Vivemos numa época desprezível, a época em que o cliente tem sempre razão. Não acordei mal-humorado, pelo contrário. Estou a reler um romance, Le Tentateur (Der Versucher), de Hermann Broch. É uma obra densa, não traduzida para português. Na edição francesa, tem mais de 550 páginas, numa letra minúscula. Quando o li há anos, a letra era bem maior. Fiz uma pesquisa para tentar encontrar uma edição mais nobre, isto é, com mais páginas e caracteres mais adequados aos meus olhos. Não há, mas descobri o comentário de um leitor, melhor de um cliente. Afinal a obra-prima inacabada de Broch é uma porcaria. Tem demasiadas descrições e meditações filosóficas que nunca mais acabam, o que estraga a história. O cliente, aquele que tem sempre razão, decreta que o génio literário Hermann Broch não sabe escrever, comete erros na narrativa. Este mundo, em que a clientela tomou conta de tudo, não passa de uma mercearia de aldeia, pouco asseada e de honestidade duvidosa. Para estes clientes, o escritor é um merceeiro que vende intrigas para distrair a clientela e amealhar uns cobres para a reforma. Omito a palavra que disse agora. Olho para a rua, esqueço o Broch e o cliente e lembro-me da minha videochamada de ontem. O meu neto, pela primeira vez, disse olá avô, e isso trouxe-me uma grande alegria. Rememoro o acontecimento, enquanto escrevo e olho a avenida. Uma mulher de máscara abre o saco e procura, em desespero, pela chave do carro. Lá a encontra, depois de o revolver, com gestos de enfado e complacência, durante minutos. Um homem ergue um braço e na mão, como uma bandeirola, ondula uma máscara batida pelo vento. De seguida, passam, sem o atavio protector, uma mãe e uma filha. Vão como se não tivessem pressa. Uma das acácias da praceta já amareleceu quase por completo e eu olho-a reverente e fascinado pela cor, enquanto dentro de mim ainda oiço olá avô e penso no livro de Broch, com aquelas letras que não foram feitas para mim. Amanhã será domingo.
Sem comentários:
Enviar um comentário