Lá fora está um dia sombrio. A luz da manhã coada pela
muralha de nuvens saltita sobre os telhados como se tivesse perdido a força e
só a muito custo se entregasse ao jogo fútil de nos iluminar. Oiço as vozes de
quem está na esplanada do café da praceta, mas também elas não passam de
sombras, ondas murmuradoras que se elevam e, desarticuladas e sem sentido, me
chegam aos ouvidos. Devia fechar as janelas, mas preciso de ar. À minha frente
repousa um livro que tem por subtítulo Um
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. Não se trata do nosso
tempo mas de um tempo que passou e que nunca foi o meu. Ao olhar a falta de
vigor da luz ocorre-me que todas as épocas são tempos de doença espiritual. O
espírito deverá sofrer de uma patologia crónica, da qual não se liberta, mas a
cujas mãos também não sucumbe. Uma voz mais aguda fez-me ter outro pensamento
sobre o espírito. O seu encanto residiria nesse seu estado de doente, sempre a
necessitar de cuidados médicos, mas raramente a ser internado num hospital. Aos
domingos deveria coibir-me deste tipo de pensamentos. Lembrei-me dos domingos
da minha infância e adolescência. A missa, o almoço em família e,
eventualmente, a assistência ao futebol, no pequeno campo pelado da vila, ou a
ida ao cinema, numa sala espantosa, que era dos poucos sinais de modernidade
que então havia por aqui. Tudo tinha um ritmo que simulava a perfeição, mas na
verdade era sujeição ao ethos provinciano,
onde se deveria crescer para a pequenez, perder-se no apoucamento, mergulhar na
menoridade eterna. Há quem tenha saudades de tudo isso e cultive a memória,
podando-a para eliminar, na narrativa, os elementos dissonantes. A luz
tornou-se mais vívida, agora que nos preparamos para entrar na tarde. Fechei as
janelas e o silêncio envolve-me. Não vou à missa, não vou ao futebol, não vou
ao cinema e essa família que almoçava junta aos domingos foi-se desfazendo. Os
homens aspiram à eternidade, mas o que lhes calha sempre em sorte é o tempo.
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