Devia ter-me dedicado ao comércio, trocar mercadorias por dinheiro. Comerciar é um exercício pacífico em que ambos os lados, os que compram e os que vendem, acabam por se sentir felizes e por isso cooperam, quase sempre com a bonomia e o trato civilizado que o interesse mútuo supõe. Há nessa civilidade fingimento e dissimulação? Claro, mas sem essas duas virtudes – pois virtudes são e virtuosos, os seus efeitos – o mundo seria um lugar nefasto e muito mais insuportável do que é. A minha natureza, porém, impediu-me a escolha sensata. Fui dotado de uma propensão para optar pelo pior. Não falo por falar. Escolhi dar de comer a quem não tem fome. Uma profissão de mérito, embora com pouca utilidade. Durante uns tempos ainda me apareciam famélicos, alguns mesmo subnutridos, a quem eu tinha o privilégio – coisa que não sabia na altura que o era – de alimentar. Depois, os enjoados e os enojados, que vomitam com facilidade, começaram a crescer em número e tornaram-se dominantes, mas foram já ultrapassados por aqueles que se recusam a abrir a boca. A colher vai e vem, enquanto eles indiferentes ostentam uma saciedade desarmante. Como seria empolgante esse mundo de letras e livranças, de cheques e numerário, com os seus almoços e jantares de negócios, uma pessoa rodeada de gente com apetite, sempre disposta a abrir a boca, sempre disponível para mais uma iguaria. Como é belo um balanço e terna a relação entre o deve e o haver. Escolhi, porém, dever tudo e não ter nada a haver. Quando começo a falar por enigmas, o melhor é desconfiar da minha sanidade mental.
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