Quando nada se tem para dizer, o melhor não é calar-se, mas fazer uma citação. Por exemplo, esta: Os homens pressentem confusamente a ameaça, mas são cegos e surdos, ou melhor, foram cegados e ensurdecidos. Pressupõe o autor que houve um tempo em que os homens viam e ouviam e que depois, por acção de um agente por identificar, nem os oftalmologistas nem os otorrinolaringologistas lhes valeram. Somos agora todos cegos e surdos. É possível que sim, mas a verdade é que não somos mudos. Posso imaginar que a cegueira e a surdez tenham soltado a língua à espécie, tal o grau de ruído que há por esse mundo fora. A minha experiência, porém, não confirma a citação. Ainda na segunda-feira fui a uma oftalmologista e ela não me diagnosticou qualquer cegueira. Com esta frequência de consultórios médicos, devo já ter material para me dedicar a elaborar uma taxinomia dos descendentes de Hipócrates. Ou será de Esculápio? Arrastado até lá por uma pessoa muito próxima que se fizera operar pela senhora, predispus-me a ser consultado. Deparei-me com uma mulher muito elegante, para quem o tempo fora benévolo, pois não será muito mais nova do que este narrador, sofisticada e com umas mãos belíssimas, talvez as mais belas que vi em toda a minha vida. O rosto estava oculto pela máscara, mas a parte visível indiciava que não desmereceria da visão global. Fiquei, porém, levemente desconcertado ao sentir-me que estava perante uma técnica, que todos os seus gestos e palavras eram técnicos, como se a técnica fosse uma segunda máscara, bem mais eficaz do que aquela que lhe cobria o rosto, um disfarce que ela necessitava de usar. Este desconcerto nascido do confronto entre elegância e técnica foi ontem acentuado ao ver o filme de Ulrich Seidl, Na Cave. É uma obra feita em modo de documentário, onde se mostra as fantasias das pessoas que ganham vida e substância nesses subterrâneos romanescos que são as caves dos prédios modernos das grandes cidades. No filme, não vemos como são as pessoas à luz do dia, mas o que são quando os olhos dos outros se tornam cegos. Não consegui deixar de me perguntar o que haverá na cave de quem usa a técnica como máscara quando a luz do dia incide sobre si e existem olhos que não são cegos e ouvidos que não surdos por perto. Talvez sinta nos outros uma ameaça.
A palavra a António Franco Alexandre:
ResponderEliminarJá a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
(…)
Poemas; pg. 508
Assírio & Alvim
Uma exactidão notável.
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