segunda-feira, 20 de julho de 2020

Fábrica de desejos

Hoje acordei com uma inexplicada inclinação para assuntos metafísicos. Fui salvo pelo dever terapêutico de ir caminhar. Seis quilómetros de périplo fizeram-me esquecer a tentação matinal. Não é que não se pense quando se caminha, mas os pensamentos são físicos, sobre coisas a que chamam realidade. Um carro que passa, um buraco num passeio que quase nos faz cair, uma pessoa conhecida que nos cumprimenta, três desconhecidos que correm como se fossem atletas de alta competição, outro que se arrasta pela calçada e que se tivesse um módico de consideração por si evitaria aquela figura. Caminhar é abrir uma janela por onde perpassam as mais inesperadas personagens de milhares de romances que nunca se hão-de escrever. Outras vezes enrolamo-nos em pensamentos que nos chegam do passado ou então em imaginações vindas daquela fábrica de desejos que todos transportamos connosco. Possuir uma fábrica de desejos dentro de nós é um perigo, talvez o maior dos perigos. Quem quiser uma vida descansada fecha a sua fábrica de desejos, despede o pessoal e mergulha na realidade, sem deixar que um desejo sequer lhe bata à porta. Chegado aqui, se me perguntarem a razão por que estou a escrever isto, só tenho uma resposta: não faço a menor ideia. No entanto, isso não tem qualquer gravidade. As pessoas não fazem a mínima ideia das razões que movem a maioria dos seus actos e fazem-nos, achando neles, por vezes, felicidade. Isto foi o que disse o padre Lodo no jantar de sexta-feira, quando a Emilia Bazán lhe perguntou a razão de ter vindo viver para Portugal. Oiço uma voz a chamar-me. Eu sei, eu sei, ainda não fui arranjar o furo da bicicleta. Deveria ter pensado nisso quando caminhava, mas talvez estivesse ocupado com a minha fábrica de desejos.

domingo, 19 de julho de 2020

As dádivas de Zeus

Troquei de versão do Word. A que tinha vai deixar de receber actualizações e comprei uma recente. Esta irrita-me. Muito, diga-se. Mancomunada com os defensores do Acordo Ortográfico de 1990, sublinha-me como erro todas as palavras portuguesas que foram banidas por arbitrária decisão política. Exceptuando os governos de Portugal, penso que mais ninguém liga ao patético Acordo. Este é uma conjuração contra as consoantes mudas, algumas das quais não são assim tão mudas. Se vivemos num mundo em combate contínuo contra discriminações e perseguições, como é que continuamos a pactuar com a perseguição às consoantes mudas? Os domingos são dias propícios à falta de assunto. Entretanto, uma das minhas netas entrou-me pelo escritório dentro, avô, avô, tenho um furo na bicicleta. Um furo? Um furo. Hoje é domingo, respondi. A oficina está fechada? Está. Noutros tempos, haveria de haver uns remendos tip-top e lá se desmontava a roda e, após uma complexa liturgia, o furo estaria remendado. Hoje a especialização leva a estas situações e a minha alma nunca teve qualquer inclinação para a mecânica. Ela encolheu os ombros. Vou andar de hoverboard. É uma boa ideia, ao menos não há risco de se furar uma roda, respondi. Olhou-me com complacência e foi-se embora. Para amanhã já tenho uma tarefa inadiável. Na nova edição de Poesia Grega, com traduções de Frederico Lourenço, há três fragmentos de poemas de Mimnermo. Em todos se encontra uma lamentação pela velhice e num deles há uma inesperada consideração sobre a igualdade dos homens: Não há ninguém a quem Zeus não dê muitas tristezas. Enquanto forem acordos ortográficos ou um furo na roda dianteira da bicicleta, as coisas não estão más, pensei num momento de optimismo. O Word, impiedoso, assinalou-me como erro optimismo. Talvez o optimismo seja um erro trágico, considerei.

sábado, 18 de julho de 2020

A morte de Rafael e a parusia de Jesus

Acabo de ler que Rafael, o pintor renascentista, morreu vítima de uma doença semelhante à provocada pelo coronavírus. Não contentes com isto, os informadores ainda foram desenterrar as coscuvilhices do Vasari. Este não precisou de redes sociais para registar e divulgar que o pintor de Urbino não apenas saía de casa à noite, quando estava um frio de acender lareiras, como o fazia para visitar as amantes. No plural, note-se. O amor à concorrência e a valorização do mercado não são coisas de agora. Ainda por cima omitia estes factos venturosos aos médicos e, quem sabe, aos confessores, o que seria mais grave. Resultado? Morreu aos 37 anos, apesar dos cuidados que lhe foram dispensados. Somos levados a imaginar que se ele não se tivesse dado a tanta consolação nas noites frias, não teria tido uma morte tão desconsolada. Continuando com a imprensa. O leitor talvez já não se recorde o que é a parusia. Os tempos não andam bons para se manter uma sólida cultura religiosa, mesmo que seja aquela em se foi educado. Apesar do termo ser um pouco esdrúxulo (na verdade, é uma palavra grave de origem grega), refere-se a uma antiquíssima crença dos cristãos. A segunda vinda – em glória – de Jesus. Expectativa iminente e sempre adiada. Vejo agora na imprensa que a segunda vinda de Jesus está consumada. Não há jornal ou site de informação que não proclame que Jesus voltou. Há quem espere que seja em glória, mas sobre isso não me pronuncio. Confesso que com o calor de hoje não me ocorreu mais nada. Podia ter contado o meu jantar de ontem em Lisboa com o padre Lodovico Settembrini, o seu antigo aluno Hans Castorp e a mulher deste, a espanhola Emilia Bazán, mas isso ficará para um dia destes. Vou enviar um email ao padre para lhe perguntar o que acha ele da parusia de Jesus.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Do exercício da estultícia

A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes. Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não, respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que, caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Falta de concorrência

Tudo se paga nesta vida. As coisas irritantes que não fiz ontem fi-las hoje. Ao sair de casa, a atmosfera purgava grossas bagas de calor, inundando ruas e avenidas com um ar tão quente que logo se imagina o dia propício a um grande desvario. Pôr o carro a lavar, passar pela oficina e pagar a bateria que ontem vieram colocar quase ao anoitecer, passar pelo seguro para levantar a carta verde. Faltou-me apenas abastecer o depósito. Uma manhã dedicada ao automóvel, ainda assim sem completar todas as tarefas. Tirando a adolescência, que pela sua natureza não conta nestas considerações, a minha relação com carros sempre foi enviesada. São coisas que me cansam, embora me dêem algum jeito. Aquilo que eu gostaria mesmo era de teletransporte, mas ainda não está disponível na gama de mercado a que posso aceder. Uma pessoa fechava os olhos, concentrava-se no destino para onde queria ir e, passados segundos, encontrava-se lá de carne e osso. Era uma grande vantagem. Perdia-se menos tempo, a poluição baixava drasticamente e os milhões de empregos ligados aos transportes seriam alocados – meu Deus, como é possível deixares-me escrever esta palavra? – a coisas mais filantrópicas, cuja natureza agora não me ocorre. De facto, o mundo foi muito mal construído. O arquitecto deveria ter um espírito aberto e democrático e escutar a freguesia. Um amigo economista confidenciou-me que isso se deve à falta de concorrência. Se os clientes pudessem escolher entre vários mundos possíveis, os arquitectos em competição preocupar-se-iam com os interesses dos consumidores. Sendo assim, é o que se vê. Um mundo cheio de vírus e sem teletransporte. Uma pepineira.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Da perfeição

Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância, acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.

terça-feira, 14 de julho de 2020

La Dernière Valse

Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar. Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau,  La Dernière Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas, vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa, envolve-se na performance, sente vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa, como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Viver sitiado

Fecho-me em casa, escondo-me do calor como quem se esconde de um vírus. Cerro as persianas e preparo-me para os dias de cerco que tenho pela frente. Aqui, o sol é um inimigo implacável. Dardeja sem parar raios cheios de rancor, desejoso de incendiar as cidades por ele sitiadas. Há nele uma sanha incompreensível para pobres mortais como eu. É possível que a sua aversão tenha nascido de algum despropósito nosso, de lhe termos negado a divindade ou, terminadas as colheitas, de não lhe rendermos culto. Desconheço o que lhe move o ódio. A serra, com os seus muros de calcário, impede o vento marítimo de vir em socorro dos que são mártires da desmesurada ambição do astro. Não vale a pena acusar-me de tratar o Sol como se fosse um ser dotado de razão, agindo por motivos demasiado humanos. À falta de personagens reais, humanizo aquilo que me vem à mão. O Sol, a Lua, uma pedra, até a mim, que não passo de um pensamento no pensamento de outro que não sou eu. O telemóvel informa-me a hora e o dia. Vejo que num dia 13 de Julho, Charlotte Corday assassinou Marat. Vejo retratos de ambos e o dela parece-me de longe mais benevolente. Sempre achei o quadro de David, La Mort de Marat, um exercício de canonização do mal, mas sobre isso é melhor não me pronunciar e remeter-me ao meu papel de simples narrador tiranizado pelo despotismo do autor, talvez um discípulo de Marat. O calor não me faz bem. A 13 de Julho nasceu Júlio César, reparo agora. Decididamente, é um dia que tem demasiado sangue nas mãos. Talvez seja da temperatura. Nunca sabemos realmente a causa das coisas, admito.

domingo, 12 de julho de 2020

Do uso da máscara

As coisas que se encontram sem serem procuradas. Não falo de objectos perdidos, curiosidades da natureza, uma nota de cinco euros ou artefactos do engenho humano. Caminha-se, caminha-se, e súbitas revelações explodem na consciência. Está a tornar-se uma moda as pessoas usarem a máscara debaixo do queixo e no pescoço. Qual a razão? Não se compreende, mas ao andarilhar mundo fora a mente desprende-se de uma visão excessivamente racional e, subitamente, tem um insight que a faz perceber a verdade. As pessoas protegem-se do vírus da papeira ou tentam evitar, à outrance, um resfriado na garganta e, para isso, não há melhor defesa do que uma máscara. Descobri também, num caminhante inovador, que estes novos dispositivos de protecção contra aerossóis se podem usar no braço para evitar a dor de cotovelo. São muito eficazes, amortecem o impacto e poupam ao mundo a dor daqueles que nunca deixam de se queixar da imoralidade do universo ou da maldade humana. São estas pequenas iluminações que evitam o desespero com este domingo. Promete uns refrescantes 38 graus. Talvez nos queira fazer lembrar que por muito que os nossos antepassado tenham fugido de África, será a ela que todos teremos de retornar. Espero que o autor não me censure este devaneio meditativo. O calor justifica os maiores disparates e antes estes do que outros ofensivos do decoro da sociedade.

sábado, 11 de julho de 2020

Uma ida ao café

Havia alguns clientes na esplanada, mas no interior o café estava vazio. Sentei-me lá dentro rodeado pelo sossego da província, tirei a máscara e arrumei-a longe da vista. A rapariga atendeu-me, e eu desmascarado passei os olhos pela imprensa. Um estranho hábito. Julgo que o bebi na infância. Café, pedia o meu pai, e abria os jornais que comprara. Sempre um de informação geral e outro desportivo. Naqueles tempos havia matutinos e vespertinos. Eu comia um pastel de nata à colher, embora não recorde a razão para evitar a parte folhada. Uma das minhas idiossincrasias relativas a comida, a qual era para mim, até aos dez anos, um poderoso inimigo e motivo de grandes dissídios com a minha mãe. Odiava comer, coisa que me passou. Dispensava até que tivesse sofrido uma transformação tão radical. Quando comecei a ler tinha direito a um livro de aventuras, uma banda desenhada quase sempre centrada no longínquo oeste. Sempre vivi rodeado de jornais, mas há muito que deixei de comprar os desportivos. O assunto deixou de me interessar e aquilo tornou-se uma leitura tóxica. Não é que a imprensa de referência não esteja cheia de toxinas. Está, mas desenvolvi resistências e aquilo não me faz mal. Julgo, todavia, que o país não desenvolveu imunidade de grupo. Um dos cafés a que o meu pai me levava tinha umas cestinhas de figos secos em exposição e, se não estou enganado, penduradas nas paredes. Os figos eram cobertos por um folha de celofane amarelo, mas posso esta a inventar. Esse café desapareceu há décadas, também o meu pai foi para um lugar onde não existe imprensa e onde não se vendem livros de aventuras, e eu como pastéis de natas à mão e nem a parte folhada deixo de lado. O sábado progride vagaroso, o silêncio do café mistura-se com um artigo de opinião. Se gostasse, haveria de ir à praia. Deixei de gostar. Para não incorrer numa falácia, não infira que não irei, embora eu não vá.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

O oblívio dos pontos cardio

Cobre-me o dia uma pouca vontade para que nele inscreva qualquer coisa. Respiro fundo e sou invadido pela sensação de que sempre é assim. Dias cobertos de vontades poucas. A manhã começou com uma caminhada. Depois, entreguei-me com zelo a trivialidades, mas a existência é feita de coisas triviais. Ninguém suportaria uma vida inteira preenchida, momento a momento, de grandes acontecimentos, mesmo que fossem apenas privados. As manhãs parecem-me sempre tecidas com o fio da inocência, que uma alma cândida terá fiado durante a noite. O estado virginal, porém, vai-se maculando com o passar das horas e o tecido do dia, de início tão branco e resplandecendo, encarde-se e perde o fulgor. Quando caminho, levo o telemóvel para que este supervisione o meu andamento e que me informe quantos pontos cardio acumulei. Aqui entre nós, confesso que não faço ideia do que sejam pontos cardio, mas gosto do nome, de uma certa musicalidade que há nele. Hoje nas deambulações matinais não encontrei ninguém conhecido. Por vezes, algum outro caminhante passava por mim, mas era uma sombra que se desvanecia, a caminho doutro santuário que não o meu. A palavra oblívio começou a retinir em mim. É mais bela que cardio e não há melhor remédio para muitos males do mundo que o oblívio. Pudera eu, até me obliviaria de mim.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Um buraco negro

Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série. Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta, calo-me para não a estragar.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Carnaval eterno

Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua tinha descido bastante, apressei-me a abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial, equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador. Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá, olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Perdido na floresta de calor

Almocei, depois de uma manhã entregue ao que o dever me impõe. Agora, antes de continuar a dar atenção ao que me diz o imperativo categórico, dou uma vista de olhos pela imprensa. Isto não vai acabar bem, foi a ideia que se formou na minha mente. Não interessa o que é o isto. Seja o que for tem grandes possibilidades de acabar mal. A temperatura está nos 38o e vai continuar a subir. Lembrei-me da história do pastor e do lobo. Andamos desde finais do XIX a gritar lobo, lobo, sem que se avistasse, talvez por cegueira ou por não se gostar de abrir os olhos, lobo algum. O lobo guardou a sua visita para estes dias. Está no meio do rabanho e ninguém acredita. Com este calor não me ocorre nada mais edificante para partilhar ou, então, estou naquela fase da existência em que as minhas referências existenciais são Esopo e os irmãos Grimm. Há quem tenha opinião diferente. Um livro que tenho à minha frente, ao abri-lo, enviou-me a seguinte mensagem: Acolhe-te o paraíso dos loucos. Não devemos desdenhar os sinais. Se toda a gente desse atenção aos sinais, talvez o lobo não andasse por aí e o rebanho pudesse dormir mais descansado. As duas vezes que usei a palavra rebanho escrevi rebalho. Isto preocupa-me. O que me levará a trocar o n pelo l? Desconfio que há qualquer coisa a correr mal no convívio entre os meus neurónios. Talvez o lobo já por lá ande e eu não tenha dado por isso. Tomo consciência do que me espera nas próximas horas e enrolo-me no lençol da paciência e no cobertor da piedade. É nestas alturas que perco a vergonha de ter pena até de mim mesmo. Uma voz soletra age de tal maneira que possas querer que a máxima da tua acção se torne em lei universal. Será a autopiedade uma lei universal? Bocejo. Vou trabalhar.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Arrasto-me

Neste momento estão 38 graus, mas há a promessa de se chegar aos 40. Não faço ideia como alguém consegue fazer alguma coisa que tenha sentido, por pouco que seja. Se observo a minha mente, o que vejo é uma névoa turva onde os parcos neurónios que não desertaram bóiam, mantendo uma distância de segurança suficiente para cumprir as regras do combate à pandemia, sem tentações de fazerem sinapses, conexões, de se entregarem a amplexos dos quais haveria de nascer um sentido. O que me vale é não ser dado a fúrias mediterrânicas e as minhas relações com a tragédia grega serem apenas as de um leitor distante. O calor não fomenta em mim a inclinação para o crime, como acontece com outros, mas o mérito que tenho nisso é nulo. Aconteceu ser assim. Fico tolhido, olho o mundo com condescendência e arrasto-me na existência como o mais impotentes dos seres que a vida se lembrou de retirar do nada para que soubesse o que era uma tarde quente e seca. Toda esta conversa serve para dizer que não tenho nada para contar, ao contrário de alguém que conversa no café da praceta aqui ao lado. Não se cala e o som indistinto das palavras chega até a mim. Uma outra voz, a espaços, corta-lhe interrompe e fala. Talvez seja a isto que se chama conversar, mas não tenho a certeza. É em dias como o de hoje que me lembro das sábias palavras, já aqui citadas, de Afonso X Se eu houvesse podido aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Queixo-me do mesmo, de Deus ter criado as coisas sem me pedir opinião, ainda por cima com evidente propensão para o igualitarismo mais prosaico, para não dizer rasteiro. Amemos ou odiemos o calor tórrido, Ele envia-o em doses iguais para todos os que aportaram a esta cidade esquecida pelo Céu. Consta que não fez o mesmo com o frio, pois a voz do povo diz que Deus dá o frio conforme o cobertor. Deveria evitar este recurso à cultura popular. Não abona a meu favor. Só deveria ter grandes e nobres palavras, como pretendiam os gregos antigos, que me elevassem e comigo ao leitor. Chega-me um vídeo. O meu neto de braçadeiras amarelas dentro de água. Quase o invejo, mas tenho de acabar o texto aqui.

domingo, 5 de julho de 2020

Expelir opiniões que ninguém pediu

Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal, não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as  sucessivas reedições. Eram de tal maneira verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo, juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos, mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos, e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos, mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.

sábado, 4 de julho de 2020

Faltar à verdade

Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram, também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder. Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo. Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar, fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Caminhadas e caminhantes

Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo. Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes, uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários, rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto, falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa, uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido dos anjos meus vizinhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Desaguisados e protozoários

Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida. Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime. Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos. No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade, que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Bocejo

Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche, pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria, o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.