Um ruído de canivetes afiados chega-me aos ouvidos. Bandos de crianças de um dos Jardins de Infância desembarcaram no parque, anunciando-me a aproximação do fim-de-semana. Admiro a coragem de quem se presta a passar o dia a receber alfinetadas nos tímpanos. Não sei como não enlouquece e não se torna em personagem de um dos quadros de Munch. Conto os minutos para que o ruído se evapore e possa respirar fundo, olhar com demora para um livro que descobri ontem e entrar no reino do silêncio. Tenho um pequeno ensaio para escrever. É tão pequeno que me esqueci dele e só me lembrei quando o fim do prazo de entrega fez soar o gongo anunciando as poucas horas que restam para que tudo fique consumado. As crianças continuam a gritar, chamam-se por nomes inverosímeis, o que abre no meu coração a porta para o que há de pior, a tentação de elaborar um estrito catálogo de nomes possíveis e torná-lo lei incondicional e com efeitos retroactivos. É em momentos destes que me lembro de uma passagem de Borges, em que este atribui a Casares a recordação de que um dos heresiarcas de Uqbar declarara espelhos e cópula como coisas abomináveis, pois ambos multiplicam o número de homens. Nunca deixei de admirar estes heresiarcas apócrifos e alturas houve, movido pelo cansaço que os espelhos provocam, em que pensei também eu tornar-me um grande heresiarca. O meu problema foi a hesitação. Comecei por um inventário de heresias, mas havia tantas e tão extraordinárias que nunca consegui decidir-me por nenhuma e, desse modo, falhei a vocação. Resta sonhar-me em Uqbar carregando no dorso a heresia que não escolhi ou, caso o dia esteja escuro, em Pasárgada, lá serei amigo do rei. Hoje estou demasiado sul-americano.
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