terça-feira, 24 de novembro de 2020

Contar ovelhas

Cheguei a casa já a noite, com as suas asas de veludo negro, tinha descido sobre a cidade. O desgosto com esta frase só pode ser ultrapassado pela contemplação das cornucópias natalícias da avenida. Olhei-as, enquanto conduzia, e elas cornucopiavam tanta tristeza que a avenida, a mais concorrida deste lugar, exalava tamanha melancolia que não cabe na exiguidade das minhas frases. Há coisas e pessoas assim. Trazem nelas mais melancolia do que aquela que cabe num dicionário e numa gramática. Não porque queiram ser melancólicas, apenas por lhes terem retirado qualquer coisa que não se sabe bem o que seja. Leio que no Utah andavam de helicóptero a contar ovelhas quando depararam com um monólito perdido na paisagem desértica e vermelha. Na verdade, não era bem um monólito, pois não era feito de pedra, mas de metal. Pergunto-me o que encontraria eu se me pusesse a contar ovelhas. Provavelmente, nada, pois não teria à disposição um helicóptero nem a paisagem desértica do Utah. Só ovelhas, um ou outro carneiro, papel e lápis. Talvez uma calculadora para me ajudar nas somas. É a desvantagem de viver na semiperiferia do mundo. Em contrapartida, quando fui levantar uns livros à lavandaria, falo a sério, comi uma fartura. Quente, nada oleosa, doce, como só uma fartura sabe ser. Bem podias comer outra e deixares-te de lugares comuns e frases frívolas, rosnou o homúnculo que habita a caverna da minha consciência. Perguntei-lhe se queria que lhe fizesse um hematoma na testa. Recolheu a penates. Como eu.

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