quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Do amor aos adjectivos

A manhã desceu não sem ímpeto a escadaria em direcção aos arrabaldes da tarde. Nos dias em que o Outono se vai desfazendo das suas folhas mortas e o Inverno assoma impante no horizonte, a fronteira que separa a manhã e a tarde torna-se mais porosa, contaminando-se uma à outra, deixando-me sem saber a quantas ando. Num dos jornais de hoje, uma escritora afirma que os adjectivos não servem para nada. Fico pesaroso por eles, pela desconsideração e vexame públicos que assim os atinge. Poderia perguntar quem, se não os adjectivos, há-de, por exemplo, qualificar e determinar o pobre do substantivo, mas não pergunto. Já não sei onde, Roland Barthes diz que se usa o adjectivo agradável quando não se quer dizer nada. Como foi a nossa noite de amor, pergunta ele e ela responde, hum… agradável, agradável. É para isto que servem os adjectivos. Que achas do meu texto? Magnífico, se possível com ponto de exclamação, responde-se. Isto é uma qualificação do texto? Não, é apenas a forma que temos para não dizer nada. Usar adjectivos – e não apenas o agradável – é de uma grande utilidade, pois a maior parte das vezes não temos nada para dizer ou temos e não o queremos fazer. O adjectivo é um indício de uma civilização superior que utiliza a qualificação para ostentar o silêncio. No horizonte, nuvens esbranquiçadas toldam o azul dos céus. A tarde, depois de garrotear a manhã, chegou ameaçadora. Estou por conta da ameaça. Não posso dizer que seja agradável.

2 comentários:

  1. Deve ser por isso que o adjectivo Gigantesco desapareceu e foi substituído pelo substantivo Gigante; de repente todos começaram a dizer Gigante...
    Eu também vi essa bela frase na capa da Visão, mas não estranhei; quando o Bob Dylan ganhou o Nobel ela também disse que todos os nobelizados deveriam devolver as medalhas em sinal de protesto (não especificando se também deveriam devolver o dinheirito do prémio...).
    Magnífico!

    Boa tarde, HV.
    🎄
    Maria

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