Uma viagem no Inverno. Por vezes, chuva. Outras, um sol brilhante. A uma dada altura, o arco da aliança unia o céu e a terra. Sempre, um frio cortante, mas que tinha um poder revigorador, como se fosse uma memória que me ligasse ao que há de mais essencial na existência, como se esta fosse marcada pelo que há de mais rude e silvestre. Talvez os genes transportem memórias de outras existências, não nossas, mas dos que vieram antes de nós e a que damos o nome de antepassados. Talvez algum dos meus antepassados longínquos tenha vindo das terras frias e tenha deixado em herança aos que vieram depois a nostalgia do mundo em que terá vivido. Mesmo que isso seja falso, não deixa de ser uma conjectura interessante. Sempre se pode imaginar a altura que terá chegado à Península ou que por cá tenha passado e lançado a semente dos seus genes na terra rica que por aqui havia. O passado de cada um de nós é tão susceptível à imaginação quanto o futuro. Imagine-se que na cadeia dos ascendentes se encontra um longínquo avô ou avó que nasceu de um estupro. Em nós repousariam ainda, por diluídos que fossem pelos sucessivos cruzamentos, os genes de um violador e de uma violada. Se se pensa nisso, depressa se tem impressão de que não haverá ser humano que não descenda de um acto desses, tão grande é a cadeia de gerações e tão rudes os costumes. O que teria o corolário de que somos todos descendentes de um não consentimento. O processo de chegar a filhos fruto de um mútuo consentimento deve ter sido muito árduo e encontrado enormes obstáculos. Ainda hoje haverá fortes resistências a esse refinamento das relações humanas, no qual só é possível aquilo que resulta do acordo das partes. Nada disto tem que ver com a viagem no Inverno, mas a vida é mesmo assim, começa-se a falar de uma coisa e não se sabe a onde se vai parar. E só se pára porque a nossa natureza não nos permite continuar. Um homem imortal arrastaria atrás dele uma conversa infinita. Talvez por isso, os deuses conspiraram para que ele se tornasse finito e mortal. Não tinham paciência para tanta conversa.
Se o genótipo pudesse ser consultado como um rótulo numa lata de conserva, evitavam-se uma série de complicações na vida. E ainda bem que como nas latas de conserva também há uma validade.
ResponderEliminarAinda bem.
ResponderEliminar