sábado, 29 de fevereiro de 2020

A verdade numa app

Acordei com a chuva a tamborilar nas janelas, mas como me converti ao pechisbeque tecnológico do mundo pós-moderno em que vivo fui verificar na aplicação do telemóvel se era verdade. Era-o. De facto, a água caía mesmo aqui, na freguesia em que vivo. Fiquei descansado, pois nem a natureza se atreve a desmentir aquilo que a técnica diz estar a ocorrer. Fora eu dado a meditações filosóficas e haveria motivo para longas argumentações sobre o estatuto da verdade nos nossos dias. É verdade aquilo que uma aplicação informática, chamam-lhe app, diz que o é. Vale-me a mim e aos que têm a infelicidade de me ler que não sou dado a tais pensamentos. Se me ocorrem, desvio logo os olhos e fico a ver a paisagem, as nuvens no céu, o sol a brilhar nas superfícies molhadas, a mulher de curvas recortadas que arrasta com vagar um guarda-chuva sobre a passadeira, enquanto os carros param com cerimónia e os condutores olham quem, tão exposto ao desejo dos seus olhos, assim passa sem pressa. Ao escrever isto assaltou-me uma inquietação. Será que ainda se podem dizer estas coisas? Farei eu parte de uma conjuração patriarcal? O melhor é também afastar estes pensamentos, pois o autor destas palavras proibiu-me tudo o que tivesse odor a política. Eu sou apenas um pobre narrador e sei qual é o meu lugar. Olho pela janela e vejo o sol a romper as nuvens e lançar os seus dardos – meu Deus, isto não é uma metáfora moribunda, mas um cadáver ambulante que trouxe para o texto – sobre as árvores incautas que dele não se sabem proteger. Será verdade, o que vejo? Pressuroso precipito-me para o telemóvel e sinto-me reconfortado pela app meteorológica confirmar que não é ilusão aquilo que os meus olhos observam. Fecho-os e neles logo passa a mulher de curvas recortadas que arrasta um guarda-chuva pela passadeira e maldigo-me por ainda não ter descarregado a aplicação que me confirme se ela vai mesmo pela passadeira.

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