O tempo é um animal implacável. Foi o que pensei ao ver a fotografia de uma pianista que em tempos exerceu um enorme fascínio sobre mim. O passar dos anos não teve piedade para com ela, como por vezes acontece a certas mulheres. Ou talvez a fotografia a tenha apanhado num dia infeliz. Ou, a melhor das hipóteses, estou a ver mal e confundo-me com facilidade. Para a vingar, oiço-a numa sonata para piano de Brahms, e esqueço-me do tempo, do arado que sulca a pele dos mortais, para que eles se cansem de si e da vida. Hoje é dia de S. Martinho. Antes de a pandemia nos ter trazido ao sítio onde estamos, havia por aqui perto grande feira e não pequenas romarias. Tudo em honra do Santo, mesmo as enormes bebedeiras, a estúrdia campestre e as bravatas de senhoritos que são já uma encenação museológica, embora ainda não o saibam. Confesso que gosto desses equívocos trazidos pelo passar do tempo, em que as pessoas ficam presas ao que eram e julgam-se assim merecedoras de uma distinção que ninguém reconhece ou dá por ela. Soubessem elas a verdade e talvez se rissem de si próprias. E o que é a verdade? A verdade é que não passamos de nada, vamos a cominho de lugar nenhum, onde florescem ininterruptamente ninguéns. A poeira ou as cinzas são a nossa verdade, embora o santo não descure as castanhas e a água-pé. É sensato, apesar de santo.
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