos quixotes deslumbrados pela mecânica, que nunca competiram a não ser no rally da idiotice. A bazófia do condutor foi exibir-se para outro lado, pois caiu um silêncio sepulcral sobre as ruas. Lá em baixo, na Sá Carneiro, peões marcham decididos, enfrentam inimigos terríveis e procuram no caminhar a salvação para as desditas do corpo ou da alma. Um casal passeia-se de mão dada, cada um temeroso de que o outro fuja. Pela janela entra um raio de luz. Traça uma linha oblíqua no chão. Olho-a fascinado, depois volto para este texto. Hoje hei-de almoçar mais tarde. De novo, um carro roncante invade o meu território sonoro, mas será outro, já que o ronco se transforma num ronronar cordato até desaparecer dentro da cisterna do silêncio.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O sábado declina

Estou à espera do meu neto, mas não vou poder pegar-lhe ao colo. Não que ele queira, pois isso impedi-lo-á de mexer onde não deve, não o deixará fazer uma sementeira de CD e livros pelo chão. A culpa deste impedimento é das netas e do malfadado jogo de badminton a que fui sujeito, como se tivesse de cumprir uma pena ou de pagar uma promessa. Com o passar das horas, as dores lombares parecem expandir-se e o voltaren, uma espécie de santo, está renitente em operar um dos seus milagres. Lá em baixo, com o retorno do tempo mais seco, as crianças invadiram o parque infantil e as suas vozes afiadas chegam até mim. Quando se calam, faz-se um grande silêncio. No horizonte, a serra é um vulto imóvel e cinzento, uma fronteira que separa dois mundos. O sábado progride em direcção à noite. Leva com ele a ilusão do fim-de-semana e ostenta orgulhoso no dorso o título de último sábado do ano. Está um sol convidativo e o mais assisado será levantar-me daqui e ir dar uma volta a apanhar sol. Não me posso afastar, pois não faltará muito para que o rapaz chegue.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Aproximação à realidade

Ao acordar senti-me confuso, mais do que o habitual. Que dia é hoje? Sentei-me na cama a rememorar o calendário e lá consegui descobrir que era sexta-feira. Não se pense que este descolamento da realidade temporal se deve a alguma coisa que não à ocupação de parte destes dias com as actividades próprias à quadra. Descobrir a quanto estávamos na semana devolveu-me um sentido cruel de realidade. Como um punhal, esta atravessou-me o coração e não sem azedume lá me levantei. Um sol faceto e pirraceiro olhou para mim quando abri a janela. Observei-o de soslaio, com cara de pouco amigos, enquanto ele deitava de fora uma língua de fogo que lambia a serra, dando-me a ver uma paleta de cores que me recordaram que o Inverno já havia começado. O astro ainda tentou entabular conversa comigo, mas voltei-lhe as costas. Talvez mais logo me reconcilie com ele e lhe conte como vão as coisas aqui na Terra, o que não será da minha parte um gesto de boa vontade. O dia parece cheio de glória. A natureza nunca se poupa a estratagemas para enganar os incautos. Acabo de receber uma mensagem, mas não era para mim. O mundo está cheio destes equívocos. Pessoas a enviarem mensagens para quem não deviam e outras à espera da mensagem que ninguém lhe destina.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Uma tarde de badminton

Por uma estranha e não sei se malévola inspiração as minhas netas e uma prima acharam que eu era o parceiro indicado para completar um quarteto e assim poderem jogar badminton a pares. Ingénuo e desconhecedor do terreno, aceitei pegar na raquete e tentar acertar no volante. Não imaginava que naquele sítio a força da gravidade fosse muito maior do que nos lugares que costumo frequentar. Bem dava impulso ao corpo para saltar, mas os pés teimavam em não se despegar do chão, enquanto o cesto de penas que faz a vez de uma bola se obstinava a passar na estratosfera para logo cair atrás de mim. Argumentei que não estava habituado a enfrentar uma força da gravidade daquela dimensão, mas olharam para mim com condescendência e lá continuei a fazer par com uma delas, sem perder a esperança de conseguir acertar naquela coisa com inveja de ser pássaro. Agora que fui libertado do exercício estou com umas dores na lombar, tantas as vezes que tive de me curvar para apanhar o volante do chão. Há coisas que não deviam passar pela cabeça de pré-adolescentes ou, não sendo possível evitar esses devaneios, o melhor seria não ter ouvidos para este tipo de pedidos, mas ainda não sofro de surdez. Enquanto escrevo, elas teimam em mostrar que possuem uma reserva considerável de energia que nem o badminton da tarde consumiu.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

A coisa prossegue

Não tarda e esta parte das festividades estará consumada. Haverá o tardio almoço de Natal e, devido à natureza arborescente das famílias modernas, decorrerá ainda o jantar do dia de Natal. Há que contentar o máximo das partes e a partir de certa altura o jogo de ponderados equilíbrios torna-se num quebra-cabeças de difícil resolução. É nestas alturas que se percebe a importância da diplomacia. Compreendo bem que o Menino Jesus se interrogue se terá valido a pena as dores da encarnação e que suspire não sem desdém se alguém se atreve a responder-lhe tudo vale a pena se a alma não é pequena. Mais tarde ainda tentou reparar a situação ao dizer dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Entrevia já – ou talvez fosse a sua omnisciência a operar – que por causa do seu nascimento muita política e diplomacia deveria correr entre as margens escarpadas das famílias. O sol por aqui está raquítico. Na televisão o presidente da república continua a sua azáfama e as casas de apostas puseram em jogo o tempo que demorará sua excelência a tirar uma selfie com todos os portugueses. Estamos no Natal e há que evitar politiquices, pois as famílias tornaram-se tão plurais que nem em desacordarem conseguem estar de acordo. Aqui por casa alguém diz que tem de tomar um gurosan, oiço também falar em ben-u-ron. A mim não me dói nada nem estou indisposto, mas o melhor é fazer um ataque preventivo e tomar qualquer coisa, nem que seja um placebo, talvez me consiga enganar a mim mesmo. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Em contagem decrescente

Terei ainda de fazer uma ou outra compra, mas as coisas estão já encomendadas e espero que o dia e a noite deslizem com bonomia. Em tudo isto há um cansaço e ninguém consegue disfarçá-lo. Também é verdade que, com aquela mania de fazerem recenseamentos todos os anos, a Virgem e José, o carpinteiro, sofrem continuamente as peripécias de não encontrarem alojamento. É sempre a mesma coisa, diz o pai adoptivo do Menino. O mais sensato, passou-me pela cabeça, seria recorrerem, nos dias de hoje, a uma agência de viagens ou, em último caso, ao Booking. Marcavam hotel perto de uma maternidade e não corriam o risco de o Menino ser contaminado pelo bafo da vaca e do burro. Não pense o leitor que me tornei um jacobino pronto para fazer uma diatribe contra o Natal. Pelo contrário, eu gosto do Natal, do presépio, dos doces, até da Missa do Galo, apesar de nunca ter ido a nenhuma, mas imagino-a de uma grandeza exaltante, onde coros humanos e angélicos entoam um oratório de Bach. Talvez seja com medo de me defraudar que a evito, sabendo que Bach era protestante e que em vez da sua música tenha de ouvir sabe-se lá o quê. Os dias de Natal de antigamente eram de uma grande tristeza, pois não havia sítio onde se pudesse beber café. Hoje em dia, graças à Nespresso e às suas belas cápsulas de alumínio, toda a gente tem café em casa e as senhoras, enquanto bebericam, sempre podem imaginar que é o próprio George Clooney que as serve, mesmo que seja o burro do presépio ou o marido, cujo ressonar já não podem ouvir. A imaginação é a mãe de todas as coisas.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Fim de aboboramento

Nunca consegui justificar perante mim o facto de ter uma conta na plataforma LinkedIn. O certo é que um dia qualquer, por um desvario que já não consigo recordar, abri conta e por lá fiquei a aboborar. Esta palavra decepciona-me profundamente. Por impulso semântico, eu diria que significa tornar-se abóbora, mas não. É uma espécie de corruptela de abeberar. Seja como for fiquei por lá a aboborar, imóvel e desinteressado, respondendo com bonomia e a melhor vontade às solicitações de conexão, embora nunca tenha percebido a razão por que há pessoas que hão-de querer estabelecer uma conexão comigo numa plataforma como a LinkedIn. À maneira de Grouxo Marx, também não admitiria estabelecer qualquer conexão profissional comigo. O certo é que sem mexer uma palha, praticando com diligência o aboboramento, fui ficando conectado com conhecidos e desconhecidos, recebendo mensagens para parebenizar (palavra que me deixa logo com revoluções no estômago) este e aquele pelos novos empregos ou cargos a que tinham sido promovidos. Fui estranhando nunca ter recebido convites para dar os pêsames aos despedidos ou aos despromovidos, mas inferi desse silêncio que todas as minhas conexões eram com gente vencedora na vida. Hoje recebi um novo pedido de conexão. Abri a conta e com ela escancarada procurei como acabar com ela. Liquidei-a em três tempos. Recebi de imediato uma mensagem a dizer que sentiam muito pela minha saída. Eu, pelo contrário, sinto muito pela minha entrada. Nunca se deve entrar em sítios aonde não vamos fazer nada.

Distinções linguísticas

Fui à loja ortopédica que há aqui no prédio para comprar umas pantufas para alguém que já não tem grande disponibilidade física para fazer este tipo de compras. Nunca tinha lá entrado e, por alguma razão inconsciente, evitava olhar através dos vidros. Foi uma revelação. Parece haver lá tudo o que é necessário para a miséria física humana. Eu sei que tudo é uma hipérbole, mas esta está-me na massa do sangue e o melhor é dar algum desconto às coisas que me põem aqui a dizer. Bengalas, cadeiras de rodas, bancos com abertura para o que não vou especificar e uma parafernália de dispositivos e objectos que sou incapaz de denominar ou de descrever. Evitamos pensar nas múltiplas formas que a desgraça tem e só quando nos bate à porta entramos naquele mundo e descobrimos que as estratégia da doença para nos humilhar são incontáveis. Chegado a casa, sentei-me e li um artigo (de Marco Neves) sobre o uso das palavras vermelho e encarnado. Quem diz encarnado – e isto não vem lá – por norma não diz prenda mas presente. Recusa-se, não sem veemência, a dizer funeral. A palavra correcta é enterro, asseveram pimpões. É possível que quem usa vermelho prefira oferecer prendas e, quando tem de ser, vai a um funeral. A língua também é um exercício de diferenciação social e quem quer diferenciar-se não se faz rogado. Por mim, só me apetece usar vermelho, prendas e funeral quando estou num círculo de amigos do encarnado. Se me calhar estar no círculo mais popular, posso cair na tentação de evitar o vermelho. Isto, porém, deve-se a ter nascido com uma inclinação patológica para contrariar o que está dado, contrariando-me muitas vezes a mim mesmo. Se estou sozinho não digo vermelho nem encarnado, não distingo prenda de presente e nem me lembro se se trata de um enterro ou de um funeral. Se estou sozinho, evito dizer seja o que for, embora na minha mente prossiga um diálogo infinito, em que falo comigo mesmo como se já tivesse enlouquecido. Estes textos estão a ficar excessivos. Também a verborreia faz parte do meu amor à hipérbole.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Imaginações

Um alarme lança aos ares o aviso contra imaginários ladrões e quebra o silêncio onde mergulhara neste entardecer de domingo. Ninguém acode ao estabelecimento e o dispositivo prossegue na sua cegarrega mecânica, avisando o mundo de um perigo que não há. Nunca se sabe que ameaças são as piores, se as visíveis se aqueles que só a imaginação descobre. Não devemos descurar o que esta nos diz, apesar de serem secretos os seus caminhos. Num livro de contos de um escritor japonês, em nota prévia, é explicada a pronúncia que se deve dar aos nomes desta língua. Resolveu a meu favor uma pequena contenda relativa à leitura do w, se deve ser feita ao modo dos ingleses ou dos alemães. O alarme calou-se, havia nele cansaço de tanto esperar por ladrões que não vinham. Levantei-me para ir cumprir uma tarefa doméstica, mas ia tão distraído que a meio da viagem já não sabia o que ia fazer. Tive de parar e actualizar a informação. Lá me ocorreu o que era. Hoje o mundo visto da janela do meu escritório parece sombrio. Será porque o sol se esconde atrás das nuvens ou porque no meu coração nascem sombras que se derramam na paisagem. Uma voz diz é cansativo pertencer à espécie humana. Procuro o autor da mensagem mas não encontro ninguém. Rio-me e levanto-me da cadeira. Daqui a pouco terei de atravessar a cidade e, nem sei porquê, isso entristece-me.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Ocorrências

Nestes dias Portugal tem sido um país cheio de ocorrências. Não fora o mau tempo e nada ocorreria por cá. Somos um povo sábio dado à imutabilidade. Nove séculos de história ensinaram-nos a não correr para lado nenhum. Há várias razões para os povos marcharem a grande velocidade. Os germânicos e escandinavos labutam para combater o frio, dito de outro modo trabalham para aquecer. Os americanos possuem outra motivação. São um povo muito jovem, inocente e ainda em formação. Não sabem muito bem quem são e o querem. Por isso precipitam-se com fragor para o futuro, pois imaginam que lá adiante encontrarão respostas às suas perguntas, ilusão recorrente nos povos em início de vida. Os portugueses, porém, têm um clima temperado, por vezes demasiado quente, e nove séculos de história. Já nos tínhamos aposentado há muito do nosso trabalho histórico quando nasceram os Estados Unidos. Por tudo isto, e eu neste caso sou absolutamente português, não gostamos de ocorrências, evitamos sempre que podemos que alguma coisa ocorra. Contemplar o mundo a partir de uma sabedoria de nove séculos só nos pode aproximar da eternidade e na eternidade tudo é imutável. O pior é o mau tempo, pois com ele chegam ocorrências sobre ocorrências, como agora se chamam os incidentes provocados pela ira dos elementos, o que nos deixa irritados, pois fazem-nos descer do pináculo onde nos encontramos e tratar do que ocorre no mundo. As depressões climáticas deprimem-nos porque fazem ocorrer coisas onde nada deve ocorrer e nos retiram da nossa sábia contemplação da eternidade.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

A agonia do Outono

Olho pela janela e digo estamos no Inverno. Depois observo a palavra e gosto de a ver com maiúscula. Uma estação do ano não merece o despropósito com que agora é tratada, tornando-lhe o início rasteiro, sem perceberem que cada uma delas é um acontecimento único na sua repetição e que devem ser consideradas como pessoas ou deuses, com as suas idiossincrasias, humores, o ritmo secreto que as faz oscilar, o vigor ao entrarem em cena e o cansaço ao despedirem-se da vida. A chuva persiste, constante na sua frieza, enquanto os cedros do pequeno bosque ao fundo se erguem rígidos para o céu, indiferentes à água que sobre eles cai. Na avenida, alguns transeuntes seguram guarda-chuvas, mas correm a abrigar-se. Os carros passam, criam pequenos tsunamis que se levantam violentos e logo morrem, sem que nenhuma devastação aconteça. É sexta-feira, embora o corpo não acredite que o fim-de-semana se aproxima. Remexo-me na cadeira e medito no que ainda hoje terei de fazer. Ao longe, o edifício do hospital lembra-me uma ruína, o sinal de um mundo acabado que persiste difuso na memória dos vivos. Não pára de chover e talvez fosse apenas isto o que queria dizer.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O último combate

O Outono despede-se invernoso, irado pela aproximação do dia em que o carrasco fará deslizar pelo seu pescoço o gélido fio da guilhotina. Visto da janela o espectáculo da resistência outonal faz recordar um velho guerreiro que trava o seu último combate. Há sabedoria no modo como maneja a lança da chuva e a espada do vento, há nobreza na face envelhecida que enfrenta a condenação. Indiferentes ou temerosas da refrega, as pessoas fecham-se em casa e, embrulhadas nas suas lareiras, sonham com dias primaveris, enquanto os gatos ronronam ao calor. Um ou outro louco caminha na rua sem guarda-chuva, encharcado, como se fosse um penitente que se lava na água caída dos céus. As iluminações de Natal derramam tristeza pela cidade e trazem à memória, como contraponto, os dias em que tudo era mais frugal e eu mais ingénuo. O vento percute a persiana e lá dentro uma velha canção de Natal deixa cair as notas sobre os presépios. A Virgem demora-se na espera e S. José, longe da carpintaria, parece inquieto e deslocado. O silêncio tomou conta dos seus corações como a água se apoderou da terra.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Sub specie aeternitatis

No facebook alguém, para sustentar uma certa posição sobre determinado assunto, coloca um link para uma entrevista dada ao Expresso por um especialista da matéria, a qual não vem ao caso. Como um cão segue uma pista, também eu sigo a ligação e ponho-me a ler, até que que começo a achar uma certa estranheza no conteúdo. Procuro a data e descubro que é de 2008. Não é a primeira nem a segunda vez que isto me acontece, mas hoje foi uma revelação. O tempo foi abolido. A eternidade desceu dos céus, digitalizou-se e passeia-se na terra. Não posso esconder que isso me perturbou um pouco. Cada um tem um estilo e o meu passa por cultivar um certo anacronismo. Se tudo agora é eterno, até o meu anacronismo se torna em sincronismo, que palavra desagradável esta, apesar do seu pedigree ser autêntico. Lá se vai o estilo perdido no magma da indiferenciação, foi a reacção que se desenhou na minha cabeça. Há pouco entrei num café, sentei-me e olhei à volta. Apenas duas mesas estavam ocupadas, cada uma por um homem a ler o jornal, ambos mais velhos que eu. Estavam empenhados na leitura, voltavam as páginas com uma certa ânsia. Suspeitei, não sem razão, que eles pudessem estar a ler jornais de 2008 ou mesmo de antes. Seja o que for o que estivessem a ler deve agora entender-se sub specie aeternitatis, que é uma forma pretensiosa de um anacrónico sem-abrigo dizer do ponto de vista da eternidade.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Da ordem das coisas

Ao fechar a janela pensei que não tarda e os dias começam a crescer. Senti uma leve nostalgia do tempo em que não me ocorria se os dias eram grandes ou pequenos. Havia nisso uma aceitação do mundo tal como ele é e nessa aceitação residia toda a possibilidade de estar vivo. Depois, começa-se a sentir incómodo pelas temperaturas, mais tarde pelo excesso ou pela falta de luz, a seguir protesta-se, ainda que em segredo, contra o calendário, para se acabar numa recusa sem tino da ordem do mundo. Claro que quando se envelhece a ordem do mundo deixa de ser promissora. Nunca deixo de sorrir quando oiço aquelas pessoas, os cavaleiros do progresso e irmãos gémeos dos do Apocalipse, que proclamam a bondade que o futuro há-de trazer. A única coisa que o futuro traz é a morte e quanto aos que cá ficam terão como presente o seu quinhão de bem e o seu lote de mal, talvez distribuídos ao acaso, talvez fruto dos méritos, talvez vindos na barcaça da injustiça. Não esperava estar tão meditabundo. É o que faz fechar janelas quando o dia se perde no covil da noite. Daqui a uma semana é noite de Natal. A luz triunfará sobre as trevas exteriores até que tudo se inverta, enquanto a mecânica da universo não se cansar.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Uma bela aparência

Tenho nas mãos quatro livros e todos eles, com as suas capaz magníficas, são objectos que não apenas pedem para serem comprados como exigem que se lhes toque como quem toca a pele do objecto do seu desejo. Esta frase, com o seu aroma psicanalítico, deveria ser censurada. Haverá uma relação entre o objecto livro e o que nele está escrito? Também no mundo dos vinhos há garrafas e rótulos que pedem para serem comprados. Nesta relação entre o conteúdo e a forma como ele é apresentado não há apenas um truque para enganar o comprador incauto. É plausível que quem se preocupa a fazer excelentes vinhos cuide da sua apresentação. Também as editoras que escolhem certos autores terão um cuidado acrescido na forma como apresentam as suas obras. Uma certa consciência ingénua vocifera dentro de mim. Ainda não sabes que deves distinguir a aparência da realidade? Olho para ela com desdém e pergunto-lhe se não sabe que já não tenho idade para me preocupar com a realidade, que não há coisa melhor no mundo que uma bela aparência? E se o vinho não prestar ou se o livro for ilegível? Paciência, não podemos querer tudo.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Não cair em tentação

Acordei a meio da noite e para combater a insónia abri o romance Os Enamoramentos, de Marías. Agora que passei a fronteira do primeiro terço da obra começo a vislumbrar por que razão Maria Dolz, a narradora, me envinagra levemente o ânimo. Não sei o que me reserva o que falta do texto, mas aquela não é uma mulher plausível. Desconfio que seja um travesti. Que não seja mal entendido. Um travesti mental. Os homens deveriam ter cuidado em colocarem-se dentro da pele das mulheres e inventarem discursos que imaginam serem o delas. Se forem perspicazes, o melhor que conseguem perceber é se estão ou não diante de um pensamento feminino, mas sem a pretensão de ultrapassar uma visão muito genérica e exterior da gestalt desse pensamento, cuja composição interior, pela complexidade, lhes escapa. Talvez seja eu que tenha uma perspicácia diminuta e não interprete como devia a atracção que a narradora sente pela boca de Díaz-Varela, o homem a quem as mulheres sem dificuldade se dobram, mas cujos lábios possuem um recorte feminino que tanto a fascina. É natural que eu não seja levado a sério. Com tantas coisas a fazer neste mundo, com tantos tortos a endireitar, com tanta gente a libertar, e eu de candeias às avessas com o perfil psicológico e a verbosidade de uma mulher que só existe no papel. O dia está tristonho, um pombo poisou agora no parapeito da janela e, mais uma vez, tomo consciência que não nasci para salvar a humanidade. Num caderno apontei: nunca ter a tentação de escrever do ponto de vista de uma mulher. Não apenas por falta  de talento, mas por impossibilidade ontológica e assim acabo com um ar pretensamente filosófico. O pombo cansou-se do poiso e foi contemplar o mundo para outro miradouro.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Não me faltam temas

Por fim uma boa notícia. Depois de semanas a desafiar a minha paciência, a balança cedeu uns hectogramas. Sublinhei alto o sucedido e disse que a meditação transcendental e a recitação do mantra estavam a dar efeito ou, alternativa mais científica, que o facto de ter mudado a pilha à balança refreou o seu ímpeto para me vexar. Ouvi um gélido é verdade, esta semana foi mais agitada e não jantámos um único dia fora de casa. O meu olhar ficou parado no vazio. Este senso comum irrita-me. Ainda pensei retorquir sobre a falta de elevação espiritual do comentário ou a pouca crença na ciência que nele havia, mas calei-me, antes que a conversa derivasse sobre a necessidade de fazer exercício para disfarçar a barriga. Este tema também me está a irritar e parece que não tenho outro. Ora isso não é verdade. Temas não me faltam. Aliás tenho mesmo uma lista de assuntos a tratar. O que acontece é que muitas vezes não sei onde tenho a lista e outras esqueço-me dela. Na lista, para que não se pense que estou a mentir, está como assunto o agastamento que a narradora de Os Enamoramentos, de Javier Marías, me está a causar. Estou farto da opinião da senhora, se é que ela pode entrar na classe das senhoras. Este tema, o da classe das senhoras, é delicado e as minhas opiniões poderiam ofender alguém. Uma sirene anuncia um paciente a caminho do hospital. Eis uma matéria que não consta na minha lista e, por isso, sobre ela não falo. Logo vem o meu neto. Espero que ele queira falar comigo.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Um problema de consciência

Olhei para a rua e pensei que devia enfrentar este tempo incerto e fazer uma caminhada. A necessidade de andar tornou-se um pensamento recorrente nos últimos meses e chego a temer que se transforme numa obsessão. Quando tomo consciência de que estou a pensar nisso, encolho os ombros, sento-me à secretária e espero que outra coisa venha ocupar-me o espírito. Se o malfadado pensamento persiste, sou mais drástico, encho o peito de ar e fecho a janela. A minha consciência diz-me que não devia escrever coisas como estas, pois o fitness, que o estrangeirismo me seja perdoado, não deve ser objecto de ironias de mau gosto, ainda por cima vindas de alguém que anda sempre em conflito com a balança e a leitura que esta se atreve a fazer da realidade. Vale-me olhar com condescendência, se não com desprezo, para a minha consciência. Toda a gente estima muito a consciência que tem, não havendo no mundo melhor que a sua. Por mim, vendia a minha ou, se ninguém a comprasse, deitava-a num daqueles depósitos que recolhem materiais usados para reciclar. Não para que ela possa ser reutilizada, mas para não poluir mais este pobre planeta, que geme e arfa sob as poluções nocturnas de consciências inquinadas, que não param de distribuir sentenças e bons conselhos por tudo o que é sítio. Uma réstia de sol ilumina as paredes da escola ao fundo da rua. Convida-me a sair de casa e ir caminhar cidade fora. A continuar com pensamentos destes ainda tenho de marcar consulta no psiquiatra. Talvez todas as sextas-feiras sejam dias de paixão.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Rebelião

Ataranta-me a proliferação de senhas que os diversos sites com que interajo me obrigam a coleccionar. Não fora perigoso e criaria um herbário onde colocaria cada uma das senhas e a respectiva catalogação. Assim tenho de recorrer ao registo mnésico para poder entrar e sair de portas e portões onde a vida me faz entrar. Poderia ser como aqueles loucos benignos que possuem uma memória prodigiosa e que sabem de cor a lista telefónica de uma zona ou os resultados, jogo a jogo, do campeonato nacional de futebol desde que ele começou até aos dias de hoje. A loucura ainda não é a casa onde habito, mas nada me diz que não venha ser, por muito que me custe. Já a memória vai fenecendo dia após dia, num trabalho de rasura que começa pelas coisas mais recentes e, como uma onda, se vai propagando pelo passado. Enlouquecido e desmemoriado está o aquecimento desta casa. Para o tratar puseram-lhe um termóstato novo. Parecia ter serenado, trabalhava segundo a programação feita, não se esquecia dos parâmetros. Teve porém uma recidiva e trabalha furioso. Tenho de lhe pôr um colete-de-forças e mandá-lo internar, antes que morra de calor. Aborreço-me quando as coisas decidem ter autonomia e agem por conta própria, quando exibem uma contumácia de propósitos que contrariam as ordens que lhes prescrevo. Conheço pessoas que se pudessem ordenavam o mundo segundo os seus critérios e só assim ele, na sua opinião, seria perfeito e não o caos que é. Não me incluo nesse universo de ordenadores do mundo, mas também era evitável que meras maquinetas se rebelassem contra a minha vontade.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Do Inverno que se aproxima

Já faltam poucos dias para que o Inverno triunfe sobre o Outono e alcance o primeiro lugar no grande campeonato das estações do ano. Esta estratégia retórica baseada numa analogia pouco vigorosa não deixa de fazer pensar que a natureza tem uma certa inclinação para a repetição e para a igualdade. A vitória de hoje é a derrota de amanhã e vice-versa. Pena é que o mundo dos homens não seja assim. Não por uma questão de justiça, mas pela perfeição que há em tudo o que é cíclico. Os gregos antigos – alguns, para não fazer uma generalização precipitada – tinham grande veneração por tudo o que tivesse a ver com círculos e esferas. Em Portugal, também se manifesta esse tipo de amor como se pode ver pela sábia proliferação de rotundas. Todas estas derivações quase me faziam esquecer o assunto. O Inverno e o seu triunfo iminente. Imagino-o com mantos de neve, frios glaciais e lareiras acesas. A imaginação é muito mais poderosa que a realidade. Aqui neva tão raramente que é preciso que os deuses estejam muito distraídos. É um Inverno insípido e triste que me dá vontade de fincar os pés no Outono e impedir o calendário de perder as folhas. A realidade nunca tem a mesma medida que os nossos desejos.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Da interpretação dos sonhos

Um acaso levou-me a um texto escrito em português mas com um vocábulo alemão por título. Traumdeutung, interpretação dos sonhos. Invejo as pessoas que têm sonhos para interpretar. Muito raramente me recordo de um e quando isso acontece, vejo-o apagar-se e voltar para o esconso lugar de onde veio, privando-me da arte da interpretação. Quem não tem sonhos para deles fazer hermenêutica é uma espécie de ocioso psicológico ou, no pior dos casos, um indigente da psicologia, que nem um sonho tem para contar. A noite chegou e aquilo que estive a fazer não me deu o melhor dos humores. Talvez aqueles que não têm sonhos para submeter à busca da sua significação devessem tentar interpretar a variação de humor que sofrem. O gargalo da noite partiu-se e os demónios saíram da garrafa, saltitam pelas ruas sempre prontos a tentar as almas que vão por aí transidas de frio. Como todos sabem, o material das almas é muito sensível à temperatura. Muito calor, elas evaporam-se. Muito frio, e elas encolhem tanto que o seu proprietário parece um desalmado. Se eu tivesse um sonho para interpretar escusava de estar a falar daquilo de que não se pode falar. O melhor é seguir o conselho do senhor Wittgenstein e calar-me.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Fim das actualizações

Há uma semana que os presépios tomaram conta da sala. A um canto, está o presépio tradicional embora sem musgo e depois, distribuídos pelos móveis, múltiplos pequenos presépios que com os anos se foram acumulando. Já ninguém se lembra como a coisa começou e, verdade seja dita, não foi assim há tanto tempo. A cada um as suas idiossincrasias. Hoje ainda não saí de casa. A névoa cobre a terra, oculta o hospital que haveria de se ver da minha secretária, abre-se num horizonte de cinza contra o qual se recorta o pequeno bosque da escola ao fundo da rua. O Outono corre para o Inverno, deixando na memória estes dias que pedem recolhimento. Inopinadamente, enquanto escrevo isto, a Microsoft informa-me que o meu Office vai deixar de ser actualizado. Recomenda-me que adquira uma versão mais consentânea com os dias de hoje. Também eu há muito deixei de ser actualizado e, por mais voltas que dê, não consigo comprar uma versão mais moderna de mim. Sempre posso usar um daqueles programas gratuitos alternativos aos da Microsoft, mas no meu caso nem gratuita há uma versão alternativa. Não porque eu seja uma singularidade, mas porque não há qualquer vantagem em haver outra versão de mim. A natureza é sábia e usa a frugalidade para evitar a multiplicação do erro. Tenho muito que fazer. A corveia que me permite enfrentar a dura necessidade não me dá descanso. Oiço uma música chamada Ships Along the Harbor. Vejo o cais, os barcos atracados, o ondulado das águas, sinto o sopro do vento marítimo e os meus pés a caminhar na humidade do porto. Tudo isto sentado com uma pilha de papéis na frente para ler. O Natal aproxima-se e ainda não cuidei da secção dos presentes.

sábado, 7 de dezembro de 2019

O deslizar do sábado

O sábado deslizou-me da mão num ápice. Esteve luminoso, mas já se embrulhou num cobertor de cinza e não tarda veste o roupão negro da noite. Se eu fosse o autor destas frases, haveria de pintar a cara de negro. Recordo-me com melancolia do tempo em que as horas subiam e desciam a encosta do dia com um passo tão vagaroso que parecia haver uma suspensão do tempo. Era uma antevisão da eternidade, mas nessa altura a eternidade não me interessava para nada e aquilo que mais queria era que o tempo passasse até àquela hora em que algum prazer, modesto que fosse, esperasse por mim. Pelo acumular de pretéritos imperfeitos do conjuntivo só posso suspeitar que mesmo para um prazer modesto o desejo era grande. Não devia entregar-me a hermenêuticas gramaticais que raramente levam a bom porto. Hoje comprei um bolo-rei, o primeiro da época. Confesso que me tornei desleal ao rei e, por norma, presto vassalagem à rainha, desde que esta saiu do tabuleiro de xadrez para se transformar em bolo de Natal e Ano Novo até aos Reis, mas hoje as rainhas não estavam disponíveis. Muito gente abomina a fruta cristalizada. Eu sei que é uma grande xaropada, mas condescendo com ela e não sinto que, ao comê-la, os parentes sejam arrastados pela lama. Também não devia usar expressões ao gosto popular. Ainda por cima é o segundo não devia que uso. Talvez devesse – mais um pretérito imperfeito do conjuntivo – psicanalisar-me para descobrir o trauma que me leva a repetir o desconsolado não devia.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Passar para a página seguinte

Crianças de um jardim de infância das redondezas aterraram no parque aqui em baixo. As vozes são agulhas que se espetam pelos ouvidos, até a cabeça explodir. A quietude das tardes de sexta-feira foi imolada ao deus da infância. Como em tudo, também aqui os deuses estão em desacordo. Enquanto o da infância olha com desvelo o burburinho e a verrumante agudeza dos gritos, o da velhice franze o sobrolho e vigia o tumulto com rancor e mal dissimulado ressentimento. Apesar deste ser o melhor dos mundos possíveis, a sua ordem está longe da perfeição. Abro ao acaso um livro e a página pergunta-me, com ar sobranceiro, se as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não sei o que dizer. Se digo que não, serei acusado de irresponsável. Se digo que sim, não faltará quem me chame presunçoso. A solução será passar para a página seguinte e fingir que não se viu qualquer pergunta. As vozes calaram-se, as crianças voltaram para o seu lugar. Na avenida, uma mulher passeia vagarosa um cão. Um carro pára junto à passadeira e outra mulher atravessa-a. Chegada ao outro lado, hesita como se não soubesse o que fazer com o corpo. Decide-se e recomeça a caminhada, presa ao desconforto de ser quem é. Vejo as iluminações de Natal ainda apagadas e lembro-me da tristeza que sobre mim cai sempre que estão acesas. Eu sei que ninguém se interessa pelo Natal, mas as autoridades públicas podiam disfarçar. Logo à noite, terei um jantar natalício. Espero que ninguém se lembre de cantar.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Do amor aos adjectivos

A manhã desceu não sem ímpeto a escadaria em direcção aos arrabaldes da tarde. Nos dias em que o Outono se vai desfazendo das suas folhas mortas e o Inverno assoma impante no horizonte, a fronteira que separa a manhã e a tarde torna-se mais porosa, contaminando-se uma à outra, deixando-me sem saber a quantas ando. Num dos jornais de hoje, uma escritora afirma que os adjectivos não servem para nada. Fico pesaroso por eles, pela desconsideração e vexame públicos que assim os atinge. Poderia perguntar quem, se não os adjectivos, há-de, por exemplo, qualificar e determinar o pobre do substantivo, mas não pergunto. Já não sei onde, Roland Barthes diz que se usa o adjectivo agradável quando não se quer dizer nada. Como foi a nossa noite de amor, pergunta ele e ela responde, hum… agradável, agradável. É para isto que servem os adjectivos. Que achas do meu texto? Magnífico, se possível com ponto de exclamação, responde-se. Isto é uma qualificação do texto? Não, é apenas a forma que temos para não dizer nada. Usar adjectivos – e não apenas o agradável – é de uma grande utilidade, pois a maior parte das vezes não temos nada para dizer ou temos e não o queremos fazer. O adjectivo é um indício de uma civilização superior que utiliza a qualificação para ostentar o silêncio. No horizonte, nuvens esbranquiçadas toldam o azul dos céus. A tarde, depois de garrotear a manhã, chegou ameaçadora. Estou por conta da ameaça. Não posso dizer que seja agradável.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O esplendor de um dia de Inverno

Não há dias mais gloriosos que os frios banhados pelo sol. Olho para a frase e lembro-me de um poema de Eugénio de Andrade que começa assim Obedecem-me agora muito menos, / as palavras. Penso na sorte que ele teve por ter havido um tempo em que elas lhe acataram as ordens. A mim sempre recusaram submissão, talvez por falta de talento para usar nelas a rédea ou o chicote. Ocorreu-me agora um dito de Nietzsche sobre a necessidade de levar o chicote, mas recuso-me a partilhá-lo não vá ofender a sensibilidade da época. Também é possível que a máxima do filósofo alemão não quisesse dizer nada, nem aquilo que nela está dito nem aquilo que nela se subentende. Seria apenas o esplendor de um dia de Inverno em que a neve cintila sob a luz impiedosa do sol, um exercício de pirotecnia para semear o céu com fogos-fátuos e a terra com invólucros destroçados pelo rebentar da pólvora. Passa-me pela cabeça que não se deve confiar em filósofos, principalmente se são alemães, mas também devo abjurar este pensamento, tão pouco ao gosto dos dias que correm. Como eu quereria dizer se frequentas as palavras, não esqueças o chicote. Não o digo, pois não foi a vocação de domador aquela que os deuses depositaram nas volutas do meu código genético.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Cair em tentação

Não sei como nem porquê, a toranja tornou-se aqui em casa um bem de primeira necessidade. Há pessoas para tudo e até para uma coisa dessas. Tendo-se acabado as que havia, fui ao hipermercado aqui ao lado em busca do santo graal, não propriamente o cálice sagrado onde José de Arimateia recolheu o sangue de Cristo, mas dos frutos amargos que dão um excelente sumo para começar o dia. Ainda dentro da superfície comercial, não resisti a passar pela zona dos vinhos. Trazia o cálice e o sangue. O pior foi ao sair. Um cheiro a farturas atropelou-me. De saco de compras na mão, como um sonâmbulo, lá me encaminhei para a roulotte. No caminho, murmurava não me deixes cair em tentação, não me deixes cair em tentação, olha a balança. Ninguém me ouviu, ninguém quis saber da balança, nem do colesterol, nem da saúde, nem me quis aliviar da tentação. Eu também não. Uma fartura. É assim que o mundo se perde. Vem a serpente, tenta uma pessoa, o cãozinho pavloviano que há em nós saliva e o mal está consumado. Talvez o sumo de toranja compense. Há que não perder a fé.

Há que desconfiar

Todos os dias alteio mais um pouco o muro que me rodeia. Fecho-me lentamente ao mundo, cubro com cimento as fendas na muralha, certifico-me da qualidade do isolamento sonoro. Ainda não é perfeito, mas a perfeição não é coisa que se consiga de um dia para o outro. Ponho-me a imaginar que o que sou é apenas o resultado de um programa genético. Uma bela desculpa para a minha falência, embora tenha o inconveniente de rasurar algum pequeno mérito que possa, aqui ou ali, ter tido. A última coisa que quero neste momento é uma meditação sobre o livre-arbítrio. Estava a falar do software que me faz ser o que sou e este parece que me conduz a um inexorável isolamento. Nos dias em que estou de humor benigno digo que deveria ter entrado para um convento, daqueles mais rigorosos, para a trapa ou para a cartuxa. Riem-se do dislate e ninguém acredita. Eu também não, mas lentamente vou construindo a minha cartuxa, limpando-a do incómodo que a presença do mundo traz e entregando-me a um silêncio cada vez mais espesso. Falta-me o talento para a oração e há no mundo algumas coisas que ainda fazem cintilar os meus olhos, mas até isso pode ser um exagero. Há que desconfiar de tudo, principalmente de mim mesmo.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Da possibilidade da perfeição

Vinha aqui dissertar sobre a imperfeição e a identidade entre o ontem e o amanhã, mas a quem podem interessar coisas como essas? Há pessoas, cruzo-me com elas todos os dias, que aderem de tal modo à realidade que chegam a parecer reais. Há muito que desisti da minha realidade e até da minha aparência. Como se vê é muito fácil dizer coisas sem sentido. Difícil é encontrar alguma com sentido para dizer. Fará sentido afirmar que lá em baixo um bando de adolescentes se alarga na efusão dos sentimentos contaminado pela efervescência das hormonas? Sobre a espécie humana, as árvores apresentam uma vantagem desmedida. São silenciosas e nos dias de sol projectam uma sombra benfazeja. Li um romance em que a personagem central se transformava numa árvore. Parece bizarro, mas nessa transformação há mais sabedoria do que nas vãs pretensões que alimentam a mente dos homens. Enraizar-se na terra, estender-se para o céu e fazer um voto de silêncio para a vida. Talvez a perfeição não seja impossível.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Dia da defenestração

Faz hoje anos que os Braganças substituíram os Filipes no trono de Portugal. Por muito que goste de Espanha, e gosto muito, dá-me sempre uma boa disposição particular o facto de não ser espanhol. Depois há aquele pormenor insidioso da defenestração do Miguel de Vasconcelos. A política tem destas coisas, uma certa tendência para o exagero e para actos irreversíveis. Ia contar que a execução do colaborador dos espanhóis – supremo símbolo do traidor em Portugal – tinha sido o primeiro assassinato político de que tinha consciência. Seria uma mentira e embora seja obrigado a mentir muitas vezes nestes textos não o faço de propósito. O primeiro foi o de John Kennedy e ainda recordo o meu pai a comentar o assunto com a minha mãe. O caso do Vasconcelos, narrado numa aula da escola primária por um professor ou professora patriota, ficou preso à imaginação pela palavra e pelo modus operandi. Não era todos os dias que se ouvia uma palavra como defenestrar, ainda por cima aplicada a alguém que não só não merecia ir para o céu como todo o castigo aplicado era pouco. Não se pense que falar do céu é coisa despropositada. Lembro-me muito bem, na sequência das aulas de história recebidas naqueles tempos em que a razão não tinha sido contaminada pelo vírus da crítica, de ter pensado como era bom pertencer a um povo cujos governantes e personagens históricas eram não apenas grandes heróis como pessoas particularmente santas. Deviam estar todas na glória de Deus. Talvez o feriado de 1 de Dezembro sirva para assinalar o caso do único português que pela sua aleivosia foi atirado pela janela e só parou de cair quando Satanás o apanhou e o levou para o reino dos infernos. Ainda hoje dou comigo a pensar que as nossas elites se já não são heróicas, os tempos não estão propícios para a coragem, continuam firmes no caminho da santidade. Pelo menos, não tem havido defenestrações.