sábado, 21 de janeiro de 2023

Inclinações

Por vezes tenho inclinações homicidas. Por exemplo, liquidar este blogue. Este é um blogue tardio. Começou muito depois da febre da blogosfera estar debelada. As pessoas transitaram para as redes sociais, onde tudo é mais rápido. Como estou cada vez mais lento e, acima de tudo, como acho a lentidão inerente a uma vida bem vivida, abri esta casa, onde narro a coisa nenhuma que me vai acontecendo, acrescentando e subtraindo pontos aos contos. Também posso registar aquilo que espero fazer no futuro. Por exemplo, daqui a pouco irei ver a minha mãe, que não me reconhecerá e perguntará quem sou. Isto no caso de se dispor a interagir comigo. Depois, mais ao fim da tarde, irei à aldeia onde a minha mãe me deu à luz, sítio onde raramente vou, ao lançamento de um livro de um amigo. Um trabalho de história sobre o culto local do Espírito Santo. Para o jantar, terei a presença do meu neto. Está um espevitadão na conversa, embora não no crescimento. Irá ao quarto dos brinquedos e arrastará uma série deles atrás de si. É possível que brinquemos com as miniaturas de automóveis que por lá estão. Desviei-me na conversa. Oiço o Quator pour la fin du temps, de Olivier Messiaen. A expressão que dá título ao quarteto é equívoca. Pode pressupor uma visão apocalíptica em que este mundo acaba, a intenção de Messiaen, presumo. Pode também dizer apenas que é o tempo que acaba, mas não o mundo. Não consigo, porém, imaginar o que será um mundo sem tempo, mas será mais fácil pensar que tudo colapsa e se afunda no puro nada. Continuo a desviar-me, enquanto as linhas crescem, como metástases, numa fuga ao assunto original, a do homicídio deste blogue. É uma inclinação, mas nem sempre devemos ceder ao que nos inclina. O Quator de Messiaen prossegue, aproxima-se do quinto andamento Louange à la Éternité de Jésus. A peça foi escrita durante o cativeiro na Alemanha, aquando da segunda guerra mundial. Messiaen compôs o Quator, Paul Ricoeur traduziu Husserl para francês, em circunstâncias idênticas. A afrontosa derrota francesa teve o condão de poupar alguns dos seus artistas e intelectuais. Curiosamente, isso não salvou a França de se tornar, nos dias que correm, uma potência cultural irrelevante. A morte da cultura francesa não será resultado de um homicídio, mas talvez de um suicídio. Ou, então, morreu de velhice, isto é, de causas naturais.

4 comentários:

  1. Quando Messiaen imitou o canto do rouxinol, isso não acrescentou nada ao canto dos rouxinóis. Quando apaguei o meu blogue no dia dos meus anos, a blogosfera não tremeu.
    Quando a minha mãe me reconhece e me apaga, eu também me apago.
    É por isso que gosto tanto dos meus cães. E do canto pela noite fora dos rouxinóis.

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    1. É uma sensação particularmente estranha, o do apagamento pela própria mãe. Hoje ainda consegui ser identificado como primo. Pelo menos reconheceu em mim um certo ar de família.

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  2. E visitar os outros não lhe ocorre? Vai ver que também sabe bem, eles têm também os seus cantos onde falam de coisa nenhuma e é nessas coisas nenhumas que afinal são toda a vida que nos vamos encontrando...
    ~CC~

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    1. Eu visito outros blogues. Uns com mais assiduidade, outros com menos. Mesmo quando a blogosfera começou a perder peso na dinâmica da internet, nunca deixei de fazer essas visitas.

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