sábado, 22 de fevereiro de 2020

Nostalgias incompreensíveis

Hesito sempre entre o antes e o depois, não sei qual das personagens me desagrada menos, embora pareçam muito distantes e diferentes. Não estou a falar de literatura. Hoje hipotequei a manhã num corte de cabelo. Antes de o cortar talvez parecesse um velho intelectual da rive gauche. Agora, já que corto sempre o cabelo curto, talvez pareça um velho militar na reforma. Não me desagrada o ar marcial. Há uns anos, por motivos fortuitos que não vêm ao caso, cortei rente o cabelo. Gostei da sensação. Há em mim nostalgias incompreensíveis, saudades de coisas que nunca experimentei. Umas vezes, penso que deveria ter sido monge cartuxo ou trapista. Ponho-me a imaginar a vida disciplinada, a prática do sacrifício, as horas de oração, a dádiva total à vontade divina. Outras vejo-me como militar, o serviço prestado à comunidade, a dádiva no campo de batalha. Talvez haja em mim uma inclinação trágica para o sacrifício. A verdade, contudo, é que sou um filho de Adão e tão volúvel como este, que logo se deixa levar pelo sorriso de Eva e vende o paraíso pela primeira quimera que lhe oferecem. Cheguei cedo a este sábado. Já não sou o mesmo que era quando saí da cama. Não lerei o Le Monde nem o Libération, sentado numa esplanada. Olho-me ao espelho e vejo nele o militar que não fui. Há pouco, quando escrevi que não estava a falar de literatura, menti.

Sem comentários:

Enviar um comentário