Num dos apartamentos contíguos, os habitantes esqueceram-se
de baixar o volume das vozes. Por certo, não sabem onde deixaram o comando e
pertencem a gerações que já não trazem botão para controlar o som. O tema da
dissensão, se é que existe alguma, não o percebo, tão pouco consigo discriminar
qualquer palavra no meio das ondas sonoras. Há apenas uma melodia exasperada,
que me chega como um murmúrio amplificado, com algumas tonalidades rudes,
talvez a memória genética do tempo em que o volume sonoro da voz era tido como
manifestação de poder e exercício de autoridade. Porventura não será nada disto
e eu esteja a pôr-me a adivinhar por manifesta falta de vontade de fazer aquilo
que tenho para fazer. Escrito isto, a minha consciência pôs-se a ruminar
insultos, mas conteve-se e perguntou se eu não sabia que hoje era domingo e aos
domingos não há nada para fazer. Como o leitor pode perceber, tenho uma consciência
velha, daquelas que cresceram no tempo em que não havia grandes superfícies
comerciais e em que o domingo não se confundia com os dias úteis. As ondas
encapeladas do mar sonoro que me atingiu há pouco serenaram. Faltou-lhes
energia para se tornarem um tsunami.
O prédio encerrou-se no seu habitual silêncio e daqui de casa chegam-me, quase
sussurradas, umas frases imperativas sobre trabalhos de casa a fazer, seguidas
de um silêncio comprometido. Uma tragédia, suponho. Os domingos são dias de
imensas tragédias, basta serem a véspera de segunda-feira. Não serão tragédias,
para falar com exactidão e evitar a minha inclinação para a hipérbole, mas
pequenos dramas, onde se exprime uma revolta conformada com o que tem de ser. A
culpa foi de quem congeminou a nossa expulsão do Éden. O grande programador
divino, usando o fruto da sua presciência, poderia ter evitado esse bug no software com que nos dotou, mas preferiu que tivéssemos de
enfrentar um mundo com dias úteis e dias inúteis. Ele lá terá as suas razões.
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