Os dias continuam soturnos. Ao longe, um baloiço range, tomado pelo desespero, expulsando o silêncio que o crepúsculo deixa cair sobre a terra. Abril, o mais cruel dos meses, dilui-se em água: um dilúvio. Abril, que faz brotar lilases da terra morta. Abril, que mistura memória e desejo. Abril, que agita raízes entorpecidas pela chuva da Primavera. O poeta via Abril por dentro, perscrutava-lhe a natureza, procurava-lhe a essência eterna. Os poetas não descansam, mas a essência das coisas pertence a um mundo que está vedado aos homens. Um poema é uma viagem para essa pátria cujas fronteiras estão fechadas, onde o mais terrível dos exércitos se entrega a uma vigilância infalível. A beleza – essa palavra que perdeu a graça – da poesia está nessa expedição que nunca atingirá o seu destino. Dela faz parte o naufrágio inevitável, que se manifesta no esplendor da linguagem, na cintilação de uma metáfora que, ao aproximar-se da essência procurada, a perde. É esta a sua glória.
segunda-feira, 21 de abril de 2025
domingo, 20 de abril de 2025
Domingo de Páscoa
A casa sossegou. Filhos, netos, famílias. Tudo isto é a memória de um tempo, já distante, onde o calendário religioso tinha impacto na organização da vida. Entre a vida e o calendário religioso cresceu um muro, que aqui e ali abre uma fresta e permite uma contaminação da vida pelo que resta da tradição. O almoço de Domingo de Páscoa não é mais do que um almoço profano, onde é possível juntar todos. Ontem estava a ouvir uma entrevista dada há um ano pelo historiador, antropólogo e demógrafo Emmanuel Todd. A certa altura, ele referia que os ocidentais evacuaram a religião e ficaram sem nada que dê sentido à sua existência. Há muito que percebi que, independentemente da existência ou não de Deus, a religião é uma vantagem competitiva da espécie na sua adaptação ao ambiente. É uma compensação da lucidez que a racionalidade traz ao homem. Um olhar lúcido vê a vida como um intervalo entre dois nadas. As religiões deram-lhe um sentido e um princípio de esperança. E isso permitiu à espécie evitar confrontar-se com o absurdo de uma existência que se resolve no nada. Talvez exista uma correlação entre o crescimento da descrença religiosa e a regressão demográfica, mas não conheço os dados empíricos. Os séculos XVIII e XIX ocidentais encarniçaram-se com a religião por esta ser um embuste, uma falsificação da realidade. Ora, a essa obstinação irreligiosa faltou fazer, com a seriedade de quem quer perceber um fenómeno, a pergunta fundamental: por que razão a humanidade, no seu processo evolutivo, teve necessidade de criar esse mundo a que se dá o nome de religião? Certamente que encontramos essa pergunta formulada, explícita ou implicitamente, em autores importantes, mas ela tem sempre a mesma natureza: é uma pergunta retórica, uma pergunta que não quer compreender, mas apenas suportar uma tese prévia. Estou soturno. Talvez porque a casa ficou vazia e o Domingo de Páscoa, mesmo para mim, não é mais do que um domingo.
sábado, 19 de abril de 2025
Em vias de extinção
Sob um sol quase radioso, as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado agitam-se como se tivessem sido tomadas pela incerteza de como os seus ramos se devem erguer em direcção aos céus. Balançam para a frente e para trás. Ao longe, o hospital oferece as paredes à reverberação da luz, mas a cinza dos fungos impede que a cintilação se expanda. Notas sobre uma cidade que vejo de longe, apesar de viver dentro dela. Sou um narrador extrínseco à narrativa que componho. Há pouco, estive a contemplar as orquídeas floridas. Aproximam-se neste momento da dúzia; outras prometem fazê-lo em breve. São promessas mudas, mas talvez mais seguras do que muitas promessas vocálicas feitas pelos homens. Imagino que o acto de vocalizar uma promessa a faça perder energia para se cumprir. As orquídeas, como são destituídas de voz, não sofrem dessa astenia. Isto prova que ser dotado de linguagem não é uma vantagem tão grande quanto se pensa. A espécie humana gasta muita energia a falar — energia preciosa para fazer acontecer alguma coisa. Talvez seja por isso que, apesar do seu crescimento exponencial, a nossa espécie esteja na verdade em vias de extinção. A loquacidade está para os humanos como o asteróide esteve para os dinossauros. A bavardage — sempre podia ter escrito tagarelice, mas não escrevi, para me dar ares de douto — cobre a Terra com o seu fumo tóxico, e a humanidade definha, a começar pelo quociente de inteligência, que se encontra em regressão. Enquanto isto, as orquídeas ostentam, na simplicidade do silêncio, a sua beleza, e o mundo acabará por escolhê-las em detrimento de certos seres que nunca se calam. Onde me incluo, claro.
sexta-feira, 18 de abril de 2025
Hábito e destino
Para que serve o hábito? Foi a questão que pus a mim mesmo ao tomar consciência de que me tinha esquecido de escrever o post diário – embora este blogue não seja um diário. O hábito, ensina Aristóteles, é uma segunda natureza. Ora, que acontece à minha segunda natureza, se me esqueço do hábito? Será que perco a segunda natureza e fico só com a primeira? O problema dos hábitos é que eles ocultam essa primeira natureza – que já nem sei se alguma vez a tive. O hábito não funcionou na devida hora, mas acabou por funcionar, oiço dizer-me a mim mesmo. Não concedo, porém, assentimento ao que me digo. Um hábito efectivo é pontual; não falha a hora a que está destinado. Havia uma canção popular –ainda deve existir – em que o cantor asseverava que o destino marca a hora. Isso só é verdade se o destino for um hábito, pois é este que deve marcar a hora em que as coisas acontecem. Esta última frase trouxe-me uma súbita revelação sobre a natureza do destino. O que é o destino? Um hábito, uma repetição das coisas, de modo a parecer que elas sucedem porque tinham de suceder, estavam destinadas. A tese que me ocorre é que o destino é o hábito da natureza. Portanto, pode-se acrescentar: o destino é a segunda natureza da própria natureza. Esta é a minha contribuição de hoje – pro bono – para ajudar a humanidade a compreender o mundo em que vivemos. Não apenas é um momento alto na minha gesta gloriosa neste universo que me coube em sorte, como reflecte, para a eternidade, a luz baça – se não apagada – que de mim se desprende para iluminar as trevas exteriores. Um destino.
quinta-feira, 17 de abril de 2025
Relógios e relojoeiros
Um acaso levou-me a uma foto de um antigo relógio de parede. Para os conhecedores — que não é, de todo, o meu caso —,uma peça valiosa, dada a sua raridade. Uma particularidade deixou-me perplexo. No lugar dos tradicionais algarismos, tem um coração onde deveria estar o 6 e, nos restantes, letras que compõem a expressão latina TEMPUS FUGIT, que pode ser traduzida por o tempo voa ou o tempo foge. A perplexidade reside no propósito da inscrição. Um aviso? Uma ironia? O que significará avisar um mortal, cujo tempo é limitado, de que o tempo — aquele que lhe resta — voa, que em breve já não será? Sempre que consultar o relógio, ficará confrontado com a sua finitude. Isso terá um efeito perturbador e será uma porta aberta para a paralisia. Mergulhamos na vida porque suspendemos a crença na nossa mortalidade. Se somos continuamente confrontados com ela, qualquer esforço torna-se insensato para uma mente lúcida. Imaginemos, porém, que o autor da peça pretendia ironizar. A pessoa vê as horas e é recordada de que esse gesto é inútil, pois as horas que acabou de ver já pertencem a um passado que se afasta ao ritmo veloz do voo de um pássaro. Consultar um relógio seria, na óptica desse relojoeiro irónico, um acto absurdo. Entre o terror do sujeito e o absurdo da sua acção, há, naquele mostrador, uma crítica feroz aos tempos modernos. A modernidade ocidental — esse acontecimento emergente no século XVII — tinha por símbolo do seu mecanicismo o relógio. O mundo era um gigantesco relógio criado pelo divino relojoeiro, uma máquina precisa e matematicamente ajustada. Foi um século glorioso para a ciência e para a relojoaria. Essa glória, porém, escondia a evidência de que o tempo voa, que a vida continuamente se desfaz no nada, e que toda a consulta da informação no mostrador é um gesto inútil, pois ela torna-se, de imediato, desfasada da realidade. Talvez Deus, ao expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden, lhes tenha dado, como castigo — para além daqueles que são enumerados no relato bíblico —, um relógio, ou a arte da relojoaria, para que não esquecessem aquele tempo em que o tempo não existia para eles. A suprema ironia do relojoeiro, porém, é o coração — essa declaração de amor, exibida sem pudor por aquele que acaba de ser lembrado de que desaparecer é o seu destino, ou de que querer saber as horas é o mais absurdo dos gestos. Talvez o relojoeiro fosse um ateu convicto. Ou estivesse em guerra com a suprema divindade.
quarta-feira, 16 de abril de 2025
Lapelas e colarinhos
Não sei o que pensar de mim. Isto acontece a muito boa gente, e talvez eu não seja tão bom assim. Passei, durante a hora de almoço, pelo canal Mezzo e deparei-me com um documentário sobre o violinista Itzhak Perlman. Fiquei siderado. Não com o virtuosismo do violinista, mas com as lapelas dos casacos que se usavam quando o programa foi realizado, talvez nos finais da década de setenta do século passado. Quando dei por isso, Perlman estava no estúdio, vestido informalmente, e conversava com os técnicos, suponho. Estes estavam de fato e gravata. Aquela época, pensei de imediato, só podia ser um tempo em que se cultivava a hipérbole, de tal maneira as lapelas eram enormes, uma espécie de asas que assentavam sobre o peito dos homens. A indumentária interessou-me, e reparei, de seguida, nos colarinhos das camisas. Também eles enormes. Sim, eu vivi aqueles dias, mas a memória já os apagou — Deo Gratias. Quereriam os homens, nessa era infausta, apassarar-se? Pertenceriam a uma seita da asa grande ou da super-lapela? Julgar-se-iam descendentes de Ícaro e que acabariam por levantar voo? Há épocas em que as lapelas se estreitam até ao limite do verosímil — se é que o verosímil tem limite — e em que os colarinhos das camisas se tornam tão discretos que mal se vêem. Talvez a moda seja cíclica, mas não sei nada do assunto. Admitamos, porém, que é verdade: a moda cumpre uma espécie de ciclo de eterno retorno, como aquele que existe na natureza. Isto significaria que teríamos épocas de grande expansão de lapelas e de colarinhos, e épocas de enorme retracção. Épocas de um optimismo desmedido e épocas de um pessimismo sem freio. Que nos diz tudo isto da espécie humana? A conclusão é simples: sofre de bipolaridade crónica. Isto é, não regula bem. Por mais que se tente educá-la na prudência e justo meio de Aristóteles, ela nunca deixa de ceder à mania das grandezas ou ao terror da pequenez. Estes são os meus pensamentos, e é por causa deles que não sei o que pensar de mim. Tenho de ir espreitar as lapelas dos casacos que estão cá por casa.
terça-feira, 15 de abril de 2025
Efeméride
Sou dado a efemérides. E hoje é uma. Não faço ideia se a data é memorável ou se nela ocorreu um facto digno de ser lembrado. Devem ter ocorrido vários. Não há dia do calendário que esteja despojado deles. Antes pelo contrário. As minhas efemérides, contudo, pertencem a outra ordem. Memorável é estarmos no meio de um mês. Hoje é o último dia da primeira quinzena de Abril, coisa que merece ser comemorada. Qual a razão? – perguntar-se-á. O simples facto de o mês ter conseguido chegar – ou quase, só lá chega à meia-noite – a meio, não deixa de ser uma grande vitória do calendário. As pessoas julgam que um mês chegar a meio não passa de uma trivialidade. Ora, cometem um erro com funestas consequências. O facto de todos os meses de Abril de que nos lembramos terem chegado a meio, isso não nos garante que este o fará. É uma possibilidade, mas quem nos certifica de que o universo não colapsa nas próximas horas? Quem tem a chave para interpretar a vontade obscura desse ser monstruoso na sua grandeza sem limites? Se estivermos conscientes disto, percebemos uma coisa simples: o mês de Abril chegar a meio não é uma trivialidade, mas um milagre, um acontecimento excepcional, merecedor de ser considerado uma efeméride. Onde está o funesto anunciado acima? O facto de não reconhecermos o milagre pode irar o monstro, e este, na sua monstruosidade, só para punir a nossa insolência, decidir colapsar. O que seria desagradável. Ora, se há trivialidade mais que experimentada, essa é a emergência de coisas desagradáveis.
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Sem stock
O meu problema é ter a cabeça vazia. Acontece-me com frequência – ou será melhor dizer amiúde? – às segundas-feiras. Chego a certa hora e o que, de manhã, tinha dentro dela desaparece. O processo é outro: não se trata de uma súbita evasão. As ideias começam a ir-se cedo, num escoamento gradual que só se completa a esta hora – caso estejamos numa segunda-feira, insisto. Queria qualquer coisa para escrever, procuro no armazém, mas não há stock disponível. Nos outros dias não é assim: a esta hora ainda há uma boa reserva de ideias. Tenho reflectido sobre o caso, mas não encontrei explicação plausível. Pode pensar-se que “ter a cabeça vazia” não passa de uma expressão retórica e que, na realidade, haverá sempre lá qualquer coisa. Não. A expressão é literal. A minha mente – que se supõe estar dentro da cabeça – é uma ausência. Sim, tenho um cérebro, mas é como se não tivesse. Os neurónios entraram em greve: não fazem sinapses. Seria um drama, se fosse irreversível. Não é. Não posso, no entanto, provar esta última afirmação: trata-se de uma previsão e, como se sabe, o futuro escapa à certeza. A greve neuronal pode, no meu caso, ser eterna. Resta-me a esperança de que não o seja – que não seja greve, mas apenas cansaço.
domingo, 13 de abril de 2025
Ingratidão
Deveria escrever textos mais curtos. Vivemos na pós-modernidade, e esta exige textos da dimensão de um tweet — embora essa expressão possa já ter caído em desuso, pois o Twitter tornou-se X. Dito de outro modo: deverei ser ou não ser um pós-moderno? Isto, porém, não me atormenta. O que me mortifica é a ingratidão dos objectos. Sim, as pessoas adoecem só de pensar na ingratidão dos outros — mas eu, não. Um herói pós-moderno (talvez o seja) preocupa-se com outro tipo de questões. O caso é simples: tenho uma balança com a qual mantenho uma relação conflitual. Contudo, perdeu energia e eu, num gesto de benevolência, comprei-lhe uma pilha, salvei-lhe a vida. Agradeceu? Mal a pisei, devolveu-me um quilo a mais do que da última vez. Em vez de gratidão, justicialismo. Que as pessoas sejam ingratas, percebe-se — há nelas uma inclinação para o mal. Que os objectos, onde não existem inclinações, apenas regras mecânicas, o sejam — isso sim, deveria pôr-nos em estado de choque. Disse-lhe: A próxima vez que estiveres morta, deixo-te assim por uns meses. Como resposta, acrescentou trezentos gramas ao peso anterior. Ficou a olhar para mim com aquele ar estúpido de balança, o que me deixou constrangido e levou-me, para minha vergonha, a explicações que soaram como desculpa: o mau tempo impede-me as caminhadas. Ela bocejou — e, naquele bocejo, havia todo o desprezo deste mundo e do próximo. Estas são as verdadeiras tragédias da pós-modernidade. Sobre elas, há que escrever pouco, pois pouco há para dizer. Hoje é domingo — e, depois disso, a única coisa que me ocorreu é que amanhã será segunda-feira, a não ser que também a organização da semana de sete dias tenha aderido à pós-modernidade e pratique a ingratidão de confundir os dias na vida dos mortais.
sábado, 12 de abril de 2025
Dias de sombra
Está um sábado tristonho, indeciso, ora ameaçando tempestade, ora prometendo tempo de praia. Isto tem sobre mim um efeito desagradável, talvez dois. Em primeiro lugar, interfere com o corpo, tornando-o dorido aqui ou ali. É da instabilidade do tempo, penso. Melhor seria tomar um analgésico e deixar de pensar. O segundo efeito é tornar-me mais cinzento do que o habitual. Tinha uma tese – aposto que falsa – sobre a minha perfeita conformação com o tempo do norte da Europa: a má relação com o calor e uma certa configuração física. Ora, este ano tem sido um teste ao meu enraizamento ancestral em terras sombrias. Resultado: estou farto deste tempo. Venha sol, mas sem grandes calores. Quero luz, não ser cozinhado em lume pouco brando. Agora chove sem pudor. Há uma tristeza neste cair da chuva que toca toda a cidade, tornando-a mais pequena e humilde do que aquilo que ela é. Ao longe, troveja. Diante de mim tenho dois livros de Georges Simenon. Não se pense que são Maigrets. Não são. São dois romans durs, segundo a própria qualificação do autor. A Cavalo de Ferro publicou As Janelas Defronte e A Neve Estava Suja, dois entre largas dezenas de romances que Simenon escreveu sem ter o inspector Maigret como protagonista. Além de duros, são sombrios, o que seria de esperar de um escritor belga. São romances que estão em linha com o clima que se faz sentir por aqui. Vou aguardar dias mais luminosos para os ler. Simenon, seja dito, é um grande escritor, um dos maiores em língua francesa, língua em que existem grandes escritores, pois um escritor só existe na língua em que escreve. Aqui, porém, já estou a especular. O homúnculo que vive em mim corrigiu-me de imediato: não estás a especular, estás-te a armar aos cucos. Esta é uma expressão que corria muito por aqui, não sei se ainda corre, e também não sei se é um mero regionalismo ou se todo o país está disponível para atirar à cara de alguém: estás a armar-te aos cucos. É provável que seja um nacionalismo. Seja como for, o homúnculo, meu inimigo, conhece-a bem.
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Dos simples e da sua simplicidade
O mundo exterior invade-me o escritório: o grupo musical da escola secundária vizinha teima em ensaiar música dos anos sessenta e setenta do século passado, enquanto um bando de adolescentes ocupa o tempo, com o vozear que lhe é próprio, antes de entrar para o instituto de línguas. Não sei o que é pior; talvez nenhuma das coisas seja um mal em si mesma — só a sua conjugação se torna um pouco disruptiva. Num dos textos sobre cultura, Antonio Gramsci diz, não sem cândida inocência: a filosofia da práxis não tende a manter os «simples» na sua filosofia primitiva do senso comum, mas, pelo contrário, a conduzi-los a uma concepção superior de vida. Polemizava com aquilo que seria a filosofia católica, a qual, depreende-se, desejaria manter os simples na sua simplicidade. O equívoco de Gramsci reside no pressuposto de que os simples querem abandonar a sua simplicidade e o doce conforto do senso comum. Gramsci morreu em 1937, e a denominada filosofia da práxis ainda não tinha feito a prova do tempo. Talvez hoje Gramsci tivesse menos ilusões. Pensa-se sempre que a simplicidade dos simples — para nos mantermos fiéis ao jargão do pensador e político italiano — se deve a uma estratégia dos opressores, da qual a filosofia católica seria um instrumento. Quando as sociedades se abrem à possibilidade de os simples saírem da sua simplicidade, são eles que gritam contra quem os queira tirar desse lar, onde se sentem, verdadeiramente, chez-soi. Quem ler com atenção a célebre Alegoria da Caverna percebe que já Platão tinha percebido isso. Ora, Nietzsche, na sua relação intempestiva e destrambelhada com o cristianismo, disse que este não passava de um platonismo para o povo — e nisso terá alguma razão. Isto permite afirmar o seguinte: se Platão percebeu que o desejo dos simples é manterem-se na sua simplicidade, então também o cristianismo o compreendeu. Corolário: a filosofia católica percebeu muito melhor o desejo dos simples do que a filosofia da práxis. Os simples não desejam uma concepção superior de vida, mas ouvir umas músicas do seu tempo de juventude ou deixar o som vibrar com vigor nas gargantas, se vivem na simplicidade da adolescência. Tenho de ir com o meu neto ao parque infantil.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Trovoada
Também os deuses envelhecem. Quando novos, a sua ira é terrível. Envelhecidos, resmoneiam entre dentes, numa rezinga a que nem os mortais dão atenção. Refiro-me, claro, a Zeus — ou, em versão latina, a Júpiter — o deus dos deuses. Quando eu era mais novo, tenho ideia de que havia por aqui trovoadas épicas. Relâmpagos, raios e coriscos — tudo acompanhado com o ribombar exaltado dos trovões. Era uma ira magnífica, que só acabava quando as nuvens vertessem, em abundância, uma água também ela irada, que tornava as ruas num rio revoltoso. Oiço agora o rezingar de Zeus, mas uma coisa débil, sem energia, nada de relâmpagos. Apenas uma atmosfera abafada, calor ainda a esta hora, os corpos a pedir uma bela trovoada, uma grande chuvada que limpasse os corações e as mentes — poluídas que andam dos negócios da vida, pois, como se sabe, não há coisa mais poluente do que a vida. Uma possibilidade, porém, é que a antiga ira dos imortais seja mais imaginada do que real. Será que as antigas trovoadas seriam tão épicas quanto me parecem agora? Juraria que sim. Fecho os olhos e ainda as oiço e vejo. Magníficas. Todavia, o mais sensato será não jurar, para não faltar à verdade. Está um crepúsculo arrastado, um céu cinzento, uma noite que não cai. O mundo está fora dos eixos, e não é minha missão colocá-lo no lugar, nem endireitar tortos. Sou um herói sem causa, nem vilões para enfrentar, nem gesta para me elevar à glória. Comento trovoadas com recurso à mitologia, mas não descendo dos deuses. Não sou um Aquiles — mas também não tenho o calcanhar dele. Terei os meus, claro.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Procrastinar
Procrastino. Que palavra esta. Olho para ela e decido tentar perceber de onde vem. Vou consultar um dicionário, para que me informe acerca da sua origem ou, melhor, da etimologia do verbo procrastinar. É dada a informação de que vem do latino procrastināre, com o mesmo significado. Decepção. O próprio dicionário procrastinou o meu esclarecimento. Eis um sinal importante. Talvez a procrastinação não seja um problema meramente humano, mas que toda a realidade procrastine, a começar pelos dicionários. Não posso procrastinar a aquisição do sentido etimológico do verbo que traduz o meu estado em relação a um conjunto de coisas que tenho de fazer. Recorri a uma conversa com um bot. Foi muito mais esclarecedora. O prefixo latino pro indica “para diante”, “em direcção ao futuro”. Por outro lado, cras é um advérbio que significa “amanhã”. A isso adiciona-se o sufixo -ināre, comum nos verbos da primeira conjugação, que forma verbos de acção. Sinto-me, relativamente, esclarecido. A minha inclinação procrastinadora significa a acção de atirar (algo) para amanhã. Contudo, sinto-me apanhado numa armadilha: eu não quero agir, não quero praticar uma certa acção, mas, mesmo assim, pratico a acção de enviar qualquer coisa para o futuro, para amanhã. Uma injustiça. O que eu queria era não agir de qualquer forma. Haverá, no meu desejo, uma forma de pensamento mágico: em vez de enviar para amanhã a acção objecto da minha procrastinação, aquilo que em mim ressoa é o desejo de que isso, pura e simplesmente, não exista. A essência da procrastinação não está em adiar para amanhã, mas no desejo de que qualquer coisa não tivesse vindo à existência. Por hoje, chega de contributos para esclarecer a verdade que se esconde nas palavras que estão disponíveis para uso comum. Procrastino novos esclarecimentos.
terça-feira, 8 de abril de 2025
Ensaio sobre a estupidez
Não tenho a certeza, mas, não poucas vezes, sou assaltado pela crença de que a eliminação da estupidez na espécie humana seria um contributo assinalável para que todos pudéssemos viver uma vida mais decente. A incerteza nasce de gente inteligente – ou mesmo muito inteligente – ser mais capaz de causar problemas graves aos outros do que gente idiota. No entanto, podemos pensar que alguém inteligente, ou muito inteligente, pode ser um rematado estúpido, pois a maldade, em última análise, não deixa de ser uma estupidez, uma enorme estupidez. Contudo, a maldade praticada por estúpidos destituídos de um módico de inteligência é uma cruz difícil de suportar pela espécie humana. Na maldade proveniente de uma mente brilhante, por terrível que seja, há ainda um lado estético, tal como acontece num lance brilhante de um qualquer desporto. Na maldade originada apenas pela limitação da capacidade neuronal, só há desolação. Agora que há empresas que conseguem, através de manipulação genética, trazer à vida espécies que se encontravam extintas há milhares de anos, talvez se possa conceber uma manipulação do genoma humano com a finalidade de eliminar a estupidez — tanto a derivada do baixo uso neuronal, como a resultante de uma elevada qualidade do trabalho dos neurónios. Perguntar-se-á a razão deste discurso. Bem, não é difícil: basta olhar para o estado do mundo. Outra razão: não me ocorreu mais nada.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Conjugações
A minha mente, cujo controlo estou longe de possuir, é assaltada, não poucas vezes, por associações que me deveriam envergonhar. Se não a mim, ao menos a ela. Essas associações ocorrem-me sem que eu faça alguma coisa para essa ocorrência. Sofro-as. Há pouco dei com essa tal mente a que chamo minha – mas será? – a associar o Ludwig Wittgenstein do Tractatus Logico Philosophicus com o James Joyce de Finnegans Wake. Como é possível? Perguntei-me, não sem condescendência e com alguma falta de paciência. Wittegenstein no tempo em que escreveu o Tratactus devia andar a treinar para asceta. Asceta da linguagem. Limpar toda a linguagem dos seus pecados mortais e mesmo dos veniais. Esse seu tormento com as acrobacias da linguagem que diz coisas para as quais não encontramos referentes sensíveis, resume-se numa frase famosa acima de todas as frases famosas do filósofo austríaco: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio. Caso levasse em consideração o imperativo wittgensteiniano, não abriria a boca e os meus dedos não tocariam nas teclas do teclado para escreverem aquilo que escrevem, coisas sem referência empírica no mundo. E o Finnegans Wake? Bem, esse é o contrário. Poderíamos, a partir dele, dar uma nova versão da última frase do Tratactus: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se gritar. Sim, eu sei, o grito é deselegante, basta ver a cara da personagem de O Grito, do Edvard Munch. Dizem que ele está aterrorizado ou coisa que o valha, mas apenas está numa pose deselegante, a gritar qualquer coisa que devia ser calada, mas que ele – e eu estou de acordo com ele – julga ser importante ser gritada ao mundo. O Finnegans Wake do Joyce é O Grito do Munch em forma de literatura, centenas de páginas para contrariar o austríaco. Ou será para estar de acordo com ele? Isto é o que se passa na minha mente, quando foge à minha vigilância, o que é norma. Sonhei – um dia – em ter uma mente domesticada, uma mente à minha medida de animal doméstico, mas a cabra – que me seja desculpada a queda na linguagem baixa – furta-se ao açaime, pensa o que não deve e conjuga o inconjugável e assegura-me, pomposa, que tanto um como o outro estão mais próximo do que eu penso. Isto é a minha mente a atirar-me à cara a ignorância infinita que me pertence.
domingo, 6 de abril de 2025
Da beleza
Hoje ainda não saí de casa. Há pouco, fui espreitar a Sá Carneiro, mas nem reparei no que se passava naquela avenida. Os olhos ficaram retidos no friso das orquídeas. Durante um tempo, apenas cinco estavam floridas. Quatro delas eram brancas. Não sei se este avanço – também é pujança no porte – associado ao branco é alguma antífona em honra da pureza, talvez uma proclamação sobre a eminência daquilo que não está maculado. Esta é uma linguagem esotérica que os dias de hoje não compreendem, mas isso também não será de admirar. Não cabe aos dias terem compreensão – nem os de hoje, nem os de ontem, ou de amanhã. Era isto que me ocorria enquanto observava com atenção o lento florir das outras, das que são manchadas de múltiplas cores, e concluía que o belo tanto reside no que está puro como no que está maculado, e a beleza é a coisa mais terrível que existe ao cimo desta terra. Ela toca em qualquer coisa que nos desconserta. Por isso, temos de fazer uma longa aprendizagem sobre o modo como lidar com ela. Facilmente lidamos com o bem, o verdadeiro e o justo, mesmo que façamos o mal, sejamos contumazes na mentira e agentes da injustiça. Com o belo, porém, ficamos fascinados, e esse fascínio mergulha-nos nas profundezas obscuras que habitam no fundo da consciência, naquele mar revolto a que se costuma dar o nome de inconsciente, que nos empurra tantas vezes para o mal, a mentira e a injustiça. Na beleza não há utilidade. O bem, o verdadeiro e o justo são úteis, mas a beleza não pertence ao jogo da utilidade. Por isso, será abissal, provoca-nos e afasta-nos. Nunca sabemos se o que sorri nela é a vida ou a morte.
sábado, 5 de abril de 2025
Uma chamada matinal
Acordado até às quatro da manhã. Pouco passavam das oito, quando chega uma chamada telefónica. Perdido, pego no telemóvel. Era o meu neto, em chamada-vídeo, à revelia dos pais, a perguntar-me se estava em Lisboa. Nem percebi. Não, não estou, respondi quando compreendi o ele estava a dizer. O avô está no escuro, ouvi. Acendi a luz do candeeiro. Lentamente, fui chegando à realidade. Era só para saber – informou – se o avô quer ir ao torneio de râguebi. Não devo ter pensado coisas agradáveis, mas disse que estava longe. Anuiu, depois mudou de conversa. Acabou a ler-me qualquer coisa de um livro da escola, mas informou-me que o texto tinha letras que ainda não tinha dado. A conversa prolongou-se até o pai o mandar despachar para ir ao torneio. Decidi seguir-lhe as pisadas e levantei-me. Não para ir a qualquer torneio, mas para ir fazer umas compras, antes que o hipermercado se enchesse de clientes ansiosos. Esta é uma história moral. Os netos têm um poder de dissensão sobre o mau humor dos avós poderosíssimo. Ao ver a cara dele no telemóvel, nem me ocorreu protestar, quanto mais ficar irritado. Quando declinamos, eles são a nossa continuidade e isso, descobri-o, é consolador. Descobri outra coisa. Que essa continuação por terceiros é muito mais justa e melhor do que uma continuação indefinida pelo próprio. Pode-se dizer que não tenho outro remédio. É verdade, mas não é apenas uma mera conformação com a natureza das coisas. É conceder que há sabedoria nessa natureza e acabar por amá-la, não porque seja um poder cujos decretos são irremissíveis, mas porque dela se desprende uma luz que ilumina o mundo.
sexta-feira, 4 de abril de 2025
Sobre um rio
Existirá — mas não estou certo — uma incompatibilidade entre a voz poética e a voz filosófica. Eliot, não muito longe do início de As Dry Salvages, escreve: O rio está dentro de nós, o mar está a toda a nossa volta. Bem, não foi isto o que escreveu, quem o escreveu foi o tradutor. Ele escreveu: The river is within us, the sea is all about us. Dito isto, o poeta continua, como se tudo fosse uma evidência que ele, ao escrever, traz à luz para que todos vejam. O filósofo será cego, pois, de imediato, ficará preso na proposição “O rio está dentro de nós.” Meditaria sobre como ele teria entrado em nós ou se, por acaso, teria nascido em alguma parte esconsa do nosso ser. É um filósofo que já tem um apetite de cientista. Medita, mas inclina-se para a observação empírica — o que é um risco tremendo, pois, se insistir nessa inclinação até que se dê a queda, pode descobrir que não há nenhum rio que nos habite, que a proposição de Eliot tem uma natureza metafórica: nenhum rio pode estar dentro de nós. Contudo, se nos observarmos, descobrimos que em nós está qualquer coisa líquida, fluida, qualquer coisa que anseia pela foz, pelo mar onde se dissolve, fundindo águas com águas. O rio pode ser o desejo que nos habita. O desejo está dentro de nós, e o seu objecto está todo à nossa volta. Mas não foi isso que Eliot quis dizer. O que ele quis dizer foi apenas: The river is within us, the sea is all about us. Caso quisesse ter escrito outra coisa, tê-lo-ia feito. Escreveu que o rio está dentro de nós e, depois, esqueceu-se, durante toda a longa estrofe, desse rio, mergulhando no mar. Talvez o rio fosse o próprio poeta que desagua no poema. Isto, porém, são especulações ociosas de quem está a despedir-se da semana útil com as inutilidades que profetizam o fim-de-semana. A luz solar rompeu o cerco das nuvens e os raios crepitam no telhado do pavilhão da escola aqui ao lado. São pequenas explosões invisíveis, em número incontável, mas cujo efeito reverberante atinge os meus olhos e faz saltar em mim uma pequena faísca de júbilo, apesar do troar inquieto do vento nas persianas. Nas varandas do prédio em frente, uma assembleia de anjos discute, mas não consigo perceber o que dizem. O discurso tem um ritmo que anuncia a eternidade, e a voz que o pronuncia é sempre grave. São anjos barítonos e anjos baixos, nenhum deles é tenor. Sabem que eu estou a vê-los, mas não se importam. O assunto que tratam não me diz respeito e, como tal, não consigo perceber as suas palavras; jorram das suas bocas como se fossem rios muito antigos à procura de um mar profundo que as receba. Tudo isto, porém, é falso. Os anjos estão lá e discutem, mas não existe nenhum prédio em frente.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
Uma autobiografia
Estava eu em estado de sonolência, quando ouvi a voz do homúnculo que habita dentro de mim a declamar um imperativo: devias escrever uma autobiografia! Uma autobiografia, eu? Sim, tu – continuou o desprezível homúnculo – e desceu à explicitação: devias escrever a autobiografia de um centauro. Respondi-lhe que não era um centauro. Um riso cavernoso – riso próprio dos homúnculos desprezíveis que habitam no desvão da minha mente – ressoou nos interstícios do meu ser, caso eu tenha um ser e este possua interstícios. A quem o dizes, retrucou ele. Bem sei, falta-te tudo para seres um centauro. Falta a parte de cavalo e a parte de homem. Não passas de uma aparência destituída de essência, um vazio recoberto por uma pele opaca – mas, por isso mesmo, podes escrever a biografia de um centauro. Quem é nada pode imaginar ser qualquer coisa.» Discordei: uma contradição na lógica do homúnculo. Se sou nada – e isso posso aceitar –, então não tenho experiência de nada. Falta-me a matéria para a biografia, mesmo para inventar uma biografia falsa. Ficou furioso, soprou como um gato assanhado, mas não me amedrontei. Até que, cansado de silêncio, atacou: Tu, que escreves tanto – uma presunção dele, pensei – sem assunto, sem matéria para escrita, estás agora com pruridos? Que diferença há entre escreveres a autobiografia de um centauro e este texto? Deixei o silêncio pairar, enquanto ouvia o tamborilar da chuva no vidro da janela. São insuportáveis – ouvi –, os limites da tua imaginação e a pequenez do teu entendimento. Se escreveres a autobiografia de um centauro, podes tornar-te um. As pessoas que escrevem autobiografias – continuou – fazem-no não porque tenham sido aquilo que narram, mas para virem a sê-lo. Anuí, mas perguntei: Por que raio hei-de eu querer ser um centauro? Aí, voltou o riso cavernoso. Se fosses um centauro, ao menos eu podia deslocar-me a galope, em vez de ir ao ritmo desses teus passos trôpegos. Uma razão como qualquer outra, pensei.
quarta-feira, 2 de abril de 2025
Poesia e prosa
Numa brevíssima introdução à sua obra poética, A uma hora incerta, Primo Levi diz que o impulso para se exprimir em versos está presente em todas as civilizações, mesmo naquelas que não têm escrita. Admite que também ele, a uma hora incerta, cedeu a esse impulso. E acrescenta: ao que parece, está inscrito no nosso património genético. E como outros, reconhece que a poesia nasceu antes da prosa. Somos levados a pensar, então, que a nossa natureza é poética e que a prosa nasce de uma reflexão sobre a poesia. Podemos estabelecer uma analogia com as teorias do contrato e a instauração da sociedade política. O estado de natureza selvagem – impulsivo – e o estado civil como resultante de um contrato reflexivo entre os homens. Contudo, esta interpretação das teorias do contrato é ingénua. As teorias do contrato não estabelecem uma linha histórica, onde, num primeiro momento, viveríamos no estado de natureza – o homem lobo do homem – e, perante a falência da vida humana, chegaria um segundo momento, onde os homens estabeleceram o contrato. Estado de natureza e estado civil são duas possibilidades sempre presentes nas comunidades humanas. Por norma, vivemos no estado civil, mas, se o contrato entre nós falha, caímos no estado de natureza. Voltando a Primo Levi. A ideia de a poesia ser anterior à prosa será falsa. Ambas são possibilidades sempre presentes – e presentes desde sempre – no homem, pois nascem de dois impulsos que estão, por certo, inscritos no seu código genético: o de exprimir-se e o de comunicar. Mais, entre eles não há uma oposição, mas uma linha contínua, onde não existe fronteira clara entre a expressão poética e a comunicação prosaica. Como na organização das comunidades humanas, o estado de natureza e o estado civil estão sempre presentes, o mesmo se passa na linguagem: poesia e prosa são possibilidades sempre presentes. Há, porém, uma diferencia essencial. Passar do estado civil ao estado de natureza é uma queda de funestas consequências, mas transitar da comunicação prosaica para a expressão poética é, não uma queda, mas uma elevação, o sinal de um desejo de ascensão.