sexta-feira, 3 de julho de 2020

Caminhadas e caminhantes

Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo. Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes, uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários, rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto, falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa, uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido dos anjos meus vizinhos.

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