quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Kitsch

Existe uma escala de degradação das aptidões escriturárias. Há dois dias vi que me faltava talento para escrever apocalipses. Ontem baixei a fasquia, mas também não tenho capacidade para ser um escritor de teorias da conspiração. Hoje analiso se tenho poder para escrever piadas, daquelas que são idiotas, mas que fazem rir as pessoas. Ora, escrever uma coisa idiota não me é difícil, mas não faz rir ninguém. Nunca inventei uma anedota e não uso o chiste, a ironia está-me vedada por natureza, natureza minha. É deprimente, mas esta é a verdade. Se escrever tragédias nunca me ocorreu por razões óbvios, podia ser que escrevesse comédias, não comédias a sério, mas uns pequenos gags para animar a conversa em grupo. Nada, porém, me ocorre, falta-me a finesse d’esprit orientada para a ironia. Isto transportou-me para uma experiência cinematográfica dos últimos dias. Vi diversos filmes de Nanni Moretti. Estes podem dividir-se em dois géneros. O drama, onde Moretti actor e os filmes que faz são tensos, e o filme político. E é este o mais interessante para o assunto de hoje. São comédias, onde somos levados a rir da personagem, das suas convicções, do modo como ela se relaciona com as ideias que tem sobre o mundo. Não se está perante um clown, mas diante de um exercício de relativização das crenças que talvez tenha a sua raiz em Cervantes, descobrindo-se uma personagem quixotesca no lugar de um militante cego pelo sol das suas convicções. Esta última frase era dispensável, mas não resisti a um bocadinho de kitsch. Voltando ao meu caso, incapacitado para o gag, estou confrontado com a realidade. Restam-me as frases kitsch, como a que diz o crepúsculo enovela-se sobre si mesmo, abrindo o caminho por onde passarão os cavalos da noite.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Fundamentalistas dos textos

Hoje passou-me a vontade de escrever apocalipses. Só de pensar no assunto fico exausto. Mais interessante seria escrever teorias da conspiração. Tenho, porém, um ponto fraco. Falta-me a alma de conspirador, o que me impediu de ser o quadragésimo primeiro conjurado na revolta do 1.º de Dezembro de 1640. Tivesse eu essa alma, e a história seria diferente, pelo menos no número de conspiradores. Há quem me afiance que aqueles que escrevem teorias da conspiração não conseguem conspirar contra coisa nenhuma, exercício que exige disciplina, realismo, cálculo de probabilidades, intuição para a teoria dos jogos e capacidade de acção dento dos limites estreitos das possibilidades. Os escritores das teorias da conspiração, apesar de anónimos, são desprovidos de disciplina e contacto com a realidade, não sabem calcular, não imaginam que exista uma teoria dos jogos e poder de acção é coisa que neles não existe. Em suma, falta-lhes, como a este narrador, a verdadeira alma de conspiradores. Então derramam nos processadores de texto – os conservadores fazem-no em papel – as mais alucinadas teorias. Eis uma outra faculdade de que estou desprovido, a da alucinação. Por vezes, alucino um pouco nestes textos, mas é mesmo tão pouco que chego a pensar que são descrições hiper-realistas do mundo. Com tudo isto, consegui perceber a razão que me impede de ser um escritor de teorias da conspiração. Tenho um poder de alucinação muito baixo. Quase que se pode dizer que sou impotente, o que pode ser uma coisa boa para o mundo, pois é menos um a multiplicar maluquices. Contudo, o problema não está tanto em quem escreve teorias da conspiração, mas nos leitores que lêem essa literatura. Levam muito a peito a suspensão da descrença, que no dizer de Coleridge é essencial para seguir uma história ficcional. Nas teorias da conspiração, encontramos aquilo que o poeta inglês diz ser necessário para suspender a descrença: a teoria implausível deve ter um interesse humano e uma aparência de verdade. Um leitor normal de romances suspende a descrença enquanto lê, mas, quando pára a leitura, põe em vigor a descrença, torna-se ateu perante o que está a ler. Já os leitores das teorias da conspiração são muito mais fiéis ao texto e nunca suspendem a descrença. São religiosos da literatura, digamos assim, verdadeiros fundamentalistas dos textos.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Apocalipse

Imagino que em vez de narrar as patetices que narro deveria escrever textos apocalípticos. O mais difícil, porém, está em escolher por qual apocalipse deveria começar. São tantos que fico perplexo pelo embaraço da escolha. A perplexidade leva-me à hesitação e, hesitante, caio na inacção, isto é, na não escrita de textos desse género. Resta a vulgaridade da vida quotidiana, o calor que por aqui está, a tortura a que os castanheiros da avenida marginal parecem estar a ser submetidos, o sono que me arrasta para sestas indesejadas, a compra de umas anilhas de borracha para tentar pôr uma máquina de lavar louça a fazer a sua obrigação sem que haja uma inundação. Também podia mobilizar a memória e escrever sobre a vitória da selecção de râguebi sobre a das Ilhas Fiji, um acontecimento, diga-se. Ou então contar o que os olhos vêem se se dirigem para uma das janelas deste escritório onde me sento. Escolas, bosques, hospitais e um símbolo de uma hamburgueria internacional que se ergue impante sobre a ramagem do arvoredo para chamar incautos esfomeados. A vida quotidiana é uma tristeza e talvez seja ela própria, na sua trivialidade, uma forma de apocalipse. É, pelo menos, o apocalipse que está ao alcance da minha escrita. Também é verdade que isto não é a ilha de Patmos, apesar da ilha de Patmos poder ser em qualquer lado, inclusive aqui.

domingo, 8 de outubro de 2023

Dupla alma

Uma semana de Outubro passada e o calor não recua no terreno. Tem um exército bem treinado e não está disposto a ceder à amenidade dos dias frescos. Hoje acordei com uma alma heraclitiana e em tudo vejo conflito, a guerra é a mãe de todas as coisas. Não é sempre com esta alma que acordo. Tenho também uma alma parmenideana. Quando acordo com ela, os conflitos desapareceram e até a própria mudança se extravia para parte incerta. Estou – melhor, sou – no reino da uniformidade. Tudo é imóvel e eu permaneço na imobilidade geral. Quem sofre da doença da dupla alma contém em si todas as filosofias que existem, aquelas que virão a existir e todas as possíveis que nunca virão à existência. Quem traz em si todas as filosofias possíveis, porém, deve abster-se de privilegiar alguma e, desse modo, não deve ter nenhuma, pois escolher uma seria um acto de exclusão de todas as outras. Um ser filosófico, na sua completude feita de duas almas, não tem nenhuma filosofia, enquanto todos os que têm filosofias não são seres filosóficos, pois são incompletos, faltando-lhes ou a alma heraclitiana ou a alma parmenideana. Fiquei assim depois de tentar em vão consertar uma ligação da máquina de lavar louça à canalização da rede pública. O dispositivo, de natureza heraclitiana, decidiu começar a pingar, inundando o que não devia. Eu, também em maré heraclitiana, apliquei-me em consertar mais este torto no mundo, mas, nesse instante, a minha alma virou parmenideana, e a coisa manteve-se como estava. Optei então pela imobilidade do que se estava a mover e fechei a torneira de segurança. Uma derrota na minha gesta de consertador de mundos. Amanhã, terei de contactar algum canalizador heraclitiano para que a coisa entre nos eixos. O calor expande-se e os meus neurónios arrastam-se sempre que são chamados a fazer sinapses.

sábado, 7 de outubro de 2023

Tédios

É no pensamento 529, na edição portuguesa, que Blaise Pascal trata do spleen. Muito antes de Baudelaire. Não é assim que ele lhe chama, mas Ennui. Em português, optou-se por tédio. Este nascerá da insuportabilidade de o homem estar em pleno repouso, isto é, ausência de paixão, de afazeres, de divertimentos, de tarefas. A inacção seria um revelador insuportável da natureza ontológica do homem. Pascal dramatiza: Sente então o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Perante a experiência dessa natureza decaída e nula, virá do fundo da alma o tédio, mas não vem só. Acompanha-o a treva, a tristeza, o desgosto, o desprezo, o desespero. Tremo perante a descrição deste inferno moderno, eu que estou em pleno dia de repouso, desejando nada fazer. Contudo, o pensamento pascaliano projectou-me para a acção – já que qualquer paixão que me possa tocar será de evitar – e entrego-me ao acto de comer aquilo que, na padaria pós-moderna existente neste lugar abandonado pelos anjos, dão o nome de rolinhos de canela. Não gosto do nome, mas rasuro-o ao comer a coisa. Não devia fazê-lo, pois hoje tive um encontro muito desagradável com a balança. Há muito que não a pisava, e ela, por despeito, sentindo-se abandonada, temendo o seu nada, devolveu-me um peso exorbitante. Não lhe disse nada, saí de cima dela e deixei que a informação digital do monitor se apagasse. O meu nada está muito pesado, pensei já numa versão próxima de Pascal. Agora, tenho de me despachar, pois tenho de ir à capital de um outro distrito para ver um filme do Nanni Moretti. Lugar a que terei de voltar, caso queira ver o de Woody Allen, isto se não for à capital do império, do antigo império, queria dizer, agora uma cidade pimpona, cheia de turistas desejosos de vistas panorâmicas.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Leituras

Fora eu poeta, e grande ode escreveria à sexta-feira, a esse tempo de anunciação do fim-de-semana, em que a beatitude de se libertar das corveias da necessidade se torna, por instantes, um facto. Aproveito este tempo de interlúdio para ler algumas coisas. Por exemplo: A minha atitude para com as mulheres está determinada por isso de forma perfeitamente clara:  não elejo a minhas companheiras, mas são elas que me elegem a mim. Isto foi escrito por Hermann Broch na Autobiografia psíquica. Esta suposta troca de papéis – pois é isto que está em causa – seria o resultado da sua impotência, não sexual, mas ontológica.  O escritor austríaco não terá dado conta, porém, que o seu caso não é excepção, mas a regra. Os homens supõem que escolhem, e essa suposição é tanto maior quanto maior é a sua potência ontológica, mas, na verdade, são as mulheres que os escolhem, dando-lhes a ilusão da iniciativa. Isto conduz a que seja enviesado o corolário proposto por Broch: ainda que (o homem) não tenha escolhido por si mesmo (a mulher), chega, desde o princípio a uma relação emotiva de agradecimento e obrigação, determinada por laços muito menos eróticos do que morais… O enviesamento reside na consideração de que isto acontece como excepção. Ora, como é sempre a mulher que escolhe, o que está por detrás da sua iniciativa é a transformação de eros em morus, num costume que assegura a continuidade. Esta leitura não é minha, pobre narrador sem experiência das coisas do mundo, mas encontrei-a num caderno de Eduína. Limitei-me a reproduzir um pensamento alheio e a traduzir a citação de Broch do castelhano para português. Nunca deixa de me espantar o que encontro naqueles cadernos que herdei sem saber como. Agora, vou sair e entrar dentro do resto da sexta-feira, para ver o que há por lá.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Perturbação na atmosfera

Está um quente dia republicano. Sábado haverá um casamento monárquico. Não se pense, todavia, que este escriba vai tomar aqui posição sobre a querela entre monarquia e república. O autor talvez tenha uma clara e firme posição sobre o assunto. O narrador, porém, não se imiscui em assuntos que, na verdade, não têm qualquer interesse. Mais importante é o Nobel atribuído a Jon Fosse ou a leitura de Rayuela (O Jogo do Mundo, na tradução portuguesa), de Julio Cortázar. Li até ao capítulo 56. Parei mesmo na entrada daquilo que o autor chama capítulos prescindíveis. A partir destes propõe um novo percurso de leitura da obra que, talvez seja interessante e inovador, mas para o qual ainda não ganhei paciência. Serei um leitor preguiçoso, pouco dado à genialidade inovadora, mas cada um é o que é. Gosto de ler romances de seguida e não de andar aos saltos entre capítulos. Não sou um macaco nem um canguru. Tão pouco um cavalo de xadrez. Eu, no lugar de Cortázar, teria publicado dois livros. Um com os 56 capítulos imprescindíveis. Outro com todos os capítulos, os prescindíveis e os imprescindíveis, ordenados segundo o arbítrio do autor. Cada vez estou mais certo de que os anos sessenta não fizeram bem a ninguém. Haveria qualquer coisa na atmosfera de então que perturbava os espíritos, e o romance de Cortázar é de 1963. Logo, fruto da perturbação reinante. Esta opinião de narrador pode não coincidir com a do autor destes textos. É apenas uma possibilidade, mas estou longe de confiar no seu discernimento. É mesmo possível que, como dito acima, ele tenha convicções firmes sobre repúblicas e monarquias, mas isso poderá ser mais uma prova da debilidade do seu poder de discriminação. Então, quando está calor, só se pode esperar o pior. Vou acabar isto e publicar, antes que ele acorde com mau humor e exerça o poder censório com que se dotou.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A expulsão do mundo

Lentamente somos expulsos do mundo. Estava previsto no contrato que permitiu a chegada a este lugar inóspito. Mesmo que eu não o soubesse, sempre haveria o célebre fragmento de Anaximandro para me o recordar. Diz o seguinte, numa tradução encontrada por aí, pois faltou-me a paciência para a procurar nos meus livros: De onde é a génese dos seres, também para aí devém a sua corrupção, segundo a necessidade. Pois se concedem e se compensam reciprocamente, justiça pela injustiça, segundo a ordem do tempo. Sei, portanto, que me será feita justiça pela injustiça cometida ao nascer, ao separar-me do ilimitado. A ele terei de voltar. Contudo, há uma outra forma, mais insidiosa, de nos colocar fora do mundo, que é alterar as regras que um longo hábito solidificou em nós. Há pouco, para me entregar um livro, um carteiro tocou, atendi no intercomunicador. E ele decidiu tratar-me pelo nome próprio. Suspeito que é uma estratégia de relações públicas. Dei pela moda quando, há uns anos, o cardiologista, um rapaz bem mais novo do que eu, a inaugurou. Deve imaginar estabelecer uma relação mais próxima com o paciente. Percebi que a moda está a democratizar-se, pois já chegou aos carteiros e, constou-me, às pessoas que atendem os clientes em certas lojas de roupa. É verdade que a coisa é ligeiramente mais suportável do que o corrente tratamento por senhor seguido do primeiro nome. Numa situação normal, entre pessoas que não se conhecem, no caso de homens, o tratamento seria pelo último apelido, ao qual seria anteposto a designação de senhor. Este era o meu mundo. Fui expulso dele ou ele acabou. Só um outro cardiologista, o que me trata da electricidade e do ritmo do coração, cumpre a regra à qual fui habituado. Não é um caso de idade, pois ele é da mesma idade do outro. Talvez o facto de ter sido formado na Academia Militar o tenha tornado atento à tradição. Julgo que é a isto que sociólogo Zygmunt Bauman chamava a liquefacção do mundo. Num mundo líquido, deixou de haver espaços abertos e sem eles somos todos a mesma água. Talvez esta liquidez seja uma preparação para mergulhar no ilimitado.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O decréscimo dos dias

Os dias estão a encolher a olhos vistos. Imaginemos que chegávamos à Terra em Junho e nada soubéssemos da mecânica das estações, das relações entre a Terra e o Sol. Neste momento, haveria razões para temer que a luz, com o passar dos dias, desaparecesse para sempre. O que nos esperava seria um mundo de trevas eternas. Durante muito tempo, até a ciência se introduzir no assunto, existia um temor real de que isso pudesse acontecer, pois não faltavam, na história da humanidade, as festividades para assinalar o solstício de Inverno e agradecer, mais uma vez, que a ameaça pendente sobre a Terra não se tivesse concretizado. O que é curioso é que a experiência da repetição dos períodos de crescimento e de decréscimo dos dias não era suficiente para tranquilizar o coração dos homens perante o temor de uma noite sem fim. O conhecimento científico poupou-nos o medo, mas, ao mesmo tempo, matou o espírito de gratidão pelo funcionamento do cosmos. A noite está a cair. A luz crepuscular é, a cada instante, mais ténue. A vida quotidiana manifesta-se no barulho dos carros que passam desejosos de chegarem ao destino e das injunções para que a neta mais nova tenha atenção ao exercício de matemática. Eu penso na noite sem nome que há em mim, na esperança de encontrar alguma lua que a ilumine, ou na chave da equação que se esconde sobre o peso do nome que me deram.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Os limites do saber

Deite-se sobre a marquesa, enquanto vou buscar o que é necessário. Assim o fiz, não sem antes descalçar o pé esquerdo. O cirurgião veio e retirou os pontos, disse que estava tudo óptimo, assim como o resultado da anatomia patológica. Daqui a um ano vá ao dermatologista, para ver se há novos sinais, sugeriu. Enquanto respirava fundo, perguntei se já podia molhar o pé. Claro que sim, mas não esfregar muito na zona operada. Tudo isto, somado ao ter sido atendido antes da hora e de estar livre em poucos minutos, fez-me pensar que estava noutro mundo. Para comemorar entrei na cidade, a capital de distrito, onde fui lanchar a uma conhecida pastelaria. Aqui, todavia, há uma imprecisão. Não era a antiga pastelaria, mas uma sucursal mesmo ao lado do tribunal para aproveitar a gula de juízes, delegados do Ministério Público, advogados e, plausivelmente, réus. A antiga, a verdadeira, a incontornável pastelaria era – e é, julgo – no Largo do Seminário, onde não se pode estacionar. Talvez já não existam seminaristas, nem padres no seminário, e a gula teve de procurar outros lugares para se manifestar. Desde que recebi a indicação – ou a ordem – para me deitar sobre a marquesa fiquei preocupado. Por que razão aquela cama onde uma pessoa é submetida às sevícias da observação se chama marquesa? Pus a possibilidade de se estar perante uma catacrese – isto é, uma metáfora morta – na qual, por estar morta, já não se sente a inovação semântica dada pela transferência de um nome de uma realidade para outra. Haveria, em tempos, uma marquesa, mulher de um marquês, sobre a qual as pessoas se deitavam, e isso terá permitido a transferência da aristocrática e benévola marquesa, onde múltiplos ensonados eram acolhidos, para a cama onde se deitam os múltiplos adoentados? Depois de avaliar a situação pareceu-me a razão disparatada, pois nunca, mas mesmo nunca, uma verdadeira marquesa admitiria que dormissem sobre ela. Eliminei uma conjectura espúria, mas não consegui resolver o problema. O que prova que toda a ciência tem os seus limites.

domingo, 1 de outubro de 2023

Zorro e Mascarilha

Começamos Outubro sob um ataque cerrado de calor. Talvez tenha sido a situação de guerra climática que me provocou uma dúvida existencial. Dois nomes dançaram na minha mente devido a uma palavra espanhola num produto qualquer, mascarilla. As palavras Zorro e Mascarilha tinham o mesmo referente, ou será que havia duas séries distintas uma denominada Zorro e outra O Mascarilha. O mal dos tempos que correm, um deles, pois não faltam males aos tempos que correm, é que rapidamente se podem tirar as dúvidas, não deixando estas criar raízes e exercer sobre a mente um trabalho de limpeza das crenças dogmáticas. Não passou muito tempo que não visitasse a rede a que se dá o infeliz nome de internet. Não, o Zorro e O Mascarilha eram séries diferentes que o passar dos anos e o uso da máscara começavam a fundir na minha memória. Não devemos confundir Don Diego de La Vega, o Zorro, com John Reid, quase sempre denominado como Lone Ranger, o Mascarilha. Zorro inscreve-se na tradição dos heróis de capa e espada, enquanto Mascarilha, na dos heróis do Far West, presumo. Esta confusão é quase tão grave como a de pensar que Sherlock Holmes e Hércule Poirot eram as mesmas personagens. Pior, porém, seria confundir Sherlock Holmes com Miss Marple. Daqui a pouco chegará o meu neto. Ainda não tem idade para zorros e mascarilhas, mas por certo vai querer o Pica-Pau, cuja colecção de DVD repousam numa estante. Quando a comprei, disse que era para os netos verem. Recebi um olhar de dúvida mais radical do que a cartesiana. A verdade é que ainda nenhum recusou o Pica-Pau, embora a mais velha me fizesse ver com ela milhares de vezes a Galinha Pintadinha. Tenho de procurar as séries do Zorro e de O Mascarilha, para daqui a uns tempos as ver com o mais novo. Domingo. Está tanto calor que nem vai dar para ter a angústia dos domingos à tarde.

sábado, 30 de setembro de 2023

Um contributo

Quase se podia dizer que o mar estava agitado. As ondas atingiam uma altura de uns trinta centímetros, quando se levantavam para logo morrer na areia com um baque surdo. Uma agitação destas só podia ser na baía de S. Martinho do Porto. Fui lá almoçar para fugir ao calor que por aqui anda desalvorado. A praia, onde não pus os pés, estava cheia de gente, como se estivéssemos em Agosto. Ainda dei um pequeno passeio pela marginal, mas também ali o calor era excessivo. De retorno a casa, passei por um hipermercado. Era preciso comprar qualquer coisa em falta. Tive uma iluminação. Percebi a razão que leva os portugueses a terem como lugar preferido as grandes superfícies. A temperatura. Nem na praia a temperatura é tão agradável. É verdade que a paisagem é monótona, os caminhos levam sempre aos mesmo sítios e a luz, apesar de intensa, parece sofrer de anemia, mas a temperatura tem suficiente poder para explicar a afluência. Leio que a Europa está a viver um Verão sem fim. Imagino que a solução seja abrir hipermercados por tudo o que seja sítio, para que todos os europeus, e não apenas os de Portugal, possam fruir do prazer de um clima fresco, sem necessidade de usar protector solar. A proliferação de hipermercados eis a minha solução para o aquecimento global. Enquanto tudo arde, nós passeamo-nos frescos entre prateleiras de massas e arrozes, de vinhos e cervejas, e arcas congeladoras de onde emana, como uma bênção, um frio contumaz que se propaga pela área, isto é, pela superfície, por norma grande. Bem tento ajudar, mas…

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Incertezas

Andar na rua, por aqui e no dia de hoje, é um suplício. A pele parece gretar. Quase que me sinto a cavalgar pela planície manchega, sofrendo de calores e desejando encontrar algum gigante para o colocar na ordem. Isto prova o poder do calor para me perturbar o contacto já difícil com a realidade. La Mancha é bem pior do que isto aqui, caso não o fosse nunca teria podido criar um herói como D. Quixote. A prova é que aqui não nasceu nenhum Cervantes. No bosque da escola aqui ao lado, há qualquer coisa de inquietante. Onde havia uma mancha verde cintilante, agora aparece um verde manchado de um quase castanho, como se algumas árvores – e são todas de folha persistente – estivessem cansadas deste tempo e começassem a desistir de si mesmas, numa abdicação de identidade que nos inclina a pensar que também elas são dotadas de uma certa subjectividade. Imagino-lhes linguagem e pluralidade de línguas, em conformidade com as espécies. Por exemplo, os carvalhos entendem-se entre si, mas necessitam de tradução para compreenderem os que os cedros sussurram uns aos outros. A distinção entre a língua das laranjeiras e a das tangerineiras não será muito diferente daquela que há entre o português e o castelhano. Já as diferentes espécies de laranjeiras apresentam uma diferenciação como aquela que há entre o português de Portugal e o do Brasil. Tudo isto escapa aos homens, pois estes ainda não aprenderam a escutar o vento nem descobriram a Pedra de Roseta que permitirá compreender as vozes do arvoredo. Ou então falta um Champollion versado na filologia vegetal. Um dos problemas do mundo é que nunca se tem a certeza de qual é a causa decisiva para uma certa imperfeição.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Ninguém

Dentro de um livro de Charles Taylor, As Fontes do Self, encontrei um bilhete de uma ida ao teatro, no ano de 2007, ver Macbeth. Como não tenho o costume de andar a pedir bilhetes de teatro usados para pôr dentro dos livros, concluo, por inferência pela melhor explicação, que terei ido ver a peça. Se tivesse sido interrogado sobre o assunto, teria respondido convictamente que não, que há muito não vou ao teatro. Como se pode observar a realidade conspira contra mim, aproveitando o declínio da memória. Taylor explora, no livro referido, as várias instâncias de construção da identidade moderna. A mim preocupa-me a relação entre identidade e memória. Se perder a minha memória, continuarei a ser eu? Se as coisas que fiz forem sendo continuamente rasuradas, o que poderei dizer se me perguntarem quem és tu? A certa altura, nem sequer o Ninguém do romeiro do Frei Luís de Sousa estará disponível. Platão teria alguma razão em colocar a reminiscência no centro de uma vida digna de ser vivida. Não a anamnese das Ideias ou Formas entrevistas, antes do nascimento, no mundo inteligível, mas daquilo que se foi vivendo no tenebroso mundo sensível. Também aqui, todavia, convém adoptar o virtuoso meio-termo aristotélico. Nem a página em branco de uma memória apagada, nem a memória de elefante que nada esquece. A memória virtuosa, a que nos dá uma identidade e possibilita uma vida digna de ser vivida, é uma trama composta por recordações e esquecimentos. O que causa perplexidade, porém, é que não somos donos daquilo que recordamos e daquilo que esquecemos, como se recordar e esquecer fossem coisas que acontecem em nós, mas não somos os agentes disso que se dá em nós. Isto levar-nos-ia a perguntar quem em nós se recorda e quem em nós se esquece. Quem se esqueceu em mim que na noite de 26 de Maio de 2007 fui assistir ao Macbeth? Esta questão acaba por pôr em causa a importância há pouco atribuída à reminiscência e inclina o pensamento a responder à questão com a resposta do Romeiro: Ninguém.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Podia ter sido pior

A enfermeira foi simpática e atendeu-me a súplica, reduzindo o penso ao mínimo indispensável. Posso voltar a calçar sapatos e andar quase normalmente. Segunda-feira, profetizo, serão tirados os pontos. Não tarda voltarei à tarefa de acumular pontos cardio, como recomenda a Organização Mundial de Saúde. O pior do dia, até ao momento, foi a avaria na caldeira. Veio um técnico e consertou o que havia a consertar, uma peça estava dentro da garantia, outras não. Tudo corria bem, mesmo ao pagar. O problema só surgiu no fim, quando ele decidiu fazer um longo discurso sobre aparelhos a gás, caldeiras, fogões e esquentadores, o facto de as marcas serem iguais, só muda uma coisa ou outra no software, informou. Os produtos são todos fabricados na China em fábricas que demoram três ou quatro dias a visitar. Daí mudou para o caso tenebroso de o gás consumido na União Europeia ser todo igual, dando a referência singular desse gás igualitário, coisa que dantes não acontecia, com indicação da pluralidade diferenciadora das referências dos gases que corriam por essa Europa fora. Teve tempo para verberar a Itália, onde ninguém cumpre as regras que nos outros lados têm de ser cumpridas, para acabar com insidiosas considerações sobre a guerra em curso, o caso de três jovens irrequietos, manipulados na sua opinião, terem pintado um ministro de verde e da impossibilidade de acabar com o gás de um dia para o outro. Eu já estava cansado, a tudo anuía, esperando uma aberta para, sem parecer ofensivo, pôr um fim à conversa, onde havia uma ameaça já manifesta de descambar em considerações geopolíticas. Ao lembrar-me, porém, que posso tomar banho e que entre o telefonema a relatar a avaria e a vinda demorou uma meia hora, acabei por considerar que a lição sobre o estranho mundo do gás foi um preço simbólico do benefício usufruído. Podia ser pior, pois, neste planeta, não há mal que não possa superado por outro ainda pior.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

O lugar da decisão

Começar com uma citação não é o melhor dos começos, embora seja um possível. O desfecho de uma batalha, diz Müller, decide-se na cabeça dos que nela participam. Quem o escreveu foi Alexander Kluge. Perante a afirmação sinto alguma perplexidade, que se pode traduzir por perguntas. Exactamente, em que parte da cabeça se decide o desfecho de um acontecimento? E quando, como em certas batalhas, estão dezenas ou centenas de milhares de cabeças, qual a percentagem da cabeças que contribuem para um desfecho e qual a percentagem para o desfecho contrário? Uma pergunta mais insidiosa seria a seguinte: não será nos intestinos que o desfecho de uma batalha se decide, sendo a cabeça o sítio onde os intestinos manifestam a sua decisão? Por certo, também haverá quem ache que o desfecho de uma batalha se decide no coração dos combatentes, enquanto outros acharão que é nas gónadas, uso este termo por ser mais inclusivo. Não há nada melhor que a proliferação das possibilidades, provavelmente, todas falsas. Ora, o facto de se nadar em conjecturas falsas não impede que a vida decorra. Não causava qualquer obstáculo ao desenrolar das existências a crença de que a Terra era o centro do Cosmos. Era falso, mas a falsidade não interferia na felicidade ou infelicidade das pessoas. Resta uma magna questão: onde se decidirá a batalha que travo neste instante contra o sono?

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Uma aventura

O Verão que tinha saído pela porta voltou pela janela. Está previsto, para esta cidade onde me acolho, temperaturas, em Outubro, na ordem dos 34 e 35 graus. O mestre do clima, S. Pedro, mantém-se inflexível. Admito que os pedidos, em forma de oração, tenham diminuído drasticamente com o passar dos anos. Como não lhe pedem ajuda, ele não a dá e depois é o que se vê. Pessoas esbaforidas, barragens vazias, entidades públicas a ameaçar cortar a água. Apesar da impiedade reinante, o grande gestor do estado do tempo poderia ser compassivo e usar da misericórdia com os pobres pecadores. Hoje, depois de muito porfiar, consegui descobrir o ponto de pick up onde uma transportadora deixou na sexta-feira dois livros que me eram destinados. O site tinha-me anunciado que entrega seria hoje, segunda-feira, 25 de Setembro. Acreditei e na sexta-feira ausentei-me, fui almoçar com a minha neta mais velha, que fazia anos. A transportadora, aproveitando a minha ausência, passou por cá e marcou-me falta. Mandou, talvez como desculpa, uma mensagem com um link que me deveria indicar o lugar de recolha da embalagem. Consultei o mapa, aquele da Google, que me deu indicações, mostrou-me a rua, a casa, a envolvência. Fui lá e o que me tinha sido mostrado era uma ficção. Fiz várias tentativas em vão. Depois, um telefonema para uma agência da distribuidora noutro lugar acabou por resolver o assunto. Começo a ter saudades do tempo em que só os CTT entregavam encomendas, pois sabia onde haveria de as ir buscar. Parece que a concorrência – e ela é enorme – melhora o serviço. Talvez seja assim, só que eu sinto que, enquanto recebedor de encomendas, estou pior. É verdade que, muitas vezes, nos CTT, passava longos minutos à espera até chegar a minha vez. Agora, passo longos minutos à procura do lugar onde me hei-de apresentar. Já era altura dos objectos – livros ou outras coisas – serem enviados desmaterializados e, ao chegar a casa dos clientes, voltarem a materializar-se. Seria um serviço imbatível, mas não conheço nenhuma empresa que esteja interessada na minha brilhante ideia. Devem ter pavor da inovação ou são incapazes de compreender as ideias mais geniais que me ocorrem. O pior, porém, são os 35 graus.

domingo, 24 de setembro de 2023

Tarde de domingo

Existe a magna questão de saber se a Magna Moralia é ou não obra de Aristóteles. Os especialistas, como é hábito, dividem-se. Uns que sim, outros que não. Os que acham que sim defendem que é uma obra de juventude, anterior às duas Éticas (a Eudemo e a Nicómaco). Os que acham que não julgam tratar-se de uma obra espúria proveniente de algum discípulo. Este tipo de disputas possui uma trama romanesca, onde o plot não chega ao desenlace, ficando sempre o fim em aberto. Imaginemos que uma prova irrefutável decidia a contenda. Isso, porém, teria consequências terríveis. Punha fim a toda uma fileira de trabalho académico. Quantos livros ficariam por escrever? Quantos artigos morreriam antes de nascer? Quantos colóquios, por realizar? Depois, haveria o impacto nas diversas indústrias associadas, desde a do papel até à da restauração, passando pelos transportes aéreos. Já se sabe que um bater de asas de uma borboleta em Heidelberg, por exemplo, pode criar uma terrível tempestade em Pequim ou, caso Pequim seja imune às borboletas ocidentais, em Tóquio. O melhor é que se mantenha o suspense e o mistério permaneça mistério, antes que uma catástrofe económica venha do Oriente e se abata no Ocidente. Perguntar-se-á: qual o interesse de toda esta história? A uma pergunta destas só se pode responder com uma outra: qual o interesse de qualquer outra história? Por exemplo, o Telescópio Espacial Hubble captou duas galáxias em rota de colisão. Parece uma história interessante, mas quando a coisa se der, se é que não se deu já, as notícias só chegarão cá passados 465 milhões de anos-luz. Nessa altura, quem vai querer saber do assunto?  São assim as tardes de domingo na província, agora que não há cinemas, nem ninguém vai ver a bola. Talvez vá a tempo de dormir uma sesta.

sábado, 23 de setembro de 2023

Os limites da atenção

Foi um almoço animado. Não pelo almoço, nem pelos convivas, mas por ter sido acompanhado pelo jogo de râguebi da selecção portuguesa. O adversário, embora não fazendo parte da elite mundial, era bastante razoável, tal como o quinze português. Foi um resultado justo num jogo em que ambos poderiam ter ganhado, ambos poderiam ter perdido. Empataram, num jogo emocionante, em que os georgianos foram muito melhores na primeira parte e os portugueses, na segunda. Foi a primeira vez que, num Mundial, Portugal não perdeu o jogo. A minha questão quanto ao râguebi é de saber se o jogo conseguirá resistir, ou não, ao processo de futebolização, onde o jogo é constantemente manchado pela manha, por truques sujos, pela falsificação da verdade, com o apoio incondicional dos adeptos e o incentivo dos responsáveis. Acabado o jogo, o sábado começou a deslizar em direcção à noite. Poder-se-á pensar que isso também estava a acontecer durante o jogo. Se tomarmos a aparência pela realidade, então podemos dizer que é verdade que mesmo durante o jogo o sábado deslizava em direcção à noite. A realidade, contudo, é outra. Se alguma coisa consegue capturar a nossa atenção, o tempo suspende-se, deixa de correr. Então, perguntar-se-á, por que razão não somos eternos? Bastaria que a nossa atenção estivesse sempre intensamente concentrada nalguma coisa e trocaríamos o tempo pela eternidade. É verdade, mas o poder da nossa atenção, por mais desenvolvido que seja, é muito frágil. Essa fragilidade interrompe com frequência os estados de atenta concentração e lança o tempo na sua correria. Por isso, as paixões amorosas são de curta duração, pois o amante tem pouco poder para prolongar a sua atenção no objecto amado, por mais que Transforme-se o amador na coisa amada / Por virtude do muito imaginar.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Meditações de sexta-feira

Estou dividido entre uma meditação sobre a chegada do admirável mundo novo, anunciada hoje por um colunista do Público, pois chegámos ao momento em que as máquinas começam a dizer eu – será que já se reconhecem ao espelho? – e se reproduzem, e retomar a leitura dos cadernos manuscritos herdados de Eduína. Há muito que não pego neles. Na realidade, as vezes que lhes toquei foi para ler uma coisa aqui, outra ali, sem grande preocupação com a linha do tempo. Temo a leitura contínua e o que possa neles descobrir. Ler ao acaso é jogar à roleta russa. Pode acontecer que ao disparar a câmara esteja vazia, que aquilo que me é dado ler não me atinja, nada tenha a ver comigo. Se soubesse alguma coisa de grafologia, ainda submeteria a sua escrita a análise. Esta ideia, porém, mal a formulei, pareceu-me indigna, repugnante. Como se fosse a violação da intimidade de uma alma. As almas, todas elas, têm um lado íntimo e outro exterior, contrariamente aos que afirmam que a alma é pura interioridade. Não é. Aquela grafia não sendo particularmente excêntrica, é bastante pessoal, uma emanação da alma de Eduína, mas também do seu corpo. Fico a olhar para ela sem tentar decifrar o texto. Isso basta-me, por hoje. Volto ao artigo do Público, no qual Martin Heidegger é rotulado como o mais ilustre e influente tecnófobo do século XX, aquele que anunciou que a filosofia será substituída pela cibernética. Há qualquer coisa que não está bem. Heidegger não tinha fobia à técnica, mas ao facto de o homem deixar de pensar. O problema não estará na técnica, por muito que esta subverta a relação entre homem e natureza, mas na demissão dos seres humanos de exercitarem aquilo que os distingue não apenas dos outros animais, mas também dos seres de silício, mesmo daqueles que são capazes de dizer eu.