Cheguei a casa já a noite caíra. Não foi, porém, um grande trambolhão. Escorregou e, tentando equilibrar-se, segurando-se aqui e ali, estatelou-se sem se magoar, sem fazer barulho. Com ela veio a cerração e o mundo tornou-se mais secreto. Outrora, a noite era um grande mistério, uma prova iniciática. Hoje, não passa de um conjunto de pequenos enigmas que não tocam o coração nem o espírito de ninguém, a não ser por convenção. Se está muito escuro, liga-se a luz eléctrica, e os arcanos são engolidos pelos sucedâneos do dia. Num livro de poemas, leio a palavra umbral. Fico a recitá-la devagar, como o fazia quando era criança. Pegava numa palavra e repetia-a vezes sem conta, até o seu sentido se dissolver na consciência. Era um rito encantatório ou talvez tivesse já nessa época um instinto homicida relativamente às palavras. Estava a dizer que gostava muito do som umbral. Também gosto de limiar e, ainda, de fímbria. Que experiências arcaicas nos fazem gostar daquilo que gostamos? Poucas coisas sabemos, e as que sabemos o melhor seria não as saber. Aos ombros, transportamos a ignorância. Enquanto ela cresce e o seu peso se avoluma, o corpo começa a penetrar na terra e acaba por desaparecer. Devia poupar os eventuais leitores a estas derivas retiradas das memórias grotescas de um candidato à loucura perdido à porta do manicómio. O gosto pela hipérbole continua bem vivo.
Ainda bem que não nos poupa. :-)
ResponderEliminarE eu gosto da palavra poupa: do som da palavra, da ave, do canto da ave, de todos os outros passeriformes que têm poupas (cotovia, chapim, etc.).
Isto para não falar de alguns penteados que me fazem sorrir...
Mas, caro HV, vou poupá-lo às minhas divagações e desejar-lhe um bom dia de São Martinho, com boas castanhas e uma bebida à sua escolha.
🌰🍷
Ah... muito obrigado. E pode divagar à vontade. Desconfio que este ano não vou ter castanhas.
EliminarUm bom S. Martinho, Maria
HV