Tenho aqui alguns livros – mais do que devia – que estão organizados por alturas. Nunca me tinha ocorrido esse critério de organização, mas talvez seja tão pertinente como outro qualquer. O caso, porém, deve-se à mais pura necessidade: a estante tem prateleiras com diferentes alturas, o que me obriga a uma ginástica organizacional. A espécie humana tenta encontrar motivações racionais para organizar o seu mundo; no caso dos livros, os temas e os autores são princípios racionais de organização. Será a melhor forma? Haverá bons argumentos a seu favor. Contudo, podemos supor que, num mundo em que os livros fossem arrumados ao acaso – uma radicalização da organização por altura –, se cultivariam virtudes que a actual organização das bibliotecas não permite. Imaginemos uma grande biblioteca onde não há qualquer critério de organização: o leitor parte em demanda do livro desejado. Isto tem várias vantagens. Em primeiro lugar, faz a experiência da incerteza, o que é uma preparação para lidar com a existência, que nunca deixa de ser incerta. Pergunta-se: existirá o livro ou desapareceu, apesar de haver um registo de compra? Depois, empreende uma viagem que não deixa de ser uma aventura. Se vai descobrir ou não a obra que pretende, isso nunca saberá. Contudo, aprenderá a mapear a biblioteca, a construir esquemas racionais para lidar com o caos. A certa altura – a experiência mais fundamental – descobrirá que o importante não é a obra, mas a viagem, a aventura da caça, mesmo que o livro a caçar não exista. Como não tenho espírito de aventura, em casa, a minha biblioteca está racionalmente organizada: temas e autores. Contudo, aqui e ali vou introduzindo pequenas clareiras onde o caos reina, os temas se cruzam e os autores se misturam. Isso serve para me lembrar a minha falta de espírito de aventura – ou então da necessidade de comprar mais estantes.
sábado, 19 de julho de 2025
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Leitura meditada
A vida literária da Áustria, nos primeiros trinta anos do século XX, é uma espécie de milagre: Robert Musil, Hermann Broch, Joseph Roth, Leo Perutz, Karl Kraus, Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmannsthal, Stefan Zweig. Contudo, se se quiser passar da Áustria para um espaço cultural mais alargado, aquele que é designado pelo termo Mitteleuropa (Europa Central), descobrimos que o milagre austríaco se inscreve numa área mais vasta de milagres literários. Desde muito cedo, a minha pátria literária foi essa Mitteleuropa, talvez por culpa de Franz Kafka, cuja leitura me mostrou um mundo literário que não era plausível para um meridional. Tudo isto vem a propósito da leitura de Das Spinnennetz (A Teia de Aranha), o primeiro romance de Joseph Roth. O autor expõe, em 1923, o foco psicológico que dá energia a dois fenómenos que vão ter, na história do século XX, as mais funestas consequências: trata-se do ressentimento, que é um dos elementos centrais tanto do nacionalismo como do anti-semitismo. Impressiona a clareza com que Roth, muito antes da catástrofe se declarar, a torna patente. Talvez a sua condição de judeu e de jornalista o tenha tornado sensível ao espírito do tempo. No entanto, o que é marcante no diagnóstico feito é a clara compreensão do papel do ressentimento na determinação da agência dos indivíduos. Os europeus — mesmo os meridionais, como os portugueses — fizeram uma dura aprendizagem sobre o papel do ressentimento na história. Quando os indivíduos ressentidos se tornam uma massa, as maiores desgraças estão ao virar da esquina. Essa aprendizagem parece já ter sido esquecida e vemos o ressentimento tomar conta de cada vez mais pessoas. É um problema difícil de tratar, pois o ressentido tem a causa da sua patologia em si mesmo, nas escolhas que fez e no talento — ou falta dele — que lhe coube em sorte. Nunca se culpará pelo seu falhanço, mas encontrará um bode expiatório, uma vítima sacrificial. Uma leitura meditada do primeiro romance de Roth ajuda-nos a compreender o mundo actual melhor do que muitas análises sociológicas ou de ciência política.
quinta-feira, 17 de julho de 2025
Arbitrariedade geográfica
Percorri sem pressa o molhe. O céu nublado, as águas cinzentas, os barcos ancorados. Parece uma praia da Normandia, pensei. Como tudo na realidade se desconcertou, é possível que as próprias praias tenham mudado de lugar. Não é improvável, nos tempos que correm, andar, por exemplo, pela Beira Alta e encontrar uma pequena cidade alemã ou belga, com os seus habitantes perplexos por, sem darem por isso, terem mudado de lugar, apesar de não terem mudado de cidade. Nasci num tempo em que ainda havia um reflexo de uma ordem no mundo. Mas um reflexo de uma ordem já não é uma ordem, mas um caos que ainda não tomou consciência de si mesmo. As décadas foram passando e aquilo que estava oculto foi-se revelando. A arbitrariedade tornou-se a imagem de marca do mundo. Talvez por isso a Geografia seja, no concerto dos saberes científicos, uma área em crise. Quem pode mapear uma realidade física ou social, se os espaços perderam a fixidez que outrora os ligava à Terra, sendo agora a sua distribuição o resultado de um baralhar de cartas de um jogador amante do acaso? Digo para mim mesmo: conversa idiota de um velho do Restelo. O meu tempo passou e aquilo que é para ti desordem é a ordem rígida dos que agora começam a olhar com alguma atenção para o sítio onde chegaram quando nasceram. Contudo, não me sinto convencido e arquitecto uma outra teoria. A realidade espacial onde habitamos sempre dependeu do arbítrio. Nunca o jogador de cartas amante do acaso esteve ocioso na sua distribuição dos lugares. Contudo, os olhos e o coração são cegos para a realidade: precisam de muito tempo para começarem a ver e ainda mais para crerem no que vêem. Estou em Portugal, mas a praia por onde caminhei esta manhã era normanda. O que me preocupa agora é saber onde estará a praia que aqui estava. Talvez ela volte um dia destes. É possível, porém, que só retorne daqui a séculos. E amanhã, de onde virá a praia que aqui haverá? Deveria fazer um registo das mudanças, para memória futura.
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Sem sentido
Por aqui o dia começou deslumbrante, mas, conforme as horas foram passando, o que havia de deslumbre foi sendo substituído por uma névoa esbranquiçada, como se fosse um véu de uma noiva abandonada no altar, trapo andrajoso, sujo, cravejado pelos dardos escuros da dor. Talvez a tonalidade do dia servisse para cenário de um romance policial, com um crime urdido nas teias virginais da vingança. A vítima fora encontrada com um estilete cravado no coração, de onde saíra apenas um fio de sangue insignificante. Ninguém sabia quem ele era e que culpas carregava na consciência. Só a noiva abandonada o conhecia. Isto, porém, não faz sentido, pois uma noiva abandonada no altar não tece vinganças, mas, livre de um futuro incerto, dá graças por o destino lhe ter perdoado a precipitação de um sim ou a falta de coragem de um não. O melhor é não imaginar crimes e detectives, deixar o dia correr e esperar que tudo siga o caminho traçado sabe-se lá onde ou por quem, sem noivas ultrajadas nem véus gastos pelo vitríolo da vingança.
terça-feira, 15 de julho de 2025
Hara-Kiri
Em 1979, o filósofo alemão Hans Jonas, em Das Prinzip Verantwortung (O Princípio Responsabilidade), formulou um novo imperativo ético que se pode traduzir assim: age de modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra. Este princípio moral revela uma clara preocupação com o desenvolvimento das sociedades modernas e com o poder que elas têm, devido aos efeitos das tecnologias, de destruir a possibilidade de assegurar as condições para que uma vida humana seja possível no planeta. Esta preocupação foi recebida, por aqueles que não são tocados por ela, de quatro modos: em primeiro lugar, a indiferença perante essa preocupação, uma coisa de lunáticos; num segundo momento, quando a indiferença era já impossível de manter, passou-se à negação da relação causal entre a acção humana e a degradação do planeta; a terceira fase, depois de também a negação ser impossível, foi a da dissimulação: ficcionou-se a preocupação moral, enquanto tudo continuou a piorar; contudo, a própria consciência moral do problema era desagradável e, por isso, entrou-se numa quarta etapa: não apenas negar, mas afirmar e impor comportamentos que degradem efectivamente o planeta. Este desejo de destruição revela uma pulsão de morte, um desejo de aniquilação, um exercício niilista no qual estamos todos implicados. A nula relevância prática do princípio de Jonas deve-se a uma coisa muito simples: não nos sentimos responsáveis pelo futuro. O prazer do presente é muito mais relevante do que o cuidado com um futuro que desconhecemos como será. Provavelmente, só quando o presente se tornar uma dor contínua, a espécie perceberá o perigo em que se encontra e, mesmo nesse momento, não é seguro que o reconheça. É possível que a espécie esteja cansada de viver e tenha escolhido a destruição da casa como modalidade de hara-kiri.
segunda-feira, 14 de julho de 2025
Imaginações
Não sei o que se passa em mim. Por vezes, sou perturbado por estranhas decisões. Comecei ontem a ler Duna, de Frank Herbert. Qual o problema? Não foi esse romance que esteve na origem do filme Dune, de David Lynch? Sim, foi. Contudo, trata-se de ficção científica. Com tanta coisa fundamental para ler, por que razão gastar o tempo com esse tipo de literatura? Não faço ideia. Podia adiantar algumas razões. Por exemplo, gosto da editora portuguesa que publicou todos os romances da série; leio muitos livros publicados por ela. Outra razão será a capa: gosto das capas. E razões mais substantivas, não há? Esta pergunta veio nem sei bem de onde. Claro que posso apresentar razões mais interessantes. Se toda a ficção é um laboratório onde a vida se ensaia através de experiências imaginárias, a ficção científica fá-lo de um modo mais acentuado, pois desenha espaços e tempos que estão para além da experiência possível. Se não é assim, então deveria ser. Bem, não sou versado no tema, mas predispus-me a descobrir o que tem este género de literatura que represente um contributo da imaginação que não exista no romance tradicional. Fui educado numa espécie de literatura muito específica, a que se deu o nome de Filosofia. Os filósofos juram que usam a razão, deixando a imaginação para a arte. Nunca fiquei convencido. Os diálogos de Platão são racionalizações de um foco imaginário, o qual, não poucas vezes, é indisfarçável, e o autor, ao lado de argumentações mais ou menos sistemáticas, não consegue evitar o mito, o recurso explícito à imaginação, à literatura. Mesmo autores mais austeros, como Kant, fazem literatura, mobilizando a força da imaginação para dar vida e energia a conceitos e argumentos, uma literatura muito específica, que deve ser compreendida também a partir da poética e, pasme-se a heresia, da retórica. Volto à ficção científica: aquilo que me interessará, então, é ver como a poética e a retórica, utensílios da imaginação, aí operam. Estas são as minhas razões de hoje, talvez influenciado por ter ido à consulta de oftalmologia, tendo recebido a notícia de que os olhos de hoje estão como há dois anos e meio, que vá lá daqui a um ano, talvez haja novidades, porque, agora, ainda vejo bem. Eu achei que a médica também tinha uma certa propensão para a literatura, talvez para a ficção científica. Disse-me aquelas coisas depois de me espreitar para dentro dos olhos e ter-me posto a ler textos cada vez mais pequenos, que eu ia lendo sem óculos. Aliás, os textos não eram grande coisa. E, se os olhos me arderem, que lhes ponha um lubrificante. Imaginei que este era um recurso retórico desnecessário, que talvez ela não tivesse jeito para a ficção, nem a científica nem a outra. Mas nunca se sabe aquilo que vai na alma de uma pessoa que passa a vida a espreitar para dentro dos olhos dos outros.
domingo, 13 de julho de 2025
Ociosidades dominicais
Um domingo de Verão. Na banalidade de uma constatação esconde-se um mistério, o enigmático segredo que dorme esquecido nessa conjugação entre um dia da semana e uma estação do ano. Alguém dirá: Mistério? Trata-se antes de uma banalidade, pois todos os dias de qualquer semana estão conjugados com uma estação do ano. São convenções e os homens persistem em cultuar como verdades eternas aquilo que convencionaram. Aqui, aquiesço. Sim trata-se de uma banalidade. No entanto, acrescento, onde abunda a banalidade, superabunda o mistério, para fazer um pastiche retórico de uma conhecida frase de Paulo de Tarso. Recorde-se a ideia de banalidade do mal trazida por Hannah Arendt. Na mediocridade da vida quotidiana, por rotina e hábito, sem furor ou exaltação, o mal era metodicamente praticado. Contudo, essa banalidade de funcionário rotineiro na prática do mal não elimina – pelo contrário, acentua – o mistério do mal. Também a banalidade das convenções e das práticas quotidianas em vez de eliminarem o mistério que se esconde atrás delas, o acentua. Por isso, também na conjugação deste domingo com este Verão haverá um mistério. O facto de não sabermos qual, não invalida a sua existência. Esta ideia parece provir da pura ociosidade. E é verdade, só o ócio permite à mente desligar-se dos afazeres quotidianos e das preocupações com a necessidade e fornece o espaço para a especulação. Todos os mistérios têm a raiz naquele que é o mais radical de todos: porque existe o ser e não o nada. As religiões – pelo menos, as monoteístas – deram uma solução – Deus criou o ser a partir do nada – que não soluciona nada, pois a questão da existência de um Deus é tão ou mais misteriosa do que a existência do ser. Os mistérios que a banalidade esconde são emanações desse mistério último e fundamental, que contamina tudo o que existe, inclusiva a minha disposição para escrever este tipo de coisas em vez de estar a olhar o mar, contando os veleiros que passam.
sábado, 12 de julho de 2025
Exageros
No final da década de quarenta do século passado, Pierre Schaeffer traz para o campo musical as sonoridades do quotidiano e a manipulação de sons. A essa música deu-lhe o nome de música concreta em oposição à música erudita tradicional. Os sons concretos do mundo em oposição às abstracções sonoras a que se dava e dá o nome de música. Este é apenas um exemplo, no âmbitos das artes, em que foi possível rasgar os horizontes e pôr em causa a tradição. Podemos crer que o público e mesmo os especialistas terão ficado perplexos, pois o não musical era apresentado como musical, o não artístico era dado como artístico. Este episódio é, assim, mais um de um longo conflito entre o artista e o público. O gosto do público é sentido sempre como desadequado e aquilo que o artista procura está para além daquilo que agrada ao público, mesmo a um público educado. Se recuarmos a Kant, o juízo estético parte de uma experiência singular e eleva-se, através da reflexão, a uma comunidade de gosto, mesmo que apenas ideal. Ora, o que a arte do século XX pretende é quebrar esse laço entre a experiência singular e o gosto comunitário. Cada experiência da obra de arte deve permanecer na sua radical singularidade e, por isso, na sua incomunicabilidade. A arte mostrou-se, desse modo, como uma inimiga visceral do senso comum, ainda que ilustrado. Cada obra de arte é, desse modo, uma granada lançada sobre o público, pois este, com o seu gosto comum, é o inimigo da arte. Pode ser que esteja a exagerar. Este narrador, por vezes, é dado à hipérbole. Um narrador hiperbólico. Mas a hipérbole, como a caricatura, exagera para mostrar o que é decisivo e está escondido.
sexta-feira, 11 de julho de 2025
Paixão pela verdade
Os dias não estão muito saudáveis. Não, não me refiro à volubilidade de S. Pedro, mas ao conjunto de ideias absurdas que parecem ter invadido o mundo e que se aninham com surpreendente facilidade nas mentes humanas. Quanto mais absurdas são essas ideias, maiores são as legiões de adeptos que arrastam. É muito provável que Tertuliano nunca tenha dito ou escrito “creio porque é absurdo”; contudo, a máxima ilustra bem o mecanismo de formação de crenças na espécie a que pertenço. O problema dessas crenças não é existirem, mas o facto de elas moverem os homens, gerando ondas de fanatismo que se impõem — não sem violência — aos outros. Talvez o problema não seja tão antigo como se poderá pensar: Jan Assmann coloca-o em Moisés, naquilo a que chama a distinção mosaica. Moisés, ao propor a existência de um único Deus, o Deus verdadeiro, inaugurou uma nova maneira de pensar. Até aí, cada povo tinha os seus deuses e prestava-lhes culto conforme entendia. É a associação entre divindade única e verdade que abre o caminho não apenas para a imposição de uma crença — verdadeira, justificar-se-á — e a perseguição daqueles que não partilham dessa opinião. A partir do momento que uma crença se proclama como a única verdadeira, ela vai contaminar todas as outras, que passam a querer ser únicas e verdadeiras. Ora, uma das paixões mais funestas é a paixão pela verdade: as pessoas dispõem-se a morrer por ela, mas, acima de tudo, a matar em seu nome. E qualquer coisa absurda pode ser tomada por verdade. É esta proliferação de apaixonados pela verdade que tornam os dias de hoje pouco saudáveis.
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Cuidado com o futuro
Um acaso levou-me à descoberta de uma incongruência, ou de um anacronismo, se se preferir. Numa obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, encontro uma referência a um S. Frutuoso de Braga. Fui pesquisar quem era e, nessa procura, encontro a referência de ter sido antecedido, no arcebispado de Braga, por Potâmio. É neste que está o problema. É dito ser um religioso português, bispo de Braga. Ora, Potâmio — assim como Frutuoso — viveu no século VII, altura em que Portugal não existia, nem ninguém pensava no assunto. Podia acontecer que existissem portugueses antes de existir Portugal, mas não é o caso. Primeiro existiu Portugal e, depois, vieram os portugueses. Potâmio seria um visigodo e, por certo, se lhe dissessem que era português, nem perceberia o que estavam a dizer. As fidelidades que temos são com o presente e com o passado. Se alguma fidelidade temos com o futuro, é o desejo de continuidade daquilo que amamos. Potâmio, caso fosse interrogado sobre o que desejaria para os dias de hoje, catorze séculos depois daquele em que viveu, diria que esperava que o reino visigodo continuasse vivo e próspero. Não quereria, por certo, ser despojado da sua identidade. Isto é um aviso para o futuro. Se, daqui a catorze séculos, existir neste sítio uma outra identidade política, eu — anónimo narrador desprovido de narrativa — quero continuar a ser português e não ser tido por uma outra coisa qualquer cuja natureza desconheço. Preservemo-nos do futuro.
quarta-feira, 9 de julho de 2025
Juízes e julgamentos
O corpo é um cruel juiz. Estava a reler textos escritos há muito e adormeci. Sobre eles, ficou um julgamento que não devo ignorar. Poderia argumentar que a condenação deve recair sobre o julgador, segundo a máxima popular: o bom julgador a si se julga. Isso, porém, seria tergiversar e cair numa fantasia infantil. O melhor será esquecer aqueles textos. Apagá-los. Outrora, os textos rasgavam-se ou queimavam-se, caso os autores fossem espíritos mais fogosos. Hoje, em aparência, tudo é mais higiénico. Não há papel ou cinza para limpar. Coisas que deveriam ser limpas são expressões como : uma brilhante auto-análise de um dos maiores pensadores do século XX. Nem me refiro à adjectivação da auto-análise. Com facilidade se atribuem epítetos e se proclamam grandezas. A pergunta, porém, que o leitor deve fazer é a seguinte: O tempo estará de acordo com essa classificação? Cronos é um juiz mais cruel do que o meu corpo. Aquilo a que uma época atribui a coroa de louros, o tempo, na sua desfaçatez, pode levar para a caverna escura do esquecimento. O mais sensato seria deixar a adjectivação de lado. Contudo, adjectivar é bem mais fácil do que descrever. Quando se diz que é um dos maiores pensadores, não se está a dizer rigorosamente nada. Alguém, vindo de outro planeta, poderia perguntar: Era dos mais altos? Quanto media? A resposta seria decepcionante. Se, porém, se desse uma explicação breve sobre o que pensou, isso seria mais adequado, embora tivesse o defeito de não tratar o leitor como um idiota.
terça-feira, 8 de julho de 2025
Memórias
Por aqui está um excepcional dia de praia, o que, para mim, não é, de todo, uma boa notícia. Como sou dado à hipérbole, estou a exagerar. O dia está bom para fazer praia, mas isso não constitui, para mim, uma tão má notícia quanto quero fazer crer. Aliás, fui-lhe fazer uma visita. As minhas netas disseram logo que era um acontecimento: nunca me tinham visto na praia. Fiquei perplexo. Eu, que ali as levei tantas vezes, que ali brinquei com elas, e disso não ficou um vestígio na memória. Não se lembrava de me ver perto do mar, disse-me a mais nova. Ainda olhei para a mais velha, mas esta corroborou a irmã. Não sei o que fazer com esta informação. Talvez o melhor seja não fazer nada e criar uma sólida narrativa de que nunca fui com elas à praia. Será uma narrativa falsa, mas terá a aparência de verdadeira, e daí vir-lhe-á a solidez. Lembrar-se-ão do avô como aquele que nunca foi à praia com elas. Em contrapartida, não se esquecerão de que as levava, nesta altura do ano, a concertos de piano. Será justo. Não se pode sobrecarregar a memória das novas gerações. E não somos nós que escolhemos as memórias que ficarão de nós, caso fiquem algumas. Os poderes humanos são parcos e de grande fragilidade, ao contrário do desejo, que é infinito. Não tarda, terei de as ir buscar.
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Louvor da trivialidade
A trivialidade é um disfarce daquilo que não é trivial, cuja luz é de tal modo intensa que não a suportaríamos. Cultivar a trivialidade é uma estratégia de sobrevivência, pois nenhum mortal poderia estar continuamente a confrontar-se com aquilo que causa espanto. Os antigos Gregos fizeram dele – do espanto – o início da Filosofia. Implicaria uma atitude radical de corte com o que parece óbvio, mas, mesmo aí, há um mecanismo de defesa. A Filosofia, ao furtar-se ao óbvio quotidiano, acaba por instituir uma obviedade mais complexa, mais elaborada, mas que acaba por ter o efeito de dissolver o espanto. Nem o corpo nem o espírito humanos suportariam estar, a cada instante, a confrontar as coisas óbvias e triviais, pois é nesta modalidade de existência – a obviedade e a trivialidade – que a vida é possível. Hábitos e rotinas fecham-nos os olhos para o excesso que toda a realidade comporta em si mesma. Isso, porém, é o preço a pagar para estarmos vivos. Isto tem uma consequência interessante: a vida implica sempre um grau de alienação, de estranhamento a si mesmo, pois aquilo que somos é sempre excessivo para aquilo que suportamos. Alienarmo-nos é uma estratégia de sobrevivência. Quem suportaria ver-se como realmente é? A educação de um ser humano é um processo de contínua trivialização de si, para que o excesso de luz e de trevas que há em cada um não o arraste para fora da vida.
domingo, 6 de julho de 2025
Vazio
Referindo-se à teoria da História de Tolstói, Isaiah Berlin, no início do capítulo IV de O Ouriço e a Raposa, escreve: As teorias raramente nascem do vazio. Fiquei longos minutos a olhar para a frase. O meu problema não era o seu sentido, mas as possibilidades que abre quando parece fechá-las. A frase de Berlin diz duas coisas: uma, a que está explícita – a maioria das teorias não nasce do vazio – contudo, diz também que algumas teorias, embora raras, nascem do vazio. Como é possível tirar alguma coisa de onde não há nada? A resposta conhecida pertence ao campo da teologia e da religião: só Deus pode tirar alguma coisa do nada. Foi assim que criou o mundo – do nada tirou o ser. Isto, porém, é matéria de fé e não de análise racional. Nenhuma teoria pode ser extraída do vazio, pois ela, mal se formule, usa palavras, e estas estão longe de serem coisas vazias. Se há coisas cheias – grávidas de uma prole incomensurável – essas coisas são as palavras. Veja-se a quantidade de coisas que existe numa palavra como “casa”. Mais do que isso: não seria possível tirar do vazio uma teoria sobre casas, pois a própria palavra é uma teoria cheia de decisões epistemológicas. É essa teoria que permite excluir na referência de “casa” os garfos, os copos, os planetas, as pulgas, por exemplo. Nenhuma teoria pode ser tirada do vazio, a não ser que Deus se tenha tornado filósofo e decida criar uma teoria a partir do nada. Ora, se a discussão sobre a existência de um Deus é um beco sem saída, menos saída haveria para discutir se, caso Deus existisse, ele poderia ser filósofo. Pode-se pensar que, por aqui, se formulam teorias que, não vindo do vazio, são elas próprias vazias. Sim, é um facto que este narrador tenta criar pequenas teorias vazias. É um objectivo existencial. O problema é que falha sempre: elas contêm sempre qualquer coisa, ainda que errada. Acho que dormi mal. Acordei de um sonho estapafúrdio e fiquei com estes pensamentos, ainda por cima açulados por um vento que não me convidou a fazer a caminhada matinal.
sábado, 5 de julho de 2025
Bússola
Umas vezes estou em conflito aberto com o calendário; outras, num processo de desconhecimento radical. O primeiro caso acontece quando penso que se está num dia e, afinal, se está noutro; o segundo ocorre quando não faço a mínima ideia em que dia da semana se está. É este o caso de hoje. Faltam-me as referências. Aqui se condensa a diferença entre o erro e o desconhecimento: no primeiro caso, existe uma crença que se pensa verdadeira, mas que é falsa; no segundo, não há qualquer crença – apenas um vazio. Em que dia estamos?, pergunto-me, mas não consigo responder. Por norma, as pessoas preferem ter crenças falsas a não terem nenhuma: uma crença, mesmo errada, é uma bússola; a pessoa pensa que está a caminhar para Norte, mas dirige-se para Sul. Apesar disso, há uma consolação: caminha-se para algum lado. Eu prefiro não ter qualquer crença a ter uma errada. Quando não se tem uma crença, olha-se para a bússola e não se percebe que objecto é aquele. Em vez de me pôr a caminhar, fico sentado a pensar em coisas abstrusas ou a contemplar a minha ignorância. É neste momento que atinjo a sabedoria: a douta ignorância. Contudo, uma preferência não significa que seja isso que se faça. A maior parte das vezes ando de bússola na mão, sem a saber ler, pensando que vou a caminho do Oriente, enquanto me dirijo para Ocidente – esse lugar onde o Sol se põe, a luz se apaga e tudo acaba.
sexta-feira, 4 de julho de 2025
Mundos possíveis
Confirmei a tese de ontem. Na caminhada matinal, ao chegar ao molhe, este estava pejado de gaivotas. Também as praias eram poiso de bandos enormes dessas aves. Nem na água nem na areia se vislumbrava um único surfista. Se a tese não estava definitivamente confirmada – uma impossibilidade –, estava corroborada: a presença de surfistas implica a ausência de gaivotas. É evidente que o meu argumento é falacioso, mas poupo a demonstração. Terei de me cuidar, antes que pensem que creio na existência de uma relação causal entre a presença de surfistas e a ausência de gaivotas. Neste mundo, não é difícil apontar um contra-exemplo que mostre que a minha crença é falsa. Contudo, haverá um mundo possível em que a relação causal entre ambos os fenómenos será real. Podemos imaginar que, nesse mundo, os surfistas, um dia e por um motivo qualquer, decidiram atacar as gaivotas. A violência do ataque levou a que elas aprendessem a evitá-los, como uma modalidade de adaptação da espécie ao meio. Este mundo é possível porque nele não há qualquer contradição lógica. Um ataque de surfistas não é uma impossibilidade. A aprendizagem das gaivotas e a sua adaptação ao meio também não. O molhe que estava pejado desses animais termina num farol, e o ritual – o meu – é caminhar pelo molhe, contornar o farol e voltar por onde vim. São centenas de metros para um lado e para o outro, rodeado de água, com praias a perder de vista, barcos a passar e outros ancorados. Àquela hora da manhã ainda não havia pessoas nas praias. Só gaivotas. Agora que penso em tudo isto, descobri outra possibilidade. As gaivotas colonizam as praias, mas a certa altura transformam-se em surfistas e, por isso, quando se vêem uns, não se podem ver os outros, apesar de serem os mesmos. Imagino que haverá um mundo possível – talvez aquele em que Ovídio esteve para escrever as Metamorfoses – em que é possível aves transformarem-se em pessoas e vice-versa. Tudo é possível neste vasto universo. E, se não for neste, será num outro.
quinta-feira, 3 de julho de 2025
Autonomia da escrita
Não sei o que me deu, mas contra os meus hábitos – e esses hábitos não são meras rotinas, mas devoções de uma tradição arreigada no fundo do meu ser – decidi ir à praia. Perguntaram-me se estava bem. O melhor possível, respondi, embora não possa jurar que estivesse a dizer a verdade. Estive por lá cerca de duas horas, das quais há que descontar uma meia hora no bar. Caminhei, vi o mar, observei as pessoas. Não contei gaivotas, pois não vi nenhuma. O que reparei foi que o mar estava cheio de surfistas. Perguntei-me se haveria alguma relação entre a presença deles e a ausência de gaivotas, seguindo um princípio que me guia: os efeitos mais inesperados têm as causas mais estranhas. Este princípio, que se aplica a tudo o que acontece, pode ser responsável pelo que me sucedeu no pós-praia. Tinha pensado, como se fosse um dever irrefragável, em fazer um almoço frugal, talvez um esboço de jejum penitencial, como se vivesse no século XIX e estivesse a entrar em período quaresmal. Ora, o ter ido à praia, pisado areia, entrado em contacto – ligeiro, e apenas os pés – com a água do mar e recebido os raios que o sol decidiu dardejar sobre o meu pobre corpo, depois de tudo isso, chegado o almoço, descobri que a experiência me tinha aberto o apetite, que estava com fome e que não estava disponível para frugalidades e muito menos para penitências. Cedi. Agora, que o mal está feito, apesar do bem que me soube, tenho de repensar estes impulsos que me levaram a fazer o que por hábito me recuso a realizar. É assim que as pessoas se perdem. Fazem uma coisa e não esperam as consequências que ela trará. Teria sido mais assisado ter evitado a praia. Estou certo de que a frugalidade seria respeitada, mas faltar-me-ia assunto para escrever. Sempre podia meditar sobre a borbulha que me nasceu na cara, tentar descobrir de que causa excêntrica ela é efeito. O importante da escrita não é o assunto, o tema, mas o acto de escrever, de juntar letras em palavras, palavras em frases e frases em textos. A isto chamo: autonomia da escrita. Uma escrita autónoma é aquela que tem a sua razão de ser em si mesma e não num qualquer conteúdo. Se alguém argumentar com uma analogia dizendo que aquilo que digo seria o mesmo que dizer que o importante numa garrafa de vinho, não seria este, mas a garrafa, eu corroboraria. Do ponto de vista da garrafa, o importante é ela mesma, não o que ela contém. Com a escrita passa-se o mesmo.
quarta-feira, 2 de julho de 2025
Ajustes e desajustes
Fechei a janela e o barulho da rua desvaneceu-se. Aqui, onde me encontro refugiado, as temperaturas são-me favoráveis. Até os olhos que esbraseavam caíram na rotina e deixaram de ser o prenúncio de um fim do mundo pelo fogo. Agora são apenas olhos, um pouco cansados, talvez a precisar de serem revistos – coisa que acontecerá em breve – para ajustar as lentes. Aliás, a partir de certa altura da existência, não são poucas as coisas que precisam de ir sendo ajustadas, mas nem sempre a tarefa é tão fácil de realizar quanto a afinação dos olhos. Se se pensar bem, a vida começa sempre em desajuste: são necessários muitos e muitos anos para se chegar a alguma precisão. Alcançada esta – quando é alcançada –, logo vem a hora em que as coisas começam a desafinar-se. Então inicia-se a saga do recurso aos afinadores. Estes são legião. Tenho passado estes últimos dias na companhia de um livro de um dos mais célebres filósofos do século XX – célebre por boas e por más razões. Reconheço, na obra, elevadíssima engenhosidade na sua fabricação, mas há qualquer coisa que me irrita. Trata-se de uma espécie de batota sub-reptícia. Aparentemente, o autor estaria comprometido com a verdade, mas o que se percebe – ou eu percebo, devido a uma mente enviesada – é uma preocupação com a persuasão de um certo auditório, composto pela elite intelectual, explorando estados de alma pouco razoáveis. Há, para falar segundo as categorias de Aristóteles, um excesso de pathos, o recurso a emoções, ainda que refinadas, de acordo com o auditório. Dito de outra maneira: há um desajuste entre a enunciação do que se pretende e aquilo que efectivamente se pretende. Isto, porém, é uma suspeita – muito provavelmente injusta –, resultado das coisas que se vão desafinando na minha mente. Daqui a pouco vou espreitar o mar. Nele, tudo se ajusta para ser aquilo que é: a tempestade é ajuste, a bonança é ajuste. Se recua, é ajuste; se avança, é ajuste. No mar, não há nada de humano, apesar do desajuste humano o invadir, mas ele persiste em ser o velho mar que sempre foi.
terça-feira, 1 de julho de 2025
Demanda do Graal
Tenho de arrumar as coisas – ia dizer a tralha –, pois vou em demanda do Santo Graal. Contudo, aquela é para mim uma procura prosaica, nada comparável com a do Cálice da Última Ceia ou a da busca empreendida pelos Cavaleiros da Távola Redonda. Se o encontrar – ao Graal –, partilho a informação sobre a sua natureza. Uma pessoa sensata dirá que, para encontrar alguma coisa, é preciso saber o que é. Ponto de vista discutível. Se se sabe o que é, então já, de algum modo, se encontrou o que se procura. A minha demanda, todavia, é mais radical: procuro, mas não sei o que procuro; saberei, porém, que o encontrei quando o encontrar. Será uma revelação e um encontro. Podia dar exemplos pessoais, mas isso seria expor a intimidade, ainda que narrativa, ao público – uma intimidade que, muito plausivelmente, não possuo. Quem tem uma intimidade não deve trazê-la para o espaço público; quem não a tem ainda deve ser mais cauteloso e protegê-la com mais afinco. Porquê? Porque, se se tem uma coisa, essa posse gera inveja e ressentimento; quando não se tem, a inveja e o ressentimento recrudescem ao incidir nesse poder ser sem posse. De certa maneira, sou como Ulrich, personagem central do romance de Musil, O Homem sem Qualidades: ele não tinha atributos definidos, mas tinha em aberto a possibilidade de ter qualquer um. Tal como eu. Também não tenho intimidade, mas a possibilidade de ter qualquer uma está em aberto. Ter uma intimidade é fechar-se a todas as outras. É possível que o Graal, objecto da minha demanda, seja uma intimidade. Se o for, porém, desisto de realizar o objectivo: prefiro a possibilidade à realidade. Como tantas vezes tenho escrito aqui, a realidade é como a história: uma velha rameira infrequentável.
segunda-feira, 30 de junho de 2025
Deflagrações
Está a acabar o sexto mês do ano. Junho fina-se entre calores. Não se pense, porém, que chegamos a meio do ano. Dos 365 dias que 2025 haverá de ter, hoje será centésimo octogésimo primeiro. Só ao meio-dia de 2 de Julho se alcançará essa meta. A partir daí tudo se inclina, cada vez mais, para o fim do ano. É como se depois de ter subido durante 182,5 dias a montanha, se começasse a descê-la. Oiço que esta informação não tem qualquer relevo e que ninguém quer saber dela. Se se escrevesse apenas sobre coisas relevantes, pensei, possivelmente nada teria sido escrito pela humanidade. E, depois, quem sabe aquilo que os outros querem saber. Hoje tinha duas tarefas para realizar. Uma, responder a um questionário, está acabada. A outra, enviar um email a uma editora por causa de uns livros que não chegaram, ainda está por fazer. A temperatura talvez me impeça de realizar mais do que uma tarefa por dia. Podia estar a ler, mas os olhos ardem-me. Por vezes, temo que peguem fogo. Têm-se visto tantas coisas, que não será impossível, de um momento para o outro, os olhos inflamarem-se e deles saírem labaredas. Isso seria impossível com os ouvidos, pois há entre eles um canal secreto por onde corre um vento fresco, que diminui a temperatura, e mesmo que um ouvido se inflame, logo a aragem apagará a deflagração. Na minha secretária repousam vários livros. Três deles, pelo menos, já os li. Por que razão os trouxe das estantes? Um enigma. Um outro jaz ao lado deles, mas esse não o li. Uma peça de teatro de Karl Kraus: Os Últimos Dias da Humanidade. A capa diz: versão integral. Respiro descansado, pois se fosse apenas uma versão parcial ou resumida, talvez se atirasse para as três mil páginas. Kraus optou pela síntese e são apenas umas novecentas . Uma coisa é certa, aqueles não foram os últimos dias da humanidade. A primeira grande guerra foi terrível, mas ainda tivemos oportunidade para mais uma grande guerra, além das múltiplas pequenas e médias guerras, que parecem o resultado de globos oculares que se inflamam com facilidade e ateiam os conflitos num virar de olhos. O pior é o calor.