Está um domingo melancólico, polvilhado de cinza, coberto por um grande véu de tule encardido. Os pombos que andavam arredios voltaram para os prédios envolventes. Não tarda, suspeito, chegarão os anjos com as suas enormes asas, cantando em coro numa língua desconhecida pelos homens. Nada do que escrevi representa uma descrição da realidade, mas como acontece sempre, um devaneio do meu espírito, caso eu tenha um. Toda a realidade, a minha, existe apenas na minha mente de narrador. Há pouco recebi uma chamada do padre Lodo. Disse-me que o confinamento o entristece, que precisa de sair à tarde e fazer o seu jantar de sábado com os amigos, o que não foi possível ontem. Quantos anos ainda terei pela frente, perguntou-me como se fizesse uma afirmação. Lembrei-lhe que a paciência é uma virtude de alta cotação que a Companhia dele deve ensinar. Deu uma gargalhada e respondeu-me que até o Lenine achava o mesmo e não consta que estivesse preocupado com o céu ou que fosse jesuíta. E os Settembrini sempre tiveram uma posição ambígua perante a paciência, acrescentou. Desligou, informando-me que tinha de ir dizer missa, mas que andava com pouca paciência para o vírus. Também eu estou com pouca paciência, não para o vírus, mas para mim. Tenho de ler não sei quantas coisas que não contribuirão nem para o meu agrado nem para a salvação de quem as escreveu. O almoço será tardio. Há uns maduros que não param de insistir que possivelmente não passamos de cérebros conservados numa cuba a ser estimulados por computador, que não há como contrariar isto. Ora, se assim fosse, eu que sou destituído de cérebro, não existiria. Portanto, o melhor é encontrarem outra narrativa que resista ao meu contra-exemplo. Ou será que este texto encerra uma contradição insanável?
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