Peças de arqueologia. Em busca de uma informação, abri um livro. Descobri que em Dezembro de 1989 ainda assinava e datava os livros que comprava. Um desprezível gesto de posse. Uma outra descoberta foi o custo da obra, 2300$00, preço colocado pelo livreiro a lápis. Lá dentro, encontrei um cartão natalício, referente ao Natal desse ano, da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Como chegou até mim, não faço ideia. Nunca tive qualquer contacto com tal instituição. O cartão reproduz um presépio de altar de um artesão de Estremoz. A peça mais interessante que encontrei foi, porém, um postal RSF das Publicações e Livrarias Europa-América. Servia para encomendar, através dos CTT, livros à editora, sem que se tivesse de pagar portes pelo envio da nota de encomenda. Esta estratégia comercial existia um pouco por todo o lado. Desconfio que os editores da altura não imaginavam que em breve se tornaria obsoleta. Talvez seja isso que acontece sempre. É mais do que provável que esteja obsoleto, mas penso que não. Julgo que ainda posso fazer uma ou outra coisa com interesse, mas isso é, na verdade, pura presunção. Há um momento em que se deixa de entender o mundo e este deixa de nos compreender. Isso deve-se a uma transformação do Zeitgeist – uso o termo alemão para parecer erudito – que é impiedoso para com a sua ascendência. Enquanto Cronos – ou Saturno, para quem tenha uma alma mais romana – devorava os próprios filhos, o Zeitgeist devora os seus pais. Esta é uma diferença central entre os tempos modernos e a antiguidade. Nesta, o futuro é uma ameaça. Nos dias de hoje, o passado apavora tanto que tem de desaparecer sem deixar rasto. Tornar-se obsoleto é uma das formas de ser tragado pelo deus da modernidade, o tal Zeitgeist. O resultado é que não encontrei a informação que procurava, mas a caixa de correio não deixa de ser bombardeada por emails. Desconfio sempre que não terão nada de interessante para me contar. Talvez os próprios emails já estejam obsoletos e ainda não saibam.
Hoje li que há um relógio do apocalipse. Pareceu-me que andam sempre a fazer batota com os ponteiros. Quando tudo indica que lá chegámos, atrasam aquilo sem o mínimo respeito.
ResponderEliminarEm La Peste, de Camus, um livrinho da Gallimard, descobri um postal dirigido a mim, com a minha letra, em que o texto é apenas um número. Fico intrigada, mas depois lembro-me de o ter deixado em branco, na faculdade, para me enviarem uma melhoria de nota. Só podia ser a Infecto-contagiosas. Quem encontrar aquilo, no futuro, pensa que está dentro de um conto de Cortázar.
No futuro, caso não façam batota com os ponteiros e o apocalipse chegue. A batota com os ponteiros do relógio tem essa vantagem, deixa que se pense que há um futuro e imaginar que alguém se imaginará num conto de Cortázar.
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