segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A poética das análises laboratoriais

Recebido por correio electrónico, imprimo o relatório das análises que mais logo terei de mostrar ao médico. Está dividido por secções cujos nomes lembram a designação de disciplinas de um curso superior. Hematologia, Bioquímica I, Bioquímica II. Será que também aqui haverá precedências? Quem chumbar na Bioquímica I poderá fazer a Bioquímica II ou terá de repetir a I? Outra secção, porém, tem um nome menos amigável, Marcadores Tumorais. Esta não se parece com uma cadeira universitária, mas com um quadro onde se vai inscrevendo a evolução de um jogo de bilhar às três tabelas. Olho com condescendência para os resultados, verifico se eles se integram nos valores de referência. Por fim, tento descortinar o valor literário da informação. Vejo por ali vocábulos extraordinários. Eritrócitos, hemoglobina, hematócrito, leucócitos, eosinófilos, basófilos, linfócitos e monócitos. Isto para não falar da glicémia, da ureia, do colesterol e dos triglicéridos. São verdadeiras famílias, com as suas sagas, os seus amores e ódios, triunfos e desditas. O nosso organismo está cheio de histórias com personagens que nem sonhamos. Não admira a quantidade de escritores médicos. Têm a mente povoada de personagens com nomes destes, cuja acção determina a vida ou a morte do hospedeiro, a glória ou a tragédia do herói. A tarde nasceu enfastiada e o fastio que dela se desprende toma conta da atmosfera, envolve os transeuntes na avenida, repousa-se nos ramos do arvoredo. Aqui perto, caminham dois eritrócitos e três leucócitos. Falam em surdina, fazem planos, traçam mapas onde se inscreve a vida e a morte. Param perto de mim e um deles, o leucócito mais apessoado, pergunta-me se conheço a transaminase glutâmica oxalacética. Embaraçado, respondo que não, embora conheça a transaminase glutâmica piruvica, que deve ser prima. Se quiser falar com ela, não tem nada que enganar. Faz a rotunda, sai na terceira saída, é logo o primeiro prédio. No segundo direito.

2 comentários:

  1. Também me costumo divertir com essas poéticas, até pelos médicos já formados e outros em embrião que tenho na família. Mas não ligue muito aos marcadores tumorais, são uns bons malandrecos (leia-se, nem sempre fiáveis). Boa sorte com essas poéticas.
    ~CC~

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    1. É uma poética muito especial, de facto. Quanto aos marcadores, eu sei que eles por vezes esquecem-se de cumprir a sua função. Muito obrigado.

      HV

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