segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Distinções linguísticas

Fui à loja ortopédica que há aqui no prédio para comprar umas pantufas para alguém que já não tem grande disponibilidade física para fazer este tipo de compras. Nunca tinha lá entrado e, por alguma razão inconsciente, evitava olhar através dos vidros. Foi uma revelação. Parece haver lá tudo o que é necessário para a miséria física humana. Eu sei que tudo é uma hipérbole, mas esta está-me na massa do sangue e o melhor é dar algum desconto às coisas que me põem aqui a dizer. Bengalas, cadeiras de rodas, bancos com abertura para o que não vou especificar e uma parafernália de dispositivos e objectos que sou incapaz de denominar ou de descrever. Evitamos pensar nas múltiplas formas que a desgraça tem e só quando nos bate à porta entramos naquele mundo e descobrimos que as estratégia da doença para nos humilhar são incontáveis. Chegado a casa, sentei-me e li um artigo (de Marco Neves) sobre o uso das palavras vermelho e encarnado. Quem diz encarnado – e isto não vem lá – por norma não diz prenda mas presente. Recusa-se, não sem veemência, a dizer funeral. A palavra correcta é enterro, asseveram pimpões. É possível que quem usa vermelho prefira oferecer prendas e, quando tem de ser, vai a um funeral. A língua também é um exercício de diferenciação social e quem quer diferenciar-se não se faz rogado. Por mim, só me apetece usar vermelho, prendas e funeral quando estou num círculo de amigos do encarnado. Se me calhar estar no círculo mais popular, posso cair na tentação de evitar o vermelho. Isto, porém, deve-se a ter nascido com uma inclinação patológica para contrariar o que está dado, contrariando-me muitas vezes a mim mesmo. Se estou sozinho não digo vermelho nem encarnado, não distingo prenda de presente e nem me lembro se se trata de um enterro ou de um funeral. Se estou sozinho, evito dizer seja o que for, embora na minha mente prossiga um diálogo infinito, em que falo comigo mesmo como se já tivesse enlouquecido. Estes textos estão a ficar excessivos. Também a verborreia faz parte do meu amor à hipérbole.

2 comentários:

  1. Todavia há uma coisa que me continua a intrigar: porque será que esse pessoal fino que só diz encarnado, presente, enterro, fila, etc. continua a dizer frutos vermelhos - ou será que já dizem frutos encarnados e eu não reparei?
    Já tenho assunto para meditação...

    Boas Festas, HV.
    🎅🎄🤶
    Maria

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    1. Talvez já digam frutos encarnados, há pessoas para tudo. Isto para falar à séria.

      Boas Festas, Maria

      HV

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