sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Ser estrangeiro


Quase no início do seu livro sobre Constantinopla, Théophile Gautier assevera que “para se viajar num país é preciso ser-se estrangeiro: é a comparação das diferenças que produz as observações”. Será também isso válido para as cidades? Como poderei observar a cidade – o castelo, a praça 5 de Outubro, a avenida marginal, as águas do Almonda, o velho casario – já que não sou estrangeiro? Talvez Gautier, quando publicou o seu livro, não tivesse ainda idade suficiente para perceber uma outra coisa, para compreender que “o passado é um país estrangeiro: lá, fazem as coisas de modo diferente” (Leslie P. Hartley, Go-Between). E é assim, por ser alguém mais do passado do que do presente, que me sinto estrangeiro na minha própria cidade, caminho por ela e as observações nascem da comparação entre essas duas pátrias que o tempo afasta irremediavelmente uma da outra. A avenida, com os seus castanheiros e o jardim a bordejar o rio, já não é a mesma avenida, nem a Praça que há pouco vi é a mesma praça que frequentei há muitos anos. Vim desse passado, onde as coisas se faziam do modo diferente, e por isso sou cada vez mais um estrangeiro. É só uma questão de tempo para que qualquer um se torne estrangeiro na sua própria terra.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

As lentes Mercedes


Um oftalmologista desavisado decidiu receitar-me óculos com lentes progressivas e assim substituir os três pares de óculos que compunham a minha colecção. Uns para ler, outros para o computador e outros ainda para ver ao longe. Ainda argumentei que, provavelmente, não me iria dar bem com a progressividade – ou o progressismo – das lentes, mas ele insistiu, perorou sobre as manobras que tinha de fazer para gerir tantos óculos, e eu cedi. Vendo-me vencido acrescentou que tinham de ser umas lentes de uma certa marca especial e não dessas que saem mais em conta. Deu uma explicação técnica que me soou como se fosse chinês. Vendo o meu ar incrédulo ou estúpido, disse-me: olhe, é como comparar um Mercedes com um Renault 5. Num Renault 5 também vai a Lisboa, mas não é a mesma coisa. Pois não, assenti, entre divertido e ingénuo, imaginando-me já a conduzir umas lentes topo de gama. E lá comprei os óculos com lentes tipo Mercedes. O resultado nunca deixa de me espantar. Se quero ler, deixo o Mercedes na garagem e vou num velho Renault 5, de lentes riscadas e que só serve para ver ao pé. O pior, porém, não é isso. Há pouco decidi ir de lentes Mercedes à rua e pensei que tinha enlouquecido. O que era uma rua normal, agora parecia-me estar cheia de crateras. Ao avançar, via um grande desnível, calibrava o pé para esse desnível, mas não havia cratera nenhuma e o passo saía em falso. Por duas vezes ia caindo, enquanto tentava andar sem espreitar para o chão. Ao fim de cinco minutos, decidi que o melhor era pôr os óculos de lentes Mercedes de lado e andar mesmo a pé. A viagem é mais segura e Torres Novas deixou de me parecer uma cidade da Síria após um bombardeamento.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

As horas


Hoje, ao atravessar a cidade, senti-me perplexo, como se, de um momento para o outro, me tivesse perdido em ruas que percorri vezes sem conta. Quando, passados instantes, recuperei o sentido de orientação, não deixei de me interrogar sobre a razão desta súbita incongruência. As coisas aqui quase não mudam e quando o fazem é porque se tornam decrépitas. Deixa-se o tempo marchar sorrateiro sobre as casas e estas, lentamente, começam a desfazer-se, sem que ninguém dê por isso. Então, tudo se torna tão irreal que, mesmo o mais sólido dos seres humanos, não resiste e se perde no poço fundo daquilo que conhece, esse abismo onde a memória se esfarela e se entrega a corrupção trazida pelas horas, essas deusas vingativas que não largam os homens e as suas pequenas obras.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Visco


O dia está viscoso, concedi, ao sentir o ar da rua tocar-me a pele. De imediato se formou uma associação. Esse visco que adere aos corpos é uma armadilha para capturar que tipo de aves? Será que ainda se sabe que se utilizava visco para apanhar pequenos pássaros, os quais, de pés colados à mistela, se entregavam não sem resignação ao destino? Não é que eu o tenha feito, pois nunca fui dado à ornitologia ou mesmo a qualquer interesse pelo mundo dos animais, mas havia quem se entretivesse a capturar, com esse ardil de passarinheiro, pequenas aves. O destino destas nunca o soube. Uma coisa sensata a de evitar excesso de informação sobre coisas que não nos dizem respeito. E, perdido nestes pensamento, fui-me encaminhando para uma superfície comercial, uma daquelas que enxameiam a cidade, cruzando-me com gente desconhecida, o que me levou à constatação de que são cada vez menos as pessoas que conheço. Entrei por uma daquelas portas que, guiada por um olho inexorável nascido do cérebro de um bisneto de Bentham, abrem automaticamente. Fui apanhado pelo visco. Afinal, o pássaro a capturar era eu, pensei não sem resignada condescendência para com o meu destino.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

A realidade


Cheguei à janela e pensei: um tempo de tréguas. Até as ruas me pareceram mais belas sob a luz cinzenta da manhã. Os carros, de vidros abertos, passavam lentos, como se os condutores não quisessem perder o fresco que caía. Os peões moviam-se com uma rapidez inesperada, numa cadência que só a sensatez da meteorologia permite. Um belo dia, disse para comigo. E voltei para aquilo que me ocupa. Sentei-me, mas como muitas vezes acontece, os olhos fecharam-se e um mundo tecido de imagens assalta-me antes mesmo que tenha a possibilidade de o enxotar para longe. Vejo carros que já não existem, pessoas que morreram há muito, a velha ponte do Raro ainda sem o infeliz acrescento que a atormenta. E ali, no meio dela, lá vou eu, sem pressa. Sei que pararei na montra de uma loja e ficarei a olhar a capa dos livros que, contra a ordem das coisas, ali estarão. Uma camionete dos Claras passa, largando uma baforada de fumo negra. Tusso e o cheiro desperta-me. A realidade, em cima da secretária, espera impaciente por mim. Não há coisa mais irreal do que a realidade, rosnei.

domingo, 2 de setembro de 2018

Um progresso


Felizes são os domingos que esquecemos que o são. Surgem como uma manhã fresca, absortos e anónimos, para declinarem na preguiça das horas. A segunda-feira será ainda uma espécie de limbo até que, cansado de benevolência, o deus abrirá as portas do inferno. Outrora, as pessoas endomingavam-se. Iam à missa, as que iam, algumas ao futebol ou ao cinema. Era um tempo severo e as possibilidades de distracção, parcas. Quem viveu esses tempos, percorre as ruas da antiga vila e imagina que, naqueles dias, era feliz. Talvez fosse, talvez não. Muitas vezes confundimos a felicidade com a escassez de anos, ou imaginamos que uma bravata juvenil é um feito só possível naqueles tempos heróicos, que não voltarão. A passagem dos anos favorece a tendência para a mitologia, torna até o mais insípido dos homens num mestre contista, mas a realidade, com o peso do calcário, não deixa de aflorar aos nossos olhos e de recordar que uma ilusão, por amável que pareça, não deixa de ser uma ilusão. Seja como for, o facto de os homens se endomingarem menos não deixa de ser um progresso moral da humanidade.

sábado, 1 de setembro de 2018

Dias assim


Passa pouco do meio-dia e lá fora estão 36o. A temperatura há-de trepar até aos 40o, vejo anunciado num dos sites que se tornou, para mim, de leitura obrigatória, o da meteorologia. Setembro, esse mês em que cheguei aturdido ao mundo, apresentou-se sem máscara nem misericórdia. Faço figas, penso coisas impróprias, ergo barricadas dentro de casa, reduzo a luz exterior e só deixo que o mundo entre através do som. É um universo de rumores, o ronronar dos carros ao longe, algum grito extraviado na rua, o latido fraco de um cão exausto. Fecho os olhos e vejo o vapor a evolar-se do alcatrão das ruas. Hoje proíbo-me a visita às janelas e tenho de inventar aquilo que vejo. Conto as horas para que chegue a noite. Dias assim são como uma doença. Há que esperar que passem.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Agosto declina


Agosto chega hoje ao seu último dia. Entrega-se sem acinte nas mãos de Setembro, mas jura lutar até ao fim. Eu levo-o a sério e deixo-me tomar por uma nostalgia do tempo frio. A meteorologia promete 38o, o que denuncia a malévolo intenção que se esconde na beleza do sol matinal. A cidade está em plena azáfama. Lá em baixo, cortam a relva dos canteiros com um barulho irritante. A vida nunca é como a desejamos, pensei. Os olhos descaem para o estranho livro que estou a ler, mas o barulho não desiste. Chego à janela e vejo um homem de maquineta nas mãos, enquanto o sol toca ao de leve o cume das árvores que se erguem como uma floresta portátil na escola em frente. A cidade desliza nos dedos do sol ao som triunfante de um hino da modernidade. Um concerto para corta relvas e banda magnética, imaginei.

domingo, 17 de junho de 2018

A natureza das coisas


A cidade reencontrou-se com a sua natureza. Um calor seco – quase que escrevia ‘um calor sórdido’, mas contive-me – caiu sobre as casas e as ruas, tornando tudo mais lento. Atravessei a antiga vila para uma visita familiar, mas logo me recolhi em casa. Aproveitei a tarde para acabar de ler Por favor, não matem a cotovia, de Harper Lee. Nunca tinha lido. Quando as histórias dos Finch se acabaram, pensei que este era um livro que deveria ter lido há muito, naquele tempo em que as férias eram exercícios intermináveis e os dias de calor inclinavam o espírito para a leitura. Há obras que se devem ler ainda num período de certa inocência. De preferência, em dias de calor, quando estamos encerrados em casa, presos ao rumor silencioso de uma pequena cidade exausta e de ânimo esvaído pela inclemência do sol.

domingo, 10 de junho de 2018

A província


Este tempo taciturno cobre a cidade com um espesso véu de melancolia. Atravessei-a há pouco e pensei que tínhamos sofrido uma regressão no tempo, pois a tristeza que desce dos céus esbate as cores e dá a tudo um ar cansado e arcaico. Eu sei que é uma ilusão, pois se tivesse havido uma regressão tudo seria mais brilhante e animado. Observo os castanheiros da avenida, a sua floração, este ano, é menos exuberante, penso. Nos passeios, um ou outro transeunte vai temeroso e apressado. A província é um exercício incansável de nostalgia e ruínas, a memória sombria de um mundo que acabou há muito.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Precariedade


É tudo tão precário, penso ao saber da morte de alguém que conhecia. Tento prender o tempo com as mãos, mas ele escorre-me entre os dedos. Um súbito raio de sol ilumina o casario, há paredes a cintilar, mas as brechas já fazem o seu caminho, marcham hirtas segundo o calendário da ruína. Se passo no centro antigo da cidade, o desconsolo inunda-me o olhar. Logo a razão me aquieta. Também as cidades estão sob o império do tempo. O coração protesta, mas a tirania que rege a vida é mais inflexível do que aquilo que supomos. Uma nuvem interpôs-se entre o sol e os meus olhos. Onde havia cintilação há agora uma cinza suave, secreta, precária. Oiço vozes e elas são já um passado que não retornará, presas na ruína dos seus próprios sons, destroços de um desejo que o tempo calará.

Um triste dia

Atravessei a cidade envolto no manto de tristeza que se desprende destes dias de Junho. E tudo me pareceu belo, quase perfeito. As pessoas iam e vinham, os carros trotavam vagarosos pela avenida, o castelo erguido contra o tempo. Oiço alguém a lamentar-se da invernia primaveril, mas vejo-lhe no rosto o prazer deste tempo sem calor, de luz turva, de água leve que desce, hesitante como uma virgem, sobre a terra. O rio, esse velho espelho esfarrapado pelo tempo, devolveu-me a música melancólica que me rumorejava no espírito e eu respirei fundo, certo que também a beleza dessa hora se desvaneceria sem deixar uma sombra, um vestígio no vidro da história.

sábado, 2 de junho de 2018

Junho


Junho chegou e nem dei por Maio se ter ido. Foi sem uma palavra, envolto em festividades, simulacros de um paraíso que se perdeu para sempre. Os dias passam por mim, vão rápidos, presunçosos, cheios de eternidade. Sinto a minha lentidão como uma sombra devorada pelo rancor do tempo. Nas ruas, os transeuntes apressam-se, a festa aguarda-os no bulício da tarde. Esperam no calor da multidão mitigar o frio que lhes habita a alma. Se alguém me interpela, eu calo-me. Não por indelicadeza, mas por não ter nada para dizer. Um pássaro canta na minha janela. Abro-a, o pássaro voa e o silêncio cai sobre mim.

sábado, 7 de abril de 2018

Presunção


Não cozinhar pode ser uma virtude, mesmo num tempo em que o saber fazer alcance elevada cotação no mercado em que todos vivemos. Foi o que me ocorreu quando entrei num takeaway e me vi rodeado de gente que me fazia passar pela ilusão de ser novo. E enquanto as empregadas, com zelo e bonomia, iam despachando encomendas e satisfazendo caprichos, eu sentia que os que me rodeavam, caso tiver sorte, são o meu futuro. Quando saí para a ira ventosa da rua, ri-me com a minha presunção. Não, não são o meu futuro. São o meu presente. Fechei a porta do carro, pu-lo a trabalhar e o rádio devolveu-me uma oratória de Händel, O Messias, precisamente. Bem preciso de quem me salve, pensei ao desfazer uma curva em direcção a casa. A chuva caía lúgubre e hesitante. Mais logo, talvez o sol rompa a muralha das nuvens. O melhor mesmo, para não cair em metáforas mortas, seria não pensar, pensei.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Elegia


Estava a ver a chuva e a pensar na cadência de um poema. O segredo da poesia estará em fazer que o poema encarne o ritmo da língua. Então ele descerá sobre o espírito como a chuva sobre a terra, umas vezes leve e brando; outras, exaltado ou melancólico. Hoje, a chuva é uma elegia, cai triste, dolente, dolorosa, e as pessoas olham-na com compaixão e deixam escapar do rosto o desejo que ela parta. A cidade arrasta-se no cansaço de uma Primavera ainda inclinada para o mistério do Inverno. Ah se o ritmo do dia fosse outonal, ainda seria possível crer no paraíso, segredei a mim mesmo, enquanto voltava costas ao mundo.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Fidelidade


Ontem, ao passar pela Lagoa de Óbidos, lembrei-me das dores que atormentaram Agamémnon, ao partir para guerra, tão ansioso do sangue dos troianos e do prazer da vingança. A certa altura, vi umas velas de windsurf empurradas sem furor pela brisa vinda do mar, enquanto alguns guerreiros, com a sabedoria dos juncos, se equilibravam sobre as pranchas. Há muito que não via gente a praticar windsurf, pensei com tristeza ao olhar o descolorido daquelas velas. Depois, deu-se um curto-circuito e perguntei-me o que sucederia se o vento desaparecesse e uma acalmia sem fim caísse sobre a lagoa. Haveria uma Ifigénia para sacrificar por um Agamémnon exaltado? O carro rolava devagar e dócil como as asas de uma borboleta ao sol da manhã. Ao perder o bando de velejadores de vista, logo me esqueci de Ifigénia, de Agamémnon e do cruel destino que foi o deles. A fidelidade é um exercício difícil, dissertei ao recordar-me há pouco de tudo isso. O melhor será pensar noutra coisa.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Salvação


Ao fundo, os olhos param nas dunas de Salir. Depois rodam, rodam e encontram a entrada da baía. O mar, para além do pórtico, está exaltado, mas tudo na praia permanece tranquilo. Por vezes, vou a S. Martinho do Porto, nos dias em que suspeito haver por lá pouca gente, e deixo-me cercar pela lentidão com que as pessoas passeiam pela marginal. Olho as águas paradas, o balançar quase imperceptível dos barcos, e deixo que o sol caia sobre mim. Ali, enquanto caminho, posso quase conceber uma teoria da perfeição ou descobrir que toda a virtude reside na imobilidade. Um pai e uma mãe, com duas crianças e um cão, talvez alemães, passam por mim. O cão ladra, mas a família segue em silêncio, ele sorumbático e ela espinafrada, como diria a minha neta mais nova. E eu silencio-me dentro do silêncio deles. Espero um milagre qualquer, mas ele não chega. Nunca sei qual é o caminho da salvação.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Dias assim


Há dias assim. Ouve-se uma música, Sérgio Godinho e Ivan Lins, uma nostalgia inútil desce sobre nós e lembra um tempo vivido, dias que não voltarão e que não são mais que breves traços mnésicos de coisas encerradas no cofre-forte do passado. A canção acabou e uma espécie de libertação abriu-se no peito. O sol triste ainda não se livrou, para meu contentamento, da semana santa. A vida decorre sem mácula ou perturbação, as pessoas passam apressadas pela avenida, outras ficam em casa temerosas do tempo. Um casal vai devagar de mão dada, enquanto dois pombos tracejam o céu mesmo em frente dos meus olhos. Não sei que nome hei-de dar a dias assim. Cada vez sei menos coisas, felizmente.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Abril


O dia convida a não sair de casa. Resisto à tentação e submeto-me à necessidade de fazer parte do mundo. A cidade ainda não acordou do longo fim-de-semana. Carros passam vagarosos, alguns param. Intermitente, o símbolo de uma farmácia insiste em inundar-nos os olhos de verde, a esperança nascida de uma química misteriosa, um milagre em cada receita. Uma mulher de calças e sapatos altos encarnados sobe com dificuldade os seis degraus que a hão-de levar a um dos bancos. Sigo-a com o olhar. Empurra a porta, depois de passar o cartão, e é devorada pelo templo dos nossos dias. No rumor da rua não soa qualquer requiem, a morte é uma banalidade que dispensa a música. Basta entrar pela porta certa. Sigo pelo passeio. As árvores estão despidas e ameaça chover. Abril é sempre um árduo exercício.

domingo, 1 de abril de 2018

Na rua


Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças, estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro, o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo se enrodilhou na ratoeira do silêncio.