quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Do cantabile ao adagio

Olho com preocupação para o mostrador do relógio. As horas foram tomadas por tal galope que tenho dificuldade em acompanhar o ritmo com que a noite se apossa desta parte do mundo. Instaladas as trevas, estas oferecem uma ilusão de serenidade. Então, as pessoas descansam e deixam que as horas se entranhem na pele e lhes façam nascer rugas naqueles lugares onde menos gostariam de as ver germinar. A vida tem essa natureza, um prazer indisfarçável em obstar ao que gostamos, lembrar-nos da nossa finitude. Tenho dias em que a inclinação para melancolia metafísica é maior que noutros. Nunca descobri a razão, mas alguma há-de haver. Tenho um relatório para ler e introduzir eventuais emendas e sinto-me feliz por contribuir assim para a salvação do mundo. Constatei há muito que a inutilidade é receitada de forma imperativa como um grande antídoto para os males que corroem a realidade. O pior é que nem como analgésico funciona. Os males vão crescendo e lançando metástases pelos tecidos. Oiço uma sonata de Schubert, o molto moderato e cantabile do andamento faz-me esquecer a metafísica e os males do mundo sem remédio. Deixo-me envolver na música, o coração apazigua-se, a mente serena-se e a noite abranda o cavalgar, caminha num trote sem pretensão. Chegará a passo à casa da madrugada. Também eu caminho do cantabile para o adagio. Ah, o relatório, digo e bocejo.

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