quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma tarde cheia

Bebo lentamente o café. Não uso açúcar, o gosto é intenso e o amargor que a torrefacção lhe dá explode na boca, em instantes de prazer mais longos do que seria de esperar. É possível que esta inclinação do paladar para os sabores difíceis, para aquilo que é amargo, reflicta qualquer coisa do meu carácter que prefiro desconhecer. Deste modo meditativo, entro na tarde. Anuncia-se longa, cheia de videoconferências, esses exercícios de piedade que não convertem ninguém, mas que são essenciais numa realidade que perdeu qualquer sentido do que é razoável. Durante anos vi crescer à minha volta a irracionalidade e o niilismo, como se houvesse em algum sítio cujo nome me recuso a nomear uma fábrica de fomento de entropia nas instituições. As pessoas, essas ou sofrem os efeitos sem perceber o que se está a passar, ou são agentes, quase sempre ingénuos, do processo tenebroso que estende a teia por tudo o que é lugar. Não devia escrever coisas destas depois de almoço. Podem afectar a digestão, ainda por cima estou a ganhar o terrível hábito de falar por cifras. Ontem, estava-me a esquecer, ouvi o conjunto musical da escola aqui ao lado. Imagino uns professores cuja idade se deverá omitir a tocar um arremesso de rock sinfónico. Fico feliz, não pelo interlúdio musical que me oferecem – dispenso-o de bom grado – mas por aqueles músicos. Depois, penso que talvez nem fossem eles, mas apenas uma aparelhagem a reproduzir qualquer coisa gravada numa outra época. É possível. Vivemos num tempo de simulacros. Mansamente, vou deixar a tarde deslizar sobre mim com as suas videoconferências, as suas injunções à salvação das almas que se querem perder e odeiam salvadores, os seus sacerdotes perdidos num labirinto, sem que um fio de Ariane tenham para poderem voltar à luz do dia.

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