Um carro ronca furioso numa das avenidas aqui perto, os
travões guincham, suspendem por instantes o gorgolejar do motor, mas logo este retoma
o matraquear com que responde ao acelerador, pisado sem piedade. O condutor
deve imaginar-se piloto de rallies em
plena competição e sentirá toda a realidade da sua existência no ruído com que esfaqueia
o silêncio dominical da província. O que não falta por aí são campeões destes,
pequenos quixotes deslumbrados pela mecânica, que nunca competiram a não ser no
rally da idiotice. A bazófia do condutor foi exibir-se para outro lado, pois
caiu um silêncio sepulcral sobre as ruas. Lá em baixo, na Sá Carneiro, peões
marcham decididos, enfrentam inimigos terríveis e procuram no caminhar a
salvação para as desditas do corpo ou da alma. Um casal passeia-se de mão dada,
cada um temeroso de que o outro fuja. Pela janela entra um raio de luz. Traça
uma linha oblíqua no chão. Olho-a fascinado, depois volto para este texto. Hoje
hei-de almoçar mais tarde. De novo, um carro roncante invade o meu território
sonoro, mas será outro, já que o ronco se transforma num ronronar cordato até
desaparecer dentro da cisterna do silêncio.
Sem comentários:
Enviar um comentário