Olho com preocupação para o mostrador do relógio. As horas foram
tomadas por tal galope que tenho dificuldade em acompanhar o ritmo com que a noite
se apossa desta parte do mundo. Instaladas as trevas, estas oferecem uma ilusão
de serenidade. Então, as pessoas descansam e deixam que as horas se entranhem
na pele e lhes façam nascer rugas naqueles lugares onde menos gostariam de as
ver germinar. A vida tem essa natureza, um prazer indisfarçável em obstar ao que
gostamos, lembrar-nos da nossa finitude. Tenho dias em que a inclinação para
melancolia metafísica é maior que noutros. Nunca descobri a razão, mas alguma
há-de haver. Tenho um relatório para ler e introduzir eventuais emendas e
sinto-me feliz por contribuir assim para a salvação do mundo. Constatei há
muito que a inutilidade é receitada de forma imperativa como um grande antídoto
para os males que corroem a realidade. O pior é que nem como analgésico
funciona. Os males vão crescendo e lançando metástases pelos tecidos. Oiço uma
sonata de Schubert, o molto moderato e cantabile
do andamento faz-me esquecer a metafísica e os males do mundo sem remédio.
Deixo-me envolver na música, o coração apazigua-se, a mente serena-se e a noite
abranda o cavalgar, caminha num trote sem pretensão. Chegará a passo à casa da
madrugada. Também eu caminho do cantabile
para o adagio. Ah, o relatório, digo
e bocejo.
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