Estava a ouvir a suite francesa nº 2 de Bach e, ainda a peça
fluía pela Allemande, já o espírito
se distraía perdido na pátria das coisas inúteis. Os pensamentos talvez sejam
obra do acaso, tão inopinadamente irrompem para, como um exército inimigo, invadirem
o território da atenção. Sem saber porquê, o argumento modal da existência de
Deus requereu a minha atenção. Estranhei. Fiz um esforço para deixar de lado
necessidades e possibilidades e acompanhar a música. O argumento não se calava.
Seria a sua natureza estética, a beleza que há na simplicidade, que disputava a
atenção, ocorreu-me. Fechei os olhos e deixei a música deslizar por mim e
disse-me se é para aceitar uma prova da existência de Deus, o melhor é crer que
a música de Bach é mais convincente que um qualquer argumento a priori. Depois ri-me. Pensamentos
destes depois de almoço não se recomendam a ninguém. Levantei-me e olhei pela
janela. Bach continuava a sair pelas velhas colunas e na rua o esbranquiçado
das nuvens mesclava-se com o azul do céu. Uma nuvem mais densa escondia Deus
que dormia embalado pela música que eu ouvia. Talvez os homens existam para que
Deus possa através deles ouvir Bach. Mais que uma possibilidade, os homens
seriam uma necessidade divina. Retorno à minha agenda onde colecciono, como se fosse num herbário, os recados que dou a mim mesmo, e escrevo: nunca ouvir Bach
na digestão e evitar argumentos ontológicos quando se ouve música.
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