Crianças de um jardim de infância das redondezas aterraram no parque aqui em baixo. As vozes são agulhas que se espetam pelos ouvidos, até a cabeça explodir. A quietude das tardes de sexta-feira foi imolada ao deus da infância. Como em tudo, também aqui os deuses estão em desacordo. Enquanto o da infância olha com desvelo o burburinho e a verrumante agudeza dos gritos, o da velhice franze o sobrolho e vigia o tumulto com rancor e mal dissimulado ressentimento. Apesar deste ser o melhor dos mundos possíveis, a sua ordem está longe da perfeição. Abro ao acaso um livro e a página pergunta-me, com ar sobranceiro, se as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não sei o que dizer. Se digo que não, serei acusado de irresponsável. Se digo que sim, não faltará quem me chame presunçoso. A solução será passar para a página seguinte e fingir que não se viu qualquer pergunta. As vozes calaram-se, as crianças voltaram para o seu lugar. Na avenida, uma mulher passeia vagarosa um cão. Um carro pára junto à passadeira e outra mulher atravessa-a. Chegada ao outro lado, hesita como se não soubesse o que fazer com o corpo. Decide-se e recomeça a caminhada, presa ao desconforto de ser quem é. Vejo as iluminações de Natal ainda apagadas e lembro-me da tristeza que sobre mim cai sempre que estão acesas. Eu sei que ninguém se interessa pelo Natal, mas as autoridades públicas podiam disfarçar. Logo à noite, terei um jantar natalício. Espero que ninguém se lembre de cantar.
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