Acordei a meio da noite e para combater a insónia abri o
romance Os Enamoramentos, de Marías. Agora que passei a fronteira do primeiro
terço da obra começo a vislumbrar por que razão Maria Dolz, a narradora, me envinagra
levemente o ânimo. Não sei o que me reserva o que falta do texto, mas aquela
não é uma mulher plausível. Desconfio que seja um travesti. Que não seja mal
entendido. Um travesti mental. Os homens deveriam ter cuidado em colocarem-se dentro
da pele das mulheres e inventarem discursos que imaginam serem o delas. Se
forem perspicazes, o melhor que conseguem perceber é se estão ou não diante de
um pensamento feminino, mas sem a pretensão de ultrapassar uma visão muito
genérica e exterior da gestalt desse pensamento, cuja composição interior, pela
complexidade, lhes escapa. Talvez seja eu que tenha uma perspicácia diminuta e
não interprete como devia a atracção que a narradora sente pela boca de Díaz-Varela,
o homem a quem as mulheres sem dificuldade se dobram, mas cujos lábios possuem
um recorte feminino que tanto a fascina. É natural que eu não seja levado a
sério. Com tantas coisas a fazer neste mundo, com tantos tortos a endireitar,
com tanta gente a libertar, e eu de candeias às avessas com o perfil
psicológico e a verbosidade de uma mulher que só existe no papel. O dia está
tristonho, um pombo poisou agora no parapeito da janela e, mais uma vez, tomo
consciência que não nasci para salvar a humanidade. Num caderno apontei: nunca
ter a tentação de escrever do ponto de vista de uma mulher. Não apenas por
falta de talento, mas por
impossibilidade ontológica e assim acabo com um ar pretensamente filosófico. O
pombo cansou-se do poiso e foi contemplar o mundo para outro miradouro.
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