Moribundo, o ano está a dar um ar da sua graça. Magníficos
dias de Inverno, onde o sol e o frio se conjugam para alegrarem os pobres
mortais. Durante algumas horas, a luz radiosa mostra-se exuberante, tornando
manifesto aquilo que os dias sombrios esconderiam. À minha frente tenho o longo
ensaio de Elias Canetti, Massa e Poder.
Percorro-lhe o índice. Há nele muitas referências à Antropologia. Pergunto-me se
valerá a pena, se poderá ajudar a interpretar o nebuloso tempo em que vivemos. Oiço
os Gurre-Lieder, de Arnold Schoenberg, dirigidas por Zubin Mehta. É uma das
obras a que volto com regularidade. Esqueço-me do ensaio de Canetti. O espírito
humano é muito volúvel, pensei. Tão depressa se interessa por uma coisa, como,
sem razão aparente, a deixa de lado. Tornei-me especialista em deixar coisas de
lado, em retirar delas o meu interesse e deixá-las em paz. Imagino que o livro
de Canetti me agradeça o desinteresse. Um dia também a vida me deixará de lado,
desinteressada do meu desinteresse, cansada de mim. O sol começa a empalidecer,
carros desfilam pela avenida Andrade Corvo, enquanto o tenor dá voz à desdita
de Waldemar. “Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido.” É
promissor o início da obra de Canetti. Depois dos Gurre-Lieder irei ouvir o Pierrot Lunaire.
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