sábado, 15 de fevereiro de 2020

Deambulações num sabat de província

De manhã, fui buscar as netas a Lisboa. Cheguei cá passava da uma e meia da tarde e fomos almoçar ao bar do outro lado da avenida. Contrariamente ao que acontece à noite, durante as horas de almoço é pouco povoado. Algumas mesas ocupadas. Entre consultas a telemóveis, elas lá escolheram o que queriam. Depois os dispositivos desapareceram à conta de imperativo hipotético cuja finalidade é contribuir para a felicidade geral de quem está à mesa. Perto da janela, um casal almoçava em silêncio. Envolviam ambos a desdita numa indiferença que talvez os poupe à via-sacra do ódio. Ele concentrava-se no que comia, manejava os talhares vagarosamente, sem conflitos com o garfo e a faca. Um dia terá tido, aos olhos dela, a aparência de um príncipe, mas aqueles olhos já não conseguem descortinar o principesco onde antes o viam e perdem-se no vazio, olhando para coisa nenhuma, cismando talvez no cabelo por arranjar ou nas horas que ainda faltam para que o tormento do fim-de-semana termine. Se envelhecerem juntos, quando a carne e o espírito alquebrados lhes tiverem tirado as ilusões que em segredo ainda alimentam, julgarão que afinal o inferno intérmino terá sido um grande amor, ligando o Eros dos primeiros tempos à caridade com que se valerão na impotência dos corpos, esquecendo todas os almoços e jantares ensimesmados em que a obrigação ou a falta de coragem os uniu. Terminada a refeição, as minhas netas começam com aquelas conversas que só as raparigas entendem, usando um código composto por palavras enigmáticas, olhares enviesados e risos sonsos. No bar, o sol dolente desenhava estranhos mundos geométricos, o casal trocava as primeiras palavras, evitando olhar-se, e os empregados iam e vinham, sem grande azáfama, sem inquietações metafísicas, sem considerações condescendentes sobre a clientela. Tenho a impressão que já ninguém usa esta palavra, mas não tenho a certeza. Daqui a pouco chegará o outro neto. Depois penso na injustiça do mundo, em que uns oram por um sabat eterno, enquanto outros rezam para que ele corra a grande velocidade. Não há pior armadilha que a do desejo.

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