sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Na fronteira

Este dia de Inverno tem uma aparência outonal. Talvez seja da luz, talvez seja da música de Satie que oiço. Talvez seja da imaginária perfeição que atribuo ao Outono. A lentidão das Gnossiennes quase me faz mergulhar num daqueles devaneios onde se dilui a fronteira entre o sono e a vigília. Deambular numa fronteira não é o pior dos males, embora essa linha imaginária possa ser uma terra de ninguém. No caso, nem a pátria onde se sonha, nem a nação onde se vive de olhos bem abertos. As notas deslizam como se fossem pequenas bolas de cristal a descer do céu, num planeta onde a gravidade quase não existe. Começo a preocupar-me com os erros que dou. Quando quis escrever ‘descer do céu’, escrevi ‘descer do seu’. Estas confusões fonéticas estão a tornar-se cada vez mais frequentes. Os dedos encaminham-se para elas sem qualquer pudor. Uma chamada profissional devolveu-me à realidade. Esta não é feita de devaneios, mas de acções que inscrevem na tela do tempo – devia evitar as aliterações na prosa – os alicerces que prendem a vida ao solo deste pobre planeta. Pascal Rogé continua ao piano a dedilhar a música de Satie. Agora, uma pequena peça com o nome Sports et Divertissements: Le Tango. Há nela uma ironia que me faz sorrir e abre a porta para uma nova fuga à realidade. A caixa de correio não deixa de ser bombardeada por emails. Imagino que as baterias antiaéreas não estão a funcionar.

3 comentários:

  1. Vi dançar as Gymnopédies, na Gulbenkian, há mais de 40 anos; mas acho que a primeira vez que as ouvi foi num documentário de Alfredo Tropa. Tenho aqui ao meu lado as 3 Gymnopédies & other piano works, por Pascal Rogé. As Gymnopédies são da vida aquática e uterina, Quando as ouvia repetidamente aos vinte e três anos, nunca liguei aos Embryons desséchés. As Gnossiennes são do nevoeiro.

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    1. Também tenho períodos em que oiço repetidamente o mesmo compositor. Por vezes, a mesma obra. Isso acontece-me - agora, menos - com o Satie.

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    2. Não ouvia Satie há muito tempo. Mas agora estou a ouvir. E o que é mais surpreendente é que a música dele nos ultrapassa em maturidade, isto é, a Gymnopédie No1 agora é a Gnossienne No.5. Jamais a Sonatine bureaucratique.

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