domingo, 22 de janeiro de 2023

O humor

Uma longa conversa ao telemóvel, mais de uma hora, com o padre Lodovico Settembrini. Uma parte da conversa é irreproduzível, pois, para meu espanto, o padre Lodo estava particularmente interessado na situação política. Durante todos estes anos, sempre o vira acercar-se desse tipo de questões com a prudência, mesclada de ironia, que é a virtude dos jesuítas. Essa prudência manifestava-se na parcimónia dos comentários sobre a situação de cada momento. Por vezes, dizia que tudo aquilo fazia parte da espuma da vida e que acabaria por ficar nos eixos. E não será preciso que venha alguém para o pôr na ordem, acrescentava, lembrando-se, por certo, de Hamlet. A inércia das coisas acabará por resolver o assunto. Hoje, porém, essa crença na inércia das coisas – uma forma eufemística usada por ele para designar a acção da Providência – parecia senão abalada, pelo menos toldada. Disse-lhe que já não tinha idade para uma crise de fé. Respondeu-me que, para vergonha e perdição dele, sempre desconfiara dos homens. Portanto, não era uma crise religiosa. Depois, mudou de assunto e informou-me que andava a reler os escritos do padre Manuel Antunes. Daí derivou para o modo como nos conhecemos. Estava eu numa aula dessa grande figura da cultura portuguesa do século passado, um jesuíta que dirigiu a revista Brotéria, e saí para vir para o corredor fumar um cigarro. Nesses dias gloriosos, fumava-se dentro das aulas, mas o padre Manuel Antunes estava já muito débil e os fumadores, como forma de reverência, tinham esse pequeno ritual. Saíam da sala de aula, um anfiteatro cheio, para se submeterem ao gesto vicioso. Quando saí fui abordado por alguém com um português estranho, que me perguntou se faltava muito para a aula acabar. Tinha um encontro com o professor Antunes, assim me disse. E ficámos ali a conversar, enquanto eu sorvia o fumo e acrescentava um cigarro ao anterior. Na altura, não imaginei que aquela pessoa fosse, também ela, um jesuíta, pois nada na indumentária, na voz e nos gestos me indicava estar perante um padre. Só, mais tarde, o descobri. Foi nessa altura que nos tornámos amigo. Ao discernir a sua condição de membro da Companhia, disse-lhe: com que então um discípulo de Leo Naphta. Ele olhou-me perplexo, quase furioso. Depois, os músculos da face descontraíram-se e deu uma grande gargalhada e disse com um italiano aportuguesado: é verdade, o humor é uma das coisas mais preciosas que nos foi dada. Faz parte da nossa imagem e semelhança com Ele. Eu respondi que de imagens e semelhanças nada sabia, mas que estava de acordo com a preciosidade do humor.

4 comentários:

  1. Um dia pensei que todos juntos pareciam o politburo. Mas havia um, quase da minha idade, brilhante, que, nas aulas de física médica, dizia: é duvidoso, mas não vamos já tirar o véu. Morreu novo, mas ensinou-nos quase tudo.
    Queria deixar aqui uma nota de humor negro, género, o friso de orquídeas sucumbiu ao quatour por la fim di temps.
    Espero que não mate a cotovia.

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  2. Quatuor pour la fin du Temps.

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  3. Acho que a cotovia sobrevive. Pena foi que a Cotovia, a editora, tenha morrido.

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  4. Enquanto houver livros da Cotovia pousados nas estantes ou nas mãos, a Cotovia não morreu (uma bela nota de sofisticação essa, como o canto da cotovia no Catálogo de Pássaros de Messiaen).

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