Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me
ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi
qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa
nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo.
Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes,
uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se
pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das
aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são
trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das
responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões
que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada
matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais
velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar
contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta
contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz
feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não
olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a
família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como
se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família
fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem
da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não
tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha
a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava
certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados
triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser
veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários,
rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do
caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a
relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia
não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com
nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não
lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de
assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como
lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto,
falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem
que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa,
uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como
se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido
dos anjos meus vizinhos.
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