Está uma bela Primavera outonal. Reverberam, nas acácias, as folhas amarelas batidas pela cintilação da luz. Na desolação em que a vida caiu, estes dias luminosos, onde o calor excessivo está proibido, cingem a vida com uma promessa maior que o desalento semeado pelo génio maligno que preside ao reino das doenças, pandemias e negócios correlativos. Quando a situação deflagrou sobre as nossas cabeças, a ingenuidade que nunca falta aos homens, perversos que sejam, pensou que seria coisa de dias, duas ou três semanas e tudo voltaria ao que estava. Passaram dias, semanas, meses, e nada voltou ao que estava. Isto não deveria ser novidade, pois nunca, mesmo nos tempos de bonança, se volta ao que estava. Um gato espreguiça-se na relva da escola aqui do lado. Estira-se, o corpo arqueado, e quase o vejo a abrir a boca. Depois, enrosca-se e logo se levanta, sacode o pêlo e entrega-se, com a língua, a abluções rituais. Talvez se imagine no Ganges, talvez seja apenas um gato sem culto nem rito e faz aquilo que o código genético lhe ordena. Da aparelhagem chegam-me as vozes de The Hilliard Ensemble e a música sacra escrita por Pérotin, magister Pérotin magnus, que nos finais do século XII e nas primeiras décadas do XIII encarrilou a música medieval em direcção à estação ferroviária da Renascença. Também naqueles dias – ditos da idade das trevas – havia luz como hoje, talvez uma luz excessiva que cegava quem para ela olhava, mas estas considerações estão-me proibidas. Não porque me façam mal, mas talvez porque eu seja um homem da Idade Média, um monge copista que se perdeu nestes dias. Ah como eram suaves aqueles tempos em que sentado no scriptorium, primeiro como livreiro e depois, já velho, como amanuense, rodeado pelo pergaminho, a pedra-pomes, a tinta e as penas, copiava lentamente os vetustos tratados da antiguidade. Depois, aterrei aqui e é o que se sabe.
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