Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só
existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres
humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até
sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As
pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no
para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal,
não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por
afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois
ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este
domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode
fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro
da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução
primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as sucessivas reedições. Eram de tal maneira
verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que
todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados
de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo,
juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem
de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não
havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos,
mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos,
e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à
santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para
destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões
que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras
raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um
domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se
dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da
pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade
de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos,
mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.
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