Hesito sempre entre o antes e o depois, não sei qual das
personagens me desagrada menos, embora pareçam muito distantes e diferentes.
Não estou a falar de literatura. Hoje hipotequei a manhã num corte de cabelo.
Antes de o cortar talvez parecesse um velho intelectual da rive gauche. Agora, já que corto sempre o cabelo curto, talvez pareça
um velho militar na reforma. Não me desagrada o ar marcial. Há uns anos, por motivos
fortuitos que não vêm ao caso, cortei rente o cabelo. Gostei da sensação. Há em
mim nostalgias incompreensíveis, saudades de coisas que nunca experimentei.
Umas vezes, penso que deveria ter sido monge cartuxo ou trapista. Ponho-me a
imaginar a vida disciplinada, a prática do sacrifício, as horas de oração, a
dádiva total à vontade divina. Outras vejo-me como militar, o serviço prestado
à comunidade, a dádiva no campo de batalha. Talvez haja em mim uma inclinação
trágica para o sacrifício. A verdade, contudo, é que sou um filho de Adão e tão
volúvel como este, que logo se deixa levar pelo sorriso de Eva e vende o paraíso
pela primeira quimera que lhe oferecem. Cheguei cedo a este sábado. Já não sou
o mesmo que era quando saí da cama. Não lerei o Le Monde nem o Libération,
sentado numa esplanada. Olho-me ao espelho e vejo nele o militar que não fui.
Há pouco, quando escrevi que não estava a falar de literatura, menti.
Sem comentários:
Enviar um comentário