Na passada segunda-feira,
encomendei online um livro numa livraria francesa. Os portes foram
idênticos aos cobrados pelas portuguesas e, o melhor da história, o livro estava
na caixa de correio quando hoje saí de casa. Entre a encomenda e a recepção
mediaram menos de 72 horas, e não foi um envio expresso. Isto significa que a
distância entre Paris e esta pequena cidade perdida no Ocidente da Península
encolheu drasticamente. O livro, cujo título e autor omito, começa de um modo
assaz pomposo: Le destin de la civilisation d’Occident, le destin de l’homme
tout court, sont aujourd’hui menacés. Este hoje referia-se ao ano de 1927.
Passado quase um século alguém poderia escrever a mesma coisa. Imagino, porém,
que a natureza do Ocidente e a do homem seja a de verem constantemente o seu
destino ameaçado. Talvez chegue o dia que a profecia se realize ou, melhor, se
auto-realize. Oiço farrapos da lição online de Matemática a que a minha neta
mais velha, pobre dela, está a ser submetida. Fui-lhe dizer adeus. Mostrou-me o
novo cartão de cidadão. Um metro e setenta e cinco centímetros. Não está mal
para os 14 anos. Tomado pela preguiça, dei uma vista de olhos pelos jornais. A
preguiça transformou-se em tédio. Tal é a repetição da venalidade humana, que
esta não gera mais do que um encolher de ombros. A palavra venalidade deriva de
venal, que em latim (venāle) significa, como em português, o que se
vende ou pode vender. Kant acreditava que os homens, devido à dignidade
resultante de serem fins em si mesmos e não meros instrumentos, não tinham
preço. Este dizia respeito às coisas. Talvez o filósofo que nunca saiu de
Konigsberg estivesse equivocado ou, então, fosse generoso com a espécie a que
pertencia. O dia correu sem sobressaltos, a não ser a avaria do termostato que
regula o aquecimento. Amanhã, prometeram-me, será arranjado. O amanhã é o mais
competente consertador ao cimo da terra, mesmo que, na maior parte dos casos,
não passe de um remendão.
Eu que sou, graças a Deus, pessimista, leria essa ideia de Kant assim: se os homens não têm preço, porque não são meros instrumentos, então aqueles que têm preço são meros instrumentos (o que é um eufemismo para coisas).
ResponderEliminarLembro-me de Kundera, num dos seus livros, dizer que os homens, de tanto considerarem a mulher como um *martelo*
ela acabou por lhes dar uma martelada [esta é a versão optimista].
Os que têm um preço degradam-se como coisas e não respeitam a sua própria dignidade de seres racionais que têm a capacidade de dar fins à sua própria existência. Infringem o dever que têm para consigo mesmos. Por outro lado, tratar a mulher como um martelo também é uma infracção ao dever que ordena categoricamente respeitar a dignidade da pessoa, tratá-la como um fim e não apenas como um instrumento.
ResponderEliminarNão sei o que é tratar a mulher como um fim, em filosofia, mas ao saber da altura da sua neta (quando a mulher portuguesa se queria pequenina como a sardinha), apetece-me pensar na mulher como o que sempre foi: um princípio sempre inesperado.
ResponderEliminarUma mulher (ou um homem, ou qualquer outro ser racional, caso exista) é um fim e não um mero meio para outra coisa. Os objectos ou mesmo os animais (hoje esta visão kantiana será disputada) não são fins em si mesmos. Os seres racionais são-no, pois têm o poder de determinar pela razão os seus próprios fins. Em Kant pode-se dizer que o princípio e o fim coincidem. Os fins que dou a mim mesmo devem ser os princípios que orientam a minha acção. Cada ser racional submete-se à lei moral que dá a si mesmo. Esta lei moral, porém, deve ter um valor universal e cada um pode querer dá-la a si mesmo. O que significa então tratar a mulher (ou outro ser racional) como um fim? Não utilizá-la como um meio. Por exemplo: Cumprir o que se lhe promete. O não cumprimento de uma promessa seria tratá-la como uma mera coisa, um instrumento para alcançar os meus fins particulares.
ResponderEliminarÉ claro, esqueci-me do meio. O meio, em medicina, é a parte mais aborrecida, é a fisiopatologia. Por vezes ultrapassamos o meio, quando queremos rapidamente passar da suspeita ao tratamento. Mas, se nos detivermos no meio, talvez percebamos que é aí que se faz o diagnóstico.
EliminarEssa é uma posição tipicamente aristotélica. Por exemplo, a coragem é o meio (meio-termo) entre a cobardia e a imprudência. Esse meio é o lugar da justa medida. A virtude (entenda-se excelência, como quando se diz que um pianista é virtuoso) reside nesse meio, em exercitar a justa medida.
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