domingo, 24 de novembro de 2019

Neblinas e inacabamentos

O domingo nasceu coberto de neblina. O hospital é apenas um esboço suave perdido numa planície de cinza e o arvoredo da escola ao fundo parece uma cortina de pano escuro suspensa de um tecto indeciso. Os pombos rasgam o céu de penumbra, abrindo pequenas fendas por onde brota mais e mais neblina. Um corvo perdido na paisagem urbana funde-se na névoa e tudo é quietude e silêncio. O café da praceta aqui ao lado está fechado e as crianças que costumam ocupar o parque infantil desertaram, levadas pelos pais para lugares menos húmidos. Estou aqui sentado a enrolar palavras como quem enrola tabaco para se entregar ao prazer de o queimar. Também todas as minhas palavras têm como destino arder, dissolver-se em fumo e mostrar que nelas nada há. Daqui a pouco o meu neto será baptizado e talvez isso mude a sua vida. A minha teria sido muito diferente caso não tivesse sido levado à pia baptismal? O hospital acabou de desaparecer. Agora só vejo um prédio erguido num descampado que uma qualquer crise não deixou acabar. Aquele prédio não é mais que a imagem da vida, um exercício inacabado que dura até que a última crise consagra o inacabamento definitivo. Talvez um dia fale aqui de uma carta que Max Weber dirigiu à viúva de um amigo acabado de morrer. Talvez.

4 comentários:

  1. Aí está algo de que me arrependo, não devia ter baptizado a minha filha, hoje, adulta, diz-me que não o devia ter feito e tem razão. Deixei-me levar pelo encanto de uma capelinha perdida no meio da serra, lugar de lendas e enleios. Todos devíamos escolher a religião que queremos já adultos ou simplesmente não escolher nenhuma.
    ~CC~

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    1. Há quem se arrependa de não ter baptizado os filhos. Talvez a questão do baptismo não seja apenas uma questão religiosa, mas também comunitária. Seja como for, os não baptizados podem baptizar-se em adultos e os baptizados podem não ser praticantes ou mesmo pedir para cancelar o baptismo, embora não saiba muito destes trâmites.

      HV

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  2. Ela já foi saber e não é nada simples:)
    Enfim, pode ser que o seu menino não se torne ateu como a minha se tornou...e convicta.
    ~CC~

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    1. Não faço ideia da complexidade do processo. Nem sequer sei se do ponto de vista teológico faz sentido. Recebido o sacramento talvez não se possa desreceber, digamos assim, o que se recebeu.

      Dever-se-ia, pelo menos, permitir uma espécie de divórcio.

      HV

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