Este dia de Inverno tem uma aparência outonal. Talvez seja da luz, talvez seja da música de Satie que oiço. Talvez seja da imaginária perfeição que atribuo ao Outono. A lentidão das Gnossiennes quase me faz mergulhar num daqueles devaneios onde se dilui a fronteira entre o sono e a vigília. Deambular numa fronteira não é o pior dos males, embora essa linha imaginária possa ser uma terra de ninguém. No caso, nem a pátria onde se sonha, nem a nação onde se vive de olhos bem abertos. As notas deslizam como se fossem pequenas bolas de cristal a descer do céu, num planeta onde a gravidade quase não existe. Começo a preocupar-me com os erros que dou. Quando quis escrever ‘descer do céu’, escrevi ‘descer do seu’. Estas confusões fonéticas estão a tornar-se cada vez mais frequentes. Os dedos encaminham-se para elas sem qualquer pudor. Uma chamada profissional devolveu-me à realidade. Esta não é feita de devaneios, mas de acções que inscrevem na tela do tempo – devia evitar as aliterações na prosa – os alicerces que prendem a vida ao solo deste pobre planeta. Pascal Rogé continua ao piano a dedilhar a música de Satie. Agora, uma pequena peça com o nome Sports et Divertissements: Le Tango. Há nela uma ironia que me faz sorrir e abre a porta para uma nova fuga à realidade. A caixa de correio não deixa de ser bombardeada por emails. Imagino que as baterias antiaéreas não estão a funcionar.
Vi dançar as Gymnopédies, na Gulbenkian, há mais de 40 anos; mas acho que a primeira vez que as ouvi foi num documentário de Alfredo Tropa. Tenho aqui ao meu lado as 3 Gymnopédies & other piano works, por Pascal Rogé. As Gymnopédies são da vida aquática e uterina, Quando as ouvia repetidamente aos vinte e três anos, nunca liguei aos Embryons desséchés. As Gnossiennes são do nevoeiro.
ResponderEliminarTambém tenho períodos em que oiço repetidamente o mesmo compositor. Por vezes, a mesma obra. Isso acontece-me - agora, menos - com o Satie.
EliminarNão ouvia Satie há muito tempo. Mas agora estou a ouvir. E o que é mais surpreendente é que a música dele nos ultrapassa em maturidade, isto é, a Gymnopédie No1 agora é a Gnossienne No.5. Jamais a Sonatine bureaucratique.
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