De manhã, fui buscar as netas a Lisboa. Cheguei cá passava
da uma e meia da tarde e fomos almoçar ao bar do outro lado da avenida.
Contrariamente ao que acontece à noite, durante as horas de almoço é pouco
povoado. Algumas mesas ocupadas. Entre consultas a telemóveis, elas lá
escolheram o que queriam. Depois os dispositivos desapareceram à conta de
imperativo hipotético cuja finalidade é contribuir para a felicidade geral de
quem está à mesa. Perto da janela, um casal almoçava em silêncio. Envolviam ambos
a desdita numa indiferença que talvez os poupe à via-sacra do ódio. Ele
concentrava-se no que comia, manejava os talhares vagarosamente, sem conflitos
com o garfo e a faca. Um dia terá tido, aos olhos dela, a aparência de um
príncipe, mas aqueles olhos já não conseguem descortinar o principesco onde
antes o viam e perdem-se no vazio, olhando para coisa nenhuma, cismando talvez
no cabelo por arranjar ou nas horas que ainda faltam para que o tormento do
fim-de-semana termine. Se envelhecerem juntos, quando a carne e o espírito alquebrados
lhes tiverem tirado as ilusões que em segredo ainda alimentam, julgarão que
afinal o inferno intérmino terá sido um grande amor, ligando o Eros dos primeiros tempos à caridade com
que se valerão na impotência dos corpos, esquecendo todas os almoços e jantares
ensimesmados em que a obrigação ou a falta de coragem os uniu. Terminada a
refeição, as minhas netas começam com aquelas conversas que só as raparigas
entendem, usando um código composto por palavras enigmáticas, olhares
enviesados e risos sonsos. No bar, o sol dolente desenhava estranhos mundos
geométricos, o casal trocava as primeiras palavras, evitando olhar-se, e os
empregados iam e vinham, sem grande azáfama, sem inquietações metafísicas, sem considerações
condescendentes sobre a clientela. Tenho a impressão que já ninguém usa esta
palavra, mas não tenho a certeza. Daqui a pouco chegará o outro neto. Depois
penso na injustiça do mundo, em que uns oram por um sabat eterno, enquanto outros rezam para que ele corra a grande
velocidade. Não há pior armadilha que a do desejo.
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