Julgo que hoje fui acometido por uma doença denominada wishful thinking, que se me perdoe o uso de uma expressão em língua bárbara. Dou comigo a pensar que é sexta-feira, apesar de saber perfeitamente que não o é, mas um desejo secreto encobre o conhecimento e sopra-me na mente essa impressão de que o fim-de-semana está mesmo ali à porta, é só bater e entrar. O sábio arquitecto que ordenou as coisas do mundo e os poderes do homem, por ser sábio, determinou que as coisas não fossem como as desejamos, mas como são apesar do que nos vai na alma. Isto, contudo, não se deve a uma maldade dele, mas à sua prevenção e capacidade de cálculo. Com a sua omnisciência avaliou que mundo haveria se cada homem tivesse o poder de fazer com que a realidade se adequasse aos seus desejos. Transformou os desejos em quantidades, desenhou um algoritmo adequado ao cálculo, colocou tudo num supercomputador e, para surpresa sua, viu que o resultado da operação era igual a zero. Este cálculo não aconteceu agora, mas naquele tempo em que o tempo não existia, e o arquitecto empenhava-se em conceber um mundo que fosse o melhor de todos os mundos possíveis. Então, iluminou-se, literalmente, e percebeu que nesse mundo, o melhor de todos os possíveis, o melhor, o mais sensato e previdente, seria limitar o poder do desejo humano. Não é que a decisão tenha sido drástica. O arquitecto não é um radical. Concebeu que seres como os homens, por vezes, podem realizar um ou outro desejo, mas de modo muito moderado, para que o edifício sabiamente arquitectado não desapareça na tormenta desejosa dos homens. Por isso, pela sua sábia decisão, vejo-me frustrado. Desejo que hoje seja sexta-feira, mas tenho de me contentar com a quinta-feira. O meu desejo introduziria uma fissura no tempo, um buraco pelo qual tudo poderia desaparecer. Acho que me constipei.
quinta-feira, 11 de maio de 2023
quarta-feira, 10 de maio de 2023
Nulidade
O que queremos dizer quando dizemos que não temos nada dentro da cabeça? A asserção não é factual, pois caso fosse verdadeira, não poderíamos dizê-la. Aliás, não poderíamos rigorosamente nada, pois não existiríamos. Só podemos afirmar que não temos nada dentro da cabeça porque temos alguma coisa dentro da cabeça. O que me apetece, todavia, dizer é que não tenho nada dentro da cabeça. Devo fazê-lo? Devo faltar à verdade pare descrever uma sensação realmente sentida, mas que sei ser falsa? Quando se chega a esta altura do dia e a única coisa que os dedos conseguem fazer surgir no monitor são estas interrogações idiotas sobre um assunto insignificante, no sentido radical da palavra, então é porque o dia foi gloriosamente perdido na nulidade. Talvez o niilismo seja a perda de cada um na pura nulidade. Ora, a nulidade é um oceano pacífico e profundo, onde se mergulha e se flutua à tona de água até se adormecer. Depois, é uma questão de sorte. Uns afogam-se, outros são devorados por tubarões, outros são arrastados pela corrente para a areia, talvez de uma ilha deserta, ou quase, se nela habitar uma princesa adormecida. O problema destas princesas adormecidas que habitam em ilhas quase desertas é que aqueles que nelas encontram a salvação estão longe de serem príncipes encantados, e mesmo que cheguem ao momento em que dão o beijo na bela adormecida e esta acorde, eles transformam-se em rãs e a princesa pensa que foi mordida por um batráquio. Mais valia continuar a dormir. O niilismo que habita a minha cabeça não dá para mais. Uma princesa bela e adormecida foi mordida por uma rã, a pobre. Uma comoção.
terça-feira, 9 de maio de 2023
Atrasos e extravios
Uma citação de Camões – O que é Deus, ninguém o entende – em epígrafe, da terceira elegia recolhida em Labareda, uma colectânea de poemas de Alberto Lacerda, anuncia o poema que começa assim: O mergulho abrupto de certas horas / No relógio lento do coração. E aqui eu imagino que ninguém entende o ser de Deus porque o coração, o coração de cada um, é um relógio lento. Essa lentidão conduz ao atraso e quando alguém tem um encontro marcado com Deus, acaba sempre por chegar atrasado. A hora da audiência já tinha passado, o ser da divindade recolhera-se em si mesmo e ocultara-se ao entendimento de um coração destituído de ardor ou, para ser mais exacto, de ímpeto. É possível que a elegia de Alberto Lacerda siga outra vias, mas este texto segue o seu próprio rumo, no jardim dos caminhos que se bifurcam. Daqui a pouco terei de rumar a um certo destino, onde me esperam, mas não corro o risco de que a minha falta de ímpeto tenha como consequência o sumiço de quem me aguarda. A única coisa que temo é que o caminho se comece a bifurcar e eu me extravie. Ainda mais.
segunda-feira, 8 de maio de 2023
Segunda-feira
Fui pôr o carro na oficina. Alguém lhe deu um toque, e um dos faróis dianteiros ficou a dançar no abismo hiante onde se acolhe. Os suportes estavam partidos. Isto já deve ter acontecido há uns dias, talvez há mais de uma semana. Não tinha dado por nada, mas lembro-me de, por vezes, ouvir uns barulhos anormais, mas depois calavam-se e como a minha relação com automóveis é desastrosa não dava mais atenção ao assunto. Hoje, quando vou pegar no carro, achei qualquer coisa estranha no farol, um pouco saído. Foi então que descobri o drama que lhe tinha acontecido. Agora, vai descansar na oficina, enquanto se submete ao tratamento, e eu aproveito e descanso dele. Para falar de aproveitamentos, aproveitei deixar o carro na oficina para regressar a casa a pé, acumular pontos cardio e observar como estavam as ruas por onde ia passando. Nada de notável, a não ser uma buganvília cuja cor me pareceu ser fúcsia, embora não queira abusar da palavra. Uma orquídea fúcsia, agora a buganvília. A minha cultura floral é diminuta, mas palavras houve que me obrigaram a olhar para o referente. Buganvília, com a sua musicalidade, foi uma delas. Outra, de um registo sonoro muito diferente, foi aspidistra. Outra palavra de que gosto. Razões, desconheço-as. Com o passar dos anos, o reino vegetal vem-me parecendo muito mais interessante do que o animal. Este é uma triste história de luta pela comida e pela reprodução. A evolução podia ter ficado pelas plantas, seria tudo mais sério e profundo. Não estaríamos cá nós, seres humanos, dir-se-á. É verdade, mas perder-se-ia alguma coisa?
domingo, 7 de maio de 2023
Quase um esquecimento
Quase me esquecia de vir aqui, tão imerso estava numa daquelas actividades absolutamente necessárias, mas que não servem rigorosamente para nada. A imersão era tal que poderia ter-me afogado. Salvou-me o telefonema de um amigo, que me trouxe para fora de água, isto é, do mar de inutilidades em que mergulhara desde manhã. O dia declina, a luz já perdeu o vigor, embaciou, o que anuncia o crepúsculo. Antes de jantar, que será uma pequena refeição tardia, terei de caminhar um pouco. Não posso passar em branco essa tarefa. O encontro matinal com a balança assim mo recomenda. Ainda olhei para ela com olhar de desaprovação, mas ela manteve-se esfíngica. Fiz promessas, mas logo de seguida entretive-me em não as cumprir. Imagino que esta seja a melhor hora para andar por aí. Toda a gente em casa, entregue aos rituais da alimentação, as ruas vazias, menos carros, tudo vantagem para um passeante solitário. Basta, a rua espera-me.
sábado, 6 de maio de 2023
Conjecturas
sexta-feira, 5 de maio de 2023
Anonimato
Não sei a razão, ou talvez saiba, mas hoje, por várias vezes, dei comigo a olhar para o dia e achar que era sábado. Em resumo, na minha mente, caso tenha uma, esta sexta-feira não passa de um sábado disfarçado. Se nós, seres humanos, nos disfarçamos, por que estranha razão os dias não o poderão fazer? Aqui, por exemplo, o narrador esconde-se no disfarce do anonimato, o que acontece com muitos narradores, embora menos com os autores, mas não é a circunstância presente. Tão anónimo é o autor quanto o narrador. As coisas têm explicações simples. O autor não conseguiu encontrar um nome adequado para o narrador e preferiu a omissão. Quanto ao nome do próprio autor, este achou que o cansava e proibiu qualquer revelação. Há pessoas que se cansam de si próprias, outras cansam-se do seu nome. Há uma razão funda para alguém se cansar do nome, embora pouca gente pense no assunto. O nome que se tem, aquele que dizemos este é o meu nome resultou de uma atribuição para a qual o portador não deu qualquer contributo. Toda a vida transportamos como nossa uma coisa que nos foi imposta. Segundo sei, e um narrador sabe muitas coisas, o autor nada tem contra o seu nome, o qual se integra na onomástica nacional, sem excessos para cima ou para baixo. Um nome normal, cairá dentro da curva de Gauss. Contudo, para certos efeitos, o autor cansou-se dele e decidiu-se pela ocultação. Poderia ter mudado de nome, mas achou que tão pesado será o nome que nos deram como aquele que escolhemos. Sem nome, fica mais leve e o que mais se precisa neste tempo de calor é de leveza. A sexta-feira continua com cara de sábado.
quinta-feira, 4 de maio de 2023
Kitsch e ideias feitas
Duas belas edições chegaram-me hoje através dessa empresa elusiva que dá pelo nome de CTT, que tantas coisas boas, ao longo de décadas, me tem trazido. Na caixa do correio, encontrei, ao chegar a casa, o número 20 da revista Electra. Textos e imagens combinam-se num produto sumptuoso e de preço irrisório. Deveria ter evitado a adjectivação. É de mau gosto, talvez um exemplo do Kitsch, usar palavras como sumptuoso e irrisório. Ora, o assunto nuclear da revista é, neste número primaveril, o gosto, e há um artigo de António Guerreiro com o título de O Kitsch e outras declinações do mau gosto. A outra edição não a encontrei na caixa do correio, mas tive de ir por ela a um balcão dos CTT. Trata-se do volume I de Gargântua & Pantagruel, uma tradução do poeta Manuel de Freitas, com as inevitáveis ilustrações de Gustave Doré. A obra é publicada pela E-Primatur, uma editora que funciona através de projectos que são apoiados pelo público. Tinha dado apoio à publicação desta tradução, mas depois apaguei o facto da memória ou entreguei-o ao reino sombrio do esquecimento. Insisto no kitsch. Agora, recebi-o, não sem antes ter recebido um email que me avivou a memória e me retirou do abismo do olvido. A Electra termina com uma entrada, ou verbete, “Nómada” (mais honestamente, NÓ ● MA ● DA), da autoria de Daniel Jonas, do Dicionário das Ideias Feitas. Ora, aqui está uma coisa à minha dimensão, para além do kitsch, as ideias feitas. Nem sequer posso dizer que essas ideias feitas foram compradas. Umas foram herdadas, outras tomei-as de empréstimo, outras tê-las-ei roubado nem sei onde, e outras haverá que achei, pobrezinhas, pois andavam por aí ao deus-dará e recolhi-as. Por outro lado, e há sempre um outro lado, apesar da diversidade da sua origem, elas não são muitas. Além de feitas, as minhas ideias são escassas. Pertenço a um tempo de escassez e até nas ideias sou frugal, para evitar que me provoquem colesterol, uma coisa horrível como prova a origem grega da palavra, que deriva de Kholé (bílis) e steréos (sólido), ao que se adiciona, como se fosse sal, o sufixo -ol. Tudo informação gratuita da Porto Editora, passe a publicidade.
quarta-feira, 3 de maio de 2023
O mesmo e o outro
Num livro lido há muito encontrei múltiplas passagens sublinhadas a lápis. Por curiosidade, fui passando as páginas e lendo os sublinhados. Seria muito cómodo afirmar que, se lesse esse livro de novo e em estado imaculado, sublinharia as mesmas coisas. Com isso daria a prova de ser sólido, imutável, um carácter nada volúvel. Seria comovente, mas falso. Em primeiro lugar, é pouco provável que me pusesse a ler aquele livro. Depois, entre mim e aquele que, com a minha mão, sublinhou o livro há uma distância que não me parece pequena. O sublinhador tornou-se-me estranho, se não estrangeiro. Um dia, alguém me disse que permanecemos sempre o mesmo, que, na verdade, nunca mudamos. Não foi bem a mim, mas aos alunos que assistiam a uma amena aula, que decorria na Faculdade de Letras, talvez numa tarde já quente. Imaginei que seria uma afirmação de Parménides contra Heraclito, mas achei-a estranha. Talvez a experiência do confessionário, pensei, lhe tenha ensinado a imutabilidade do carácter humano, pois a afirmação veio de um padre. Contudo, ela trazia uma negação terrível da própria função sacerdotal. Se permanecemos sempre os mesmos, que sentido fará tentar salvar as almas da perdição? Se eu permanecesse o mesmo, reconhecer-me-ia nos sublinhados feitos há décadas, mas não me reconheço. Logo, não sou o mesmo que era nesses dias. Também é possível que o outro e o mesmo sejam distinções sem sentido, fruto de uma fantasia de distinção, isto é, um jogo da imaginação. Está uma tarde sem sol, mas abafada. Uma luz de cinza esbranquiçada cai em borbotões sobre a praça. Os ramos das acácias e das tílias vergam-se ao peso dessa luz, inclinando-se para a terra, como se ela fosse a sua casa.
terça-feira, 2 de maio de 2023
Contaminações
Respiro fundo ao sentar-me na minha cadeira. Ela, a pobre cadeira, é um dos lugares do mundo de que mais gosto. Por vezes, arrasta-me para o território da sonolência, mas tem-me sido fiel como um cão e prestável como um serviçal. Imagino que as analogias usadas sejam reprováveis. Não cairá bem aos representantes dos cães que os seus representados sejam retratados por uma característica que lhes anule a autonomia e os aprecie como instrumentos ao serviço de uma outra espécie. Também passou o tempo dos serviçais, pois todos nos tornámos membros de um exército de serviçais, cada um com a sua patente. Ora se todos somos serviçais, é como se ninguém o fosse. E daquilo que não é não se deve falar. Isto é o que me ocorre, agora que estou refastelado na cadeira, deixando a tarde deslizar em direcção à foz, deixando as vozes da rua ecoarem até que o silêncio as devora e tudo se torna mais nítido, mais transparente. Sim, é verdade, o ruído é uma fonte de deformação da visão, impede-nos de ver claro, de apreciar a forma das coisas, os seus contornos. Este efeito não é estranho e muito menos único. Também os maus aromas impedem o gosto de saborear com adequação. Os sentidos contaminam-se uns aos outros, para contaminarem, depois, a razão, a imaginação, a memória. Cada ser humano é o produto mil contaminações, que um esforço absurdo tenta desfazer, para que tudo se torne puro e independente. Tempo perdido.
segunda-feira, 1 de maio de 2023
Um país de solucionadores
Hoje, 31 graus. Amanhã, 36. Eis um dos meus temas preferidos, as desventuras do calor. Outra coisa que me impressiona é a grande capacidade de os portugueses encontrarem soluções para problemas que, além de os desconhecerem, não têm qualquer possibilidade de executarem a solução que propõem. Estava eu à espera de outra pessoa, quando alguém me interpela por causa do calor e do calor saltou de imediato para a falta de água. Um deserto é para onde caminhamos, disse eu para não me comprometer. Deserto, não. Temos de usar água do mar, dessalinizá-la, exclamou. Não contente, afirmou que isso já acontecia há mais de 20 anos no Porto Santo ou numa outra ilha qualquer, não retive o nome. Canalizam a água como o gás. Eu que não faço ideia nenhuma do assunto, nem fiz notar que entre uma ilha minúscula e o país, apesar de pequeno, não há comparação possível. Chegou a pessoa por quem esperava e fui-me embora, deixando o solucionador de problemas a vociferar contra a burocracia, que, para além dos políticos, é sempre um útil bode expiatório para as nossas incompetências. Durante a minha vida, já longa, descobri que os portugueses são muito bons naquilo que não lhes cabe fazer. Este solucionador poder-me-ia ter dito que já estava a poupar água, que era frugal na sua utilização, que, usando a informática, tinha racionalizado o consumo em casa, sei lá, qualquer coisa que estivesse na mão dele, mas não. A solução óptima é sempre aquela que os outros têm de fazer, não a que me cabe realizar. Em tempos muito recuados da minha existência, naquela idade em que o fervor anímico é inversamente proporcional à compreensão da realidade, também cheguei a ter em carteira algumas fórmulas milagrosas, mas depressa me tornei ateu relativamente a essas divindades pagãs. Não só não lhes presto culto, como não tenho qualquer solução para seja o que for que ultrapasse os meus limitados poderes, e mesmo dentro destes, as soluções que encontro deixam sempre muito a desejar. Para dizer a verdade, nem me preocupo muito com a existência de pessoas que transbordam de soluções para os outros realizarem, desde que me sejam poupadas homilias, pregações, prédicas e sermões. Está calor e é tudo o que tenho para dizer.
domingo, 30 de abril de 2023
Com zelo e aptidão
O mês despede-se hoje sem honra nem glória, mas isso é o que acontece normalmente. A honra e a glória são excepções, não a norma. Há pouco, remexendo em velhos papéis, encontrei um diploma do Ministério do Exército que certifica que o titular do presente diploma desempenhou com aptidão e zelo, durante 12 (DOZE) MESES, as funções… Tal como o titular do diploma que foi apto e zeloso, mas não se distinguiu no campo de batalha, o qual nos meses referidos no diploma, esteve fechado e assim se tem mantido, e, por isso, não alcançou honra e glória, também o mesmo aconteceu com o mês que agora termina. Foi apto? Foi. Foi zeloso? Também. Preencheu todos os dias que o calendário lhe atribuiu, não lhe terá faltado com um minuto. Agora, chegada a meia-noite, entrará para a casa translúcida do nada e, exceptuando um ou outro motivo que nele se animou, fará do esquecimento o seu modo de ser. Entretanto, estava sintonizado na Antena 2 e oiço um anúncio institucional ao CD do compositor e pianista Amílcar Vasques-Dias, De Ouvido e Coração, Celebrando José Afonso. Indicava também a interpretação de uma cantora de flamenco, de um fadista e de dois cantores líricos. Acedi a uma dessas plataformas onde se aluga música e procurei o álbum. É o que estou a ouvir, enquanto não chega a hora de almoço. Estas metamorfoses musicais nem sempre correm bem, mas esta, parece-me, encontrou o ponto exacto onde estilos musicais bem distintos se podiam encontrar. Bastante interessante é a interpretação de Cantar Alentejano e Canção de Embalar pela cantora de flamenco Esther Merino. Uma descoberta no último dia de Abril, um dia solar, mas ventoso, como constatei quando fui à rua.
sábado, 29 de abril de 2023
Livros e status
Ida ao aeroporto buscar alguém, almoço em Lisboa, retorno ao lar, doce lar, à cadeira do escritório. Depois de uma semana tensa, o que me apetece mesmo é dormir. Este apetite pelo sono, todavia, não é partilhado pelo corpo, ou pelo cérebro, caso este não faça parte do corpo, pois quando chega a hora de dormir, com ela vem, velada sabe-se lá por quê, a insónia. Nessas alturas, que não são poucas, aproveito para adiantar leituras. Há pouco, em viagem, ouvi, na Antena 2, que a civilizada Coreia do Sul é um dos países do mundo onde menos se lê, apesar de ser um país tecnologicamente avançado e onde as pessoas mais usufruem das novas tecnologias. O comentador, alguém cujo nome esqueci, mas que falava em castelhano, não via no facto um problema. Não estabeleceu uma correlação entre o uso das novas tecnologias e o baixo índice de leitura. Pelo contrário, sublinhou os progressos que o país está a fazer para trazer a leitura para a vida das pessoas, dando a entender que ler não fazia – e ainda não faz – parte da cultura daquele país. Se isso se passasse em França, acrescentou, seria grave, pois era a marca de um retrocesso. Talvez nós, ocidentais, tenhamos sido vítimas de um fetichismo, o dos livros. Havendo pessoas que decoram estantes com livros, ou mesmo com simulacros de livros, movidas pelo encantamento em que caíram. O encantamento seria o de um suposto estatuto social que, contra qualquer evidência, o livro daria. Os livros nunca deram status. O que acontecia era que, em tempos, tempos longínquos, as pessoas que tinham status também tinham livros. Ora democratizar o livro não implica a democratização do status. Este, por natureza, não é democratizável, pois o seu fundamento é a diferenciação, a distinção, mesmo que esta se deva a coisas que pouco ou nenhum sentido tenham. Imaginemos uma pessoa que cria canários pelo prazer de os contemplar, de cuidar deles, de ver florescer as linhagens. Ninguém alcança status a criar canários. Quem gosta verdadeiramente de livros não é diferente de um criador diletante de canários. Gosta de os contemplar, de os ler, de ver florescer as múltiplas linguagens que ali se encerram, mas isso não acrescenta um grama ao seu status social, felizmente.
sexta-feira, 28 de abril de 2023
Espíritos
Um dia para esquecer. Os motivos, omito-os. Também o clima não ajudou. Quente e abafado, com o corpo a pedir chuva, literalmente, ou mesmo uma boa trovoada. Subia com a lentidão do trânsito o viaduto e ia ouvindo a Antena 2, como é hábito. Uma peça musical para oboé, salvo erro. A certa altura pensei que toda a arte é um trabalho sobre a matéria, mas não sobre a materialidade da matéria. O artista trabalha a matéria para que se revela o espírito que ali se oculta, para manifestar a espiritualidade da matéria. Esta ideia fez-me sorrir, enquanto contornava uma nova rotunda e já me encaminhava para outra. Depois, pensei em Hegel, na sua tese de que a arte é uma forma sensível de manifestar o espírito, a ideia, mas este é o pensamento de Hegel e não aquilo que eu tinha pensado. Não se trata de um espírito absoluto a caminho de si mesmo, mas de espíritos particulares que estão presentes num bloco de mármore, na combinação de uma certa tela e da tinta que a vai tingir, na conjugação de ondas sonoras, ou de corpos que lutam contra a gravidade. Ao estacionar o carro, percebi que estava perto do politeísmo ou então de uma certa forma de angelologia. No elevador, ocorreu-me que, por exemplo, num certo bloco de mármore estão contidos inumeráveis, senão infinitos, espíritos, mas a limitação da arte humana só consegue revelar um. A consequência é que toda a arte é um exercício de homicídios espirituais. Nisto é muito idêntica à reprodução sexuada. Por cada espermatozóide que atinge a meta, morrem milhões com todas as suas infinitas potencialidades. Agora que estou sentado e escrevo tudo isto, constato que o dia não está a melhorar. Daqui a pouco irei fazer a caminhada diária, mas o ar pegajoso que adivinho nas ruas deixa-me relutante.
quinta-feira, 27 de abril de 2023
Uma viagem em verso e meio
Quase no início da quarta elegia de Duíno, Vasco Graça Moura traduz verso e meio de Rilke assim: Não somos unos. Não nos coordenados / como aves migradoras. (…) A primeira pessoa do plural gera uma feliz ambiguidade. Quem não é uno? Quem não se coordena como as aves migradoras? Será a espécie humana o referente desse nós? É verdade que entre os homens reina sem parar a discórdia, o diferendo, a desavença, que a aliteração sublinha e intensifica, e que são o sinal da falta de coordenação e de unidade. Esse nós, todavia, pode ser um plural majestático, uma referência ao eu, a uma alma desavinda consigo. Serei eu que não sou uno, nem me coordeno como se coordenam as aves migradoras. A ambiguidade, porém, não termina aqui. Esse nós, que no original está expresso, pode ser, ao mesmo tempo, um eu e um nós. Todos os eus sofrem da falta de unidade e de coordenação consigo mesmos e por isso constituem um nós. O que introduz mais uma ambiguidade. Nós, seres humanos, estamos coordenados e unidos na falta de unidade e coordenação que cada um sofre. O que nos une é a desunião. O que nos coordena é a descoordenação. Da primeira à terceira interpretação das palavras de Rilke, ou da tradução de Graça Moura, passamos da sociologia à ontologia por intermédio da psicologia. Todo o poema – ou todo o verso – é um palimpsesto.
quarta-feira, 26 de abril de 2023
Do quotidiano
Os termómetros, por aqui, chegaram aos 32 graus e Maio anuncia-se com temperaturas na ordem dos 35. A rua estava insuportável, e tudo indica que este estado de coisas é irremissível. Agora, o Verão começa em Abril e prolonga-se por dentro de Outubro, até quase Novembro. A sensação que paira nos ares é de que ninguém quer saber, como se as pessoas se entregassem a uma lógica evolucionista, em que os mais aptos se adaptarão às novas circunstâncias, e não há ninguém que se sinta excluído do grupo dos mais aptos. Ou talvez se espere um milagre que resolva aquilo que parece não ter solução. Um milagre sobrenatural ou criado pela ciência. Ouvi esta conversa a alguém que se interessa pelo clima, mas não soube o que lhe dizer. Enquanto escutava, pensava em lugares frescos, paisagens de névoa e na água fresca que me apetecia beber. Coisas simples de um exilado climático. O dia prolongou-se e eu perdi-me na azáfama, sem dar conta de algum acontecimento merecedor de narração. A entrada para a auto-estrada estava cortada, o aparato policial indicava haver problema e o trânsito acumulava-se perdido na lentidão. Foi um acidente, disseram-me pouco depois. Mais tarde, encontrei outro, mas já às portas da cidade, embora esta não tenha portas. As que havia na muralha fernandina, que circundava a antiga vila, o terramoto de 1755 levou-as com a muralha. Agora, vivo numa terra desmuralhada, incapaz de opor resistência a mouros ou castelhanos. O Word não gostou de desmuralhada, sublinhou-a a vermelho e propôs emuralhada ou mesmo desmortalhada. Pensei que o processador de texto estava numa fase tétrica. Vou fechá-lo.
terça-feira, 25 de abril de 2023
Modorrar
O feriado corre dolente, não há vento, as árvores parecem estátuas coloridas, petrificadas pela varinha mágica de algum deus irrequieto e desocupado. A avenida envelhece tomada pelo calor, pelo sol vigoroso de um Abril cada vez mais estival. Voltei ao tema recorrente da meteorologia, do estado do tempo, das peripécias do clima. Na minha secretária repousa o romance Sob a estrela do Outono, de Knut Hamsun. Tinha-o lido em espanhol, e agora que a Cavalo de Ferro o publicou em português vou relê-lo. Contudo, há uma coisa que me preocupa. Esta obra, de 1906, é apenas a primeira de um conjunto denominado Trilogia do Vagabundo. Ora, na edição portuguesa não vejo, em sítio algum, a referência ao facto. Temo que se esqueçam de publicar os outros dois volumes. Já os li em espanhol, mas já que comprei o primeiro em português, gostaria de completar o grupo de romances. Na contracapa do livro é citada a frase de Thomas Mann: Hamsun é o maior escritor de todos os tempos. Talvez Mann exagerasse, mas será um dos maiores, com lugar cimeiro no paraíso dos escritores, embora é possível que o não tenha no dos homens. Isso, porém, é um assunto que não cabe nestas linhas. Vou modorrar um pouco para fazer companhia à tarde, onde o tempo parece ter adormecido, mas nãos haja equívocos, mesmo a dormir o tempo continua a sua caminhada.
segunda-feira, 24 de abril de 2023
Citações
Tenho ideia, uma vaga memória, de que terá sido por um CD de 1994 que entrei no universo do compositor polaco Krzysztof Penderecki. Trata-se de uma recolha de peças, com destaque para Threnody to the Victims of Hiroshima, De Natura Sonoris ou Canticum Canticorum Salomonis. São peças, todas elas, de grande densidade, como se fossem o eco da tragédia que impregnou o século XX. Oiço agora esse CD e penso que, se alguém der por isso, julgará que enlouqueci. Se me acusassem de ter entontecido, eu responderia que era falso e leria alto o poema: Esclarecendo que o poema / é um duelo agudíssimo / quero eu dizer um dedo / agudíssimo claro / apontado ao coração do homem // falo / com uma agulha de sangue / a coser-me todo o corpo / à garganta // e a esta terra imóvel / onde já a minha sombra / é um traço de alarme. Depois de escrever o poema da Luiza Neto Jorge, pensei que não me livraria da acusação, que o acusador haveria de repetir que a minha sombra / é um traço de alarme. E ficaria ele mais alarmado, enquanto a trenódia – ou será tronodia? – se eleva e me toca o fundo do coração, com o qual oiço o canto lamentoso que clama na voz silenciosa dos mortos.
domingo, 23 de abril de 2023
Da posse recíproca
Não li o livro, ainda não o li, mas vejo, em pequenos episódios, o filme que adapta o romance de Octave Mirbeau, Diário de uma Criada de Quarto, com a realização de Benoît Jacquot. Existem outras adaptações, entre elas uma de Jean Renoir e outra de Luis Buñuel. Releio O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, do qual Luchino Visconti fez um grande filme. A obra de Lampedusa foi escrita entre 1954 e 57, a de Mirbeau foi publicada em 1900. De certa forma ambas têm um alvo social preciso, a burguesia. Em O Leopardo é a ironia do príncipe de Salina que pontua a ascensão da burguesia ao poder efectivo na Itália em unificação. Em O Diário de uma Criada de Quarto é o olhar penetrante de Célestine que manifesta a impiedade e corrupção moral de uma burguesia já consolidada em França. O olhar que vem de cima e o que vem de baixo encontram-se no mesmo alvo, vendo cada um deles coisas diferentes, mas que, na verdade, são complementares. O domingo progride sorrateiro, aproxima-se da hora de almoço. Já fiz uma caminhada quase matinal. Nessa viagem, não me lembrei do príncipe nem da criada, apenas de coisas que me vão preocupando, numa rememoração dos últimos dias e numa antecipação dos próximos, caso seja possível antecipar seja o que for. Imagino, neste momento em que uma nuvem cobre o sol, que num outro mundo, seria possível que Fabrizio Corbera, príncipe de Salina, e Célestine, a criada de quarto, se encontrassem como iguais. Aqui poder-se-á fazer entrar as seguintes considerações: Quanto ao comércio natural dos sexos ele tem lugar ou segundo a simples natureza animal (vaga libido, venus vulgívaga, fornicatio), ou segundo a lei. Neste caso, trata-se do casamento (matrimonium), isto é, a ligação de duas pessoas de sexo diferente, que quer, para toda a sua vida, a posse recíproca das suas faculdades sexuais. Talvez esta linguagem explique a razão pela qual Kant, o autor, nunca se casou. Os quatro artigos sobre o direito conjugal (parte da Metafísica dos Costumes – primeira parte: Doutrina do Direito) são todos eles escritos neste registo. Ora, muito mais tarde, o príncipe de Salina, depois da comunicação pelo padre Pirrone de que a sua filha Concetta estava apaixonada, pensou: Amor. Claro amor. Fogo e chamas durante um ano, cinzas durante trinta. De alguma maneira, o comentário meditativo do príncipe acaba por dar razão ao filósofo alemão. O matrimónio nada tem que ver com o amor, mas com a dura gestão das cinzas, isto é, da posse recíproca das suas faculdades sexuais até ao fim da vida. Um problema de gestão de propriedades, digamos. O que para Kant está muito acima do comércio natural dos sexos segundo a simples natureza animal.
sábado, 22 de abril de 2023
Arqueologias
Hoje desloquei-me um pouco mais para o interior, não muito, nem vinte quilómetros, mas o país já é outro. Acabei por almoçar naquele lugar, num restaurante tipicamente de interior. Nada de aparências ou comidas europeias, mas uma casa decente, empregados preocupados com o ofício – isto é, com os clientes – mesas com toalhas e guardanapos de um branco imaculado, uma boa carta de vinhos e uma comida portuguesa bem feita. Os comensais são muito distintos daqueles que se encontram nos restaurantes da moda em Lisboa, por exemplo. Uma burguesia provinciana, em que ainda se nota traços de uma vida rude, mas onde o aroma do dinheiro começa a apagar as cicatrizes dos tempos difíceis. Quanto mais se progride para o interior, maior é o número deste tipo de restaurantes, casas sólidas, de onde não se sai defraudado, pelo contrário. Isto não significa que em Lisboa ou no Porto não existam restaurantes provincianos, com a mesma cultura expressa na carta de vinhos e na qualidade da ementa. Existem e também não se sai defraudado. Contudo, a ambiência trazida pelos clientes é diferente, mais cosmopolita, com menos traços de uma vida rude, talvez por ser mais antiga. Contudo, uma saudade, que os próprios ignoram, leva àqueles lugares como peregrinos de um deus desconhecido. Enchem as mesas como resposta a um impulso arcaico ou para exercerem uma actividade de arqueólogos que, com garfo e faca, escavam memórias ancestrais desconhecidas. Para o que me havia de dar hoje.